1. Introdução
Conforme ensina Paulo Lúcio Nogueira, “a expressão habeas corpus literalmente significa tome o corpo`, mas passou a designar ordem de libertação` ou ordem de cessação de qualquer constrangimento ilegal. Seu objetivo ou finalidade é tutelar a liberdade física no sentido de ir, vir, e ficar” (Curso Completo de Processo Penal. 9.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. P. 412).
Possui essa medida berço constitucional: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5.º, LXVIII, da CF/88).
2. A pertinência na Justiça do Trabalho
Aplicando a Carta Magna, os juízes do Trabalho têm decretado a prisão do depositário infiel (art. 5.º, LXVII).
Como a ocorrência se dá em autos trabalhistas, e a prisão é decretado por juiz investido em jurisdição trabalhista, os habeas corpus, onde se discute a legalidade ou não da prisão decretada, são apreciados pelos Tribunais Regionais do Trabalho, tradicionalmente.
Essa competência, no entanto, está longe de ser pacífica.
3. Posição Jurisprudencial da década de 90
Em 1993 o Excelso Supremo Tribunal Federal decidia que “Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. Não possuindo a Justiça do Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para o feito” (CC n.º 6.979-1-DF ? TP. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJU 26.02.93).
O Tribunal Regional Federal da 1.ª Região chegou a sumular a questão, através da Súmula 10: “Compete ao Tribunal Regional Federal conhecer de habeas corpus quando o coator for Juiz do Trabalho” (DJ 27.04.1993, p. 14.750, vide Dicionário Trabalhista Elementar de GUNTHER, Luiz Eduardo e ZORNIG, Cristina Maria Navarro. São Paulo: LTr, 2001, p. 139).
4. Evolução da Jurisprudência
Depois disso, no entanto, dois acórdãos do C. TST, pelo menos, já reconheceram a competência da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar habeas corpus quando se trata de prisão civil de depositário infiel (ROHC-352.945/97-3, Ac. SBDI 2, Rel. Min. Valdir Righetto, DJU 16.10.1998, e RO-HC-261.097/96.1, Ac. SBDI 2 555/97, Rel. Min. João Oreste Dalazen, DJU 06.06.1997).
Sérgio Pinto Martins explica essa posição da mais alta Corte Trabalhista: “O habeas corpus deveria ser impetrado junto à autoridade imediatamente superior à que praticou a prisão, pois quem tem competência para prender, tem para soltar. Se o coator é o juiz da Vara, a competência é do TRT. Se o coator é o juiz do TRT, a competência é do TST. Se o coator é o juiz do TST, competente será o STF” (MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho: doutrina e prática forense; modelos de petições, recursos, sentenças e outros. 15. ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 476).
5. O Regimento interno do TRT da 9.ª Região
A Justiça do Trabalho do Paraná acompanhou a hesitação nacional, já tendo reconhecido sua incompetência para julgar habeas corpus, mesmo que impetrado contra ato apontado como violador da liberdade de ir e vir praticado por juiz do Trabalho, reconhecendo que a violação da liberdade deveria ser julgada pelo Tribunal que detém a jurisdição criminal, o Tribunal Regional Federal, em Porto Alegre (HC 2/96, Ac – SDI 21.542/96, Rel. Juiz Luiz Felipe Haj Mussi).
Mais tarde, voltou atrás, e passou a assumir a competência para julgar habeas corpus impetrado contra ato de juiz da execução trabalhista que determina a prisão do depositário infiel, pois decorrente da relação jurídica de emprego, consoante o caput do art. 114 da Constituição Federal (HC 4/97, AC. SDI-2 19.048/98, Rel. Juiz Ney José de Freitas).
Não existindo lei específica definindo o tema, o TRT, corajosamente, assumiu a competência para julgar habeas corpus, com o argumento de que, se o juiz do trabalho pode determinar a prisão do depositário infiel, pode o Tribunal do Trabalho examinar a legalidade dessa ordem de prisão.
O novo regimento interno do TRT da 9.ª Região incluiu nos procedimentos do Tribunal (Título IV), a medida do habeas corpus (Capítulo IX), com previsão nos arts. 147 a 152 (ver nossos Comentários, Editora Juruá, 2002, p. 255-259).
6. O mais recente entendimento do Excelso Supremo Tribunal Federal
Há pouco, porém, o Supremo Tribunal Federal resgatou sua antiga posição, demonstrando não ter se convencido com os fortes argumentos contrários que se seguiram por quase uma década à decisão do CC 6.979-DF, DJU 26.02.93, conforme Informativo de 27 a 31 de maio de 2002, n.º 270:
“Compete ao TRF processar e julgar habeas corpus impetrado contra ato de juiz do trabalho de 1.º grau, e não ao TRT, que não possui competência criminal. Com esse entendimento, a Turma deu provimento a recurso ordinário em habeas corpus – impetrado inicialmente perante o TRT, contra ato de juiz do trabalho de 1.º grau que decretara a prisão do paciente por considerá-lo depositário infiel, do qual houve posteriormente outro writ perante o STJ – para anular as decisões proferidas pelo TRT e pelo STJ, determinando a remessa dos autos ao TRF competente para julgar o writ. Precedentes citados: CC 6.979-DF – DJU de 26.02.93 e HC 68.867-PR – DJU de 07.02.92 (RHC 81.859-MG, Rel. Min. Carlos Velloso, 28.05.02)“.
7. À guisa de reflexão e conclusão
A Seção de Dissídios Individuais II do C. TST inseriu em 27.05.02 em sua jurisprudência predominante a Orientação n.º 89, cujo texto diz: “HABEAS CORPUS` – DEPOSITÁRIO. TERMO DE DEPÓSITO ASSINADO PELO PACIENTE. NECESSIDADE DE ACEITAÇÃO DO ENCARGO. IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL. A investidura no encargo de depositário depende da aceitação do nomeado que deve assinar termo de compromisso no auto de penhora, sem o que é inadmissível a restrição de seu direito de liberdade“.
Pelo que se vê, seguiu a mais alta corte trabalhista uma tendência correta, consagrada na Reforma do Judiciário que se encontra no Senado Federal (PEC 29/2000), de ampliação de competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar “habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (proposta do futuro art. 115, IV, da CF/88).
Somente a alteração constitucional poderá, definitivamente, reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento do habeas corpus sempre que “o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição“. Enquanto isso não acontece, oferece-se duas soluções: a) encaminhamento de sugestões aos senadores para que mantenham essa modificação na Reforma do Judiciário; b) que os Juízes do TRT, a exemplo do C. TST, em saudável rebeldia, continuem assumindo a competência, como já em tantos julgamentos fizeram.
Luiz Eduardo Gunther
é juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região. Cristina Maria Navarro Zornig é assessora no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região.