O futuro do Direito e o direito ao futuro

Permitam-me narrar-lhes o que se segue, e o faço in memoriam a Raymundo Faoro, no lustro de seu passamento (ocorrido em 15 de maio de 2003) e na lembrança de sua indelével presença em Curitiba no ano de 1978; naquele tempo, o estado de direito que se anunciava no Brasil pela multidão de vozes reunidas no Paraná, ia decretando, no inverno junino desta cidade, o outono do regime militar e as primeiras luzes da primavera democrática.

Imaginemos que a dois transeuntes reflexivos tenham sido, no dia 1.º de janeiro deste ano que principia, dirigidas as seguintes questões: como será o direito no futuro que se avizinha e como se realizará o direito de todas as gentes a um futuro digno e justo?

Após um longo silêncio eloqüente, o primeiro deles pediu para responder e apresentou a seguinte reflexão que me permito sintetizar.

Foram suas palavras, iniciando por dizer: não é possível pensar no futuro, olvidando-se do presente e apagando o passado. O ser humano, individual e coletivamente, se faz na história de seus caminhos e na vida em sociedade à luz dos valores que elege, por ação ou omissão, para viver e conviver.

E prosseguiu:

Um dos tempos verbais que explicitam os impasses no desassossego[i] inspirador de versos e paradoxos é o futuro do pretérito, e nele se expressam hipóteses aporéticas de incerteza[ii]. O indicativo do que seria o Brasil contemporâneo no Legislativo, no Judiciário e no Executivo, pode caminhar por aí, pelo porvir que reflete, como pesadelo, sonhos de outrora.

Não se trata tão-só de haurir dos fatos e da história o direito que foi tomado pelo avesso, e sim, ao início de novo milênio, também refletir sobre a construção do discurso jurídico a partir da terra brasileira, fornecendo alguns elementos de compreensão do presente e de prospecção ao futuro do Direito e ao Direito que se terá como ventura e fado.

Ambos os respondentes se sentaram, ao lado do argüidor, eis que a prosa se evidenciava, desde logo, caminhar longe. E o primeiro respondente, sisudo e tez fechada, continuou:

Algumas premissas informam esse caminho. De um lado, debater o pretérito dos direitos civis que se projetaram em parcela saliente da jurisprudência como direitos constitucionalizados (à vida, à saúde, à proteção dos riscos, e assim por diante) corresponde ao reconhecimento de um telos que não se esgota na dogmática jurídica; de outra parte, expor a trajetória do Direito e da Justiça impõe hoje dialogar com o cenário mundial contemporâneo, plural e complexo.

A desinência que indica o futuro do pretérito espelharia, igualmente, uma colossal clivagem nesse contexto entre a realidade e a respectiva análise de possibilidades. Esse espaço de intermediação analítica é mesmo ocupado, dentre outros fenômenos, pelo discurso jurídico (quer doutrinário, quer normativo), pelos corpos intermediários e por um feixe de interesses e de poder que tem mantido o Brasil sob permanente estado social de exceção.

É desse futuro do pretérito, enfatizou o primeiro respondente, que passo a me ocupar, animando-se, ainda mais, com a pergunta, embora a resposta viesse carregada do sentimento inverso.

Tratar do direito e do futuro tomando a alavanca exemplificativa aqui apreendida para fins metodológicos de exposição do fio condutor que nela se contém, mas ali não principia nem por aí se completa, passa, preambularmente, por um reconhecimento histórico, pela retomada de dados e informações, bem como por questionamentos. Daí perguntou retoricamente a si mesmo: a codificação civil de 2002, a Constituição Federal de 1988 e as leis infraconstitucionais, teriam levado a efeito mudança de fundo na estrutura social, econômica e cultural brasileira?

A rigor, não teriam desenvolvido uma espécie de ?teologia? legitimadora do discurso jurídico, exposto nos depósitos da barbárie e que não são meros avatares de uma história dissimulada? Prometeram, enfim, dignidade à vida humana, obediência à boa-fé, à lealdade, à função social do contrato, à supremacia do interesse público, ao funcionamento regular dos poderes constituídos, com quais meios, recursos e instrumentos?

E sem espaço no discurso, na voz e na respiração, continuou:

O intento de alterar as condições materiais da vida social por meio do discurso jurídico normativo não é novo, apresentando-se, nesse cenário, o discurso jurídico como imagem especular invertida.

Como se vê, as relações de poder se instalam a partir da sociedade no âmbito do Estado para fazer, por meio das políticas públicas e do discurso jurídico, uma espécie de nova ?teologia?, fenômeno histórico e social já observado na apropriação de significados, como se fez com a Magna Charta Liberatum, de 1215, outorgada na Inglaterra em favor do baronato, súditos do denominado Rei João Sem-Terra.

Trata-se do mesmo patamar que representaram as cartas de franquia, as sesmarias e os forais no legado português e espanhol na terra brasileira.

Na ausência de práxis que representasse ruptura de modelos, como fruto da estrutura da consciência (como escreve o Habermas do materialismo histórico[iii]), há, por assim dizer, o renascimento do revide cínico dado por Platão ao perguntar se era deus ou um homem o autor das leis, cuja resposta teocêntrica revela o lugar legitimador que tem ocupado o discurso jurídico no Brasil.

Gerou-se, assim, o cativo perfeito do passado, arrematou o primeiro respondente.

Fez-se, nesse momento, um silêncio entre o outro argüido que, pensativo, ouvia, e o argüente que de tudo tomava nova, oportunisticamente pensando em utilizar tais argumentos em futura palestra.

Não se fez de rogado, nada obstante, o primeiro respondente, e retomando o fôlego da crítica, continuou:

Produto de conflitos endógenos na formação nacional, o Brasil se afeiçoou, assim, à história lenta do atraso, surpreendendo até mesmo a golden rule do liberalismo. Interesses e poderes se uniram para compor, de geração em geração, uma hierarquia axiológica intersubjetiva que arrosta até mesmo as análises que têm perspectiva liberal e se fundam em autores contemporâneos como John Rawls e Ronald Dworkin.

Nas perdas e danos, e para ficar no período que vai até a metade do século XX, o balanço resta por argüir sobre o futuro de um Estado que não chegou, substancial e efetivamente, sequer às promessas da Constituição mexicana de 1917 e à Constituição de Weimar.

E após breve pausa, ele sentenciou: mantém-se, pois, a exclusão social, a pobreza e as desigualdades.

Quando o segundo argüido quis iniciar sua resposta às intrincadas e complexas questões sobre o futuro do Direito e o direito ao futuro, o primeiro respondente continuou, dizendo:

O tempo presente não arrostou esses desafios.

Se o presente tem essa coloração que parece mofo imemorial, uma legítima irresignação interroga em outro campo as promessas de então.

E como olhando para um lugar inatingível ao longe, perguntou, quiçá a si mesmo: Seria outro o Brasil caso já houvesse enfrentando os males que nos afligem?

Nesse momento, o segundo respondente, já exausto do mutismo a que fora tacitamente compelido, tomou a palavra e replicou:

Podemos ver essa realidade por outro prisma.

E assim sintetizou sua resposta e manifestação:

A Constituição Federal vigente propicia conferir ao Direito Civil patrimonial a superação do estatuto jurídico das coisas, bens e direitos, beneplacitando a ?despatrimonialização? e ?repersonalização?. Dessa saudável crise resultou a renovação do sistema clássico de apropriação de bens. Deu-se, assim, a travessia na jurisprudência do Código Civil de 1916 à Constituição de 1988, alcançando até mesmo, no âmbito do novo Código Civil brasileiro a função social da propriedade e do contrato, ao controle das atuações públicas e privadas.

Contém o ordenamento regras constitucionais sobre o cumprimento integral da função da propriedade e mecanismos de desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária, para valorizar o trabalho, a empresa e a livre iniciativa.

Vivemos uma democracia política, com liberdade e responsabilidade.

Tem o País um Poder Judiciário claramente estruturado, com sofisticada divisão formal de competências: duas justiças comuns (federal e estadual) e três justiças especiais (trabalhista, eleitoral e militar). São 91 (noventa e um) tribunais no território nacional.

No topo da estrutura, está o Supremo Tribunal Federal, tendo em seguida o Superior Tribunal de Justiça e mais três tribunais superiores: trabalhista, militar e eleitoral. Há cinco tribunais regionais federais, 27 tribunais de justiça, e funciona, em Brasília, o novel Conselho Nacional de Justiça.

Tem o Brasil[iv] aproximadamente 15 mil juízes, sendo a média 5,3 juiz por 100 mil habitantes. Em cada Estado da federação há, em média, 390 juízes na Justiça Estadual, e 263 juízes na estrutura da Justiça Federal de primeiro grau.

E o segundo respondente, como tinha algumas anotações consigo, passou a destacar alguns dados:

Anualmente, em média, cada juiz estadual decide 1.400 processos e cada juiz federal 700 processos.

Ao seu turno, o Supremo Tribunal Federal julgou, em 2007, 81.332 processos; de 2000 a 2007, o STF recebeu 818.744 e julgou 783.800. Já o Superior Tribunal de Justiça, em 2007, julgou 131.023; de 2000 a 2007, o STJ recebeu 1.537.277 processos e julgou 1.647.859.

Tal síntese, acrescentou, revela altos índices de produtividade, com recursos de automação cada vez mais elevados. Segundo a Associação dos Magistrados Brasileiros e de acordo com relatório do Banco Mundial, ?a média de ações ajuizadas no Brasil é alta para a América Latina, e a carga de trabalho apreciada por alguns tribunais está acima das médias internacionais. Os níveis de produtividade são significativamente altos, e uma possível explicação reside na aplicação criativa da automação?[v].

Sem embargo de alguns pontos de estrangulamento e de relevantes questões locais e regionais, a estrutura nacional do funcionamento formal da magistratura não poderia ser, por si só, apontada como empecilho para atuação eficaz nos feitos relativos ao interesse público e social.

E tem mais, aduziu o segundo respondente, impugnando o realismo crítico do primeiro:

Tomemos como exemplo o julgamento do Recurso Extraordinário número 466.343. Embora o julgamento desse recurso extraordinário esteja ainda pendente de conclusão, tal feito revela a renovação constante do Poder Judiciário brasileiro, valendo como exemplo do muito que tem sido feito a partir de 1988, mirando-se para o futuro. Esse processo promoveu uma mudança no entendimento do STF.

O tema, como se sabe, foi a prisão civil em caso de alienação fiduciária, e conformou-se uma nova maioria no STF, que considera que os tratados internacionais de direitos humanos encontram-se acima da legislação interna, ainda que abaixo da Constituição. Mudou o STF. Na sessão já levada a efeito, colhem-se as palavras do ministro Gilmar Mendes: ?O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n.º 911/1969, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n.º 10.406/2002)?.

Ademais, não é possível esquecer do compromisso que todos (como cidadãos, individual e coletivamente) assumimos, a partir de 1988, para tornar a Carta Magna da jovem nação brasileira redemocratizada algo mais que a Constituição de papel como Ferdinand Lassale desenhara nos idos do século XIX. Setores inteiros da sociedade civil foram chamados a participar ativamente do projeto da Constituição da República, num esforço bastante considerável num país com proporções continentais como o nosso.

Temas relevantes foram colocados na pauta legislativa, como a seguridade social de elevada envergadura no combate às disparidades sociais e a reforma tributária, que transferiu mais recursos aos Estados e Municípios. Ulysses Guimarães, no inolvidável discurso proferido na tribuna, cunhou e não por acaso, então, a expressão ?Constituição Cidadã?, para fazer alusão à Constituição de 88.

Para o Direito Privado a ?publicização? que já dimanava desde o Pós-II Guerra Mundial, a Constituição-cidadã salientava-o de maneira dramática, afetando frontalmente os pilares das Codificações Oitocentistas Privadas, fazendo com que o Código Civil perdesse a centralidade de outrora para o texto constitucional[vi].

As fronteiras entre o Direito Público e Privado ficam cada vez menos claras, de difícil precisão, pois se emaranham sobremaneira[vii], como registrar a melhor doutrina:

?Daí a inevitável alteração dos confins entre o direito público e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território do direito privado?[viii].

Paulatinamente, o texto maior passou a ser incorporado na práxis jurídica, notadamente na seara privada. O influxo constitucional é tão acentuado que, ao se tratar das implicações da Carta no Direito Privado, em especial no Direito Civil, restou cunhada a consagrada expressão ?Constitucionalização do Direito Civil?[ix], que demonstra justamente a força que a Carta constitucional emprestou a distintos institutos tipicamente de Direito Privado.

Consolidada a Carta Política, partes inteiras do Direito Privado são nela petrificadas, instituindo novo arcabouço num plano, agora, hierarquicamente superior na normatividade nacional. Diversas leis – lato sensu – vieram a ser declaradas inconstitucionais e, por noutro sentido, tantas outras são abraçadas pela nova Lei Maior. Efervescem, assim, trabalhos acerca daquilo que a nova Constituição tornou constitucional, com produção técnico-jurídica copiosa, superabundante. O contrato, a propriedade, a família, a função social, a boa-fé, a ordem econômico, os direitos civis individuais, todos eles passam agora pelo crivo constitucional. Ademais, o princípio da interpretação conforme a Constituição[x] – segundo o qual uma lei não deve ser declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com o comando constitucional – passou a ser amplamente adotado pela jurisprudência.

Nesse momento, o argüente, que tinha dificuldade para acompanhar o ritmo das reflexões em suas anotações, interrompeu-o indagando: afinal, fiz uma singela pergunta, mas quem são os senhores?

E justificou a pergunta dizendo: não se pode deixar de reconhecer que todo aquele que pergunta insere implicitamente nas suas questões os seus próprios limites (ao perguntar é a si mesmo que indaga!), e todos aqueles que respondem (emitem legal opinião, pareceres, decisões, acórdãos e assim por diante) se colocam no que dizem (dizendo de si mesmo ao afirmar o que intenta dizer, dizendo-o ou omitindo-o, neste caso expressando-se pela omissão, pela fala muda), até porque, como se sabe a partir de Gadamer, texto e contexto interagem no conjunto das possibilidades do círculo hermenêutico [xi].

E acrescentou o perguntador:

Saberiam os senhores nos informar o que resultou das construções teóricas da efetividade constitucional e dos direitos humanos e fundamentais, especialmente com a adoção teórica das políticas de inclusão, da não-discriminação, da igualdade substancial e assim por diante? Teria sido apenas um ?endemic challenge?[xii] para a democracia liberal?

Se, de ponto de vista hegeliano, a história é a realização da idéia de liberdade, teria o Brasil abraçado a concepção nietzscheniana de que a humanidade dirige-se para seu próprio fim?

A ponte que une esse salto pode ter explicação, aduziu o argüente, agora se transformando, também, em falante. É que, de algum modo, no Direito Civil Moderno, associa-se à liberdade a propriedade. E assim se faz a partir, ao menos, de John Locke, sem desconsiderar-se, por certo, o poder le plus absolue dado à titularidade pelo artigo 544 do Código napoleônico.

Eis aí uma singela revelação da função das codificações civis nos séculos XIX e XX, presas a uma racionalidade universalizadora, com a pretensão de construir tanto um sistema jurídico quanto um modo de pensar juridicamente a partir da segurança e da completude, servindo a sujeitos abstratamente iguais e livres formalmente. Dá-se ali ao sujeito formal uma espécie de soberania individual, um espaço de auto-regulamento de interesses, blindados da coerção estatal.

Refletir sobre o Brasil que se formou como o País que é ou que poderia ser também compreende problematizar o modo de pensar a racionalidade que informou e conforma a formulação doutrinária e a estrutura de pensamento brasileiro.

Intentou-se, sem dúvida, promover divórcio entre o legado reprodutor da adaptação e a contemporaneidade.

O status quo histórico resultante desse repto enfrentou a funcionalização dos institutos de base: a propriedade, o contrato[xiii] e a família. No que concerne à propriedade, especialmente, os textos constitucionais chamaram para si, no século passado, a imposição de funções ao exercício da liberdade proprietária, buscando superar o Direito Civil Moderno, de matriz liberal, espelhado nas codificações oitocentistas. À liberdade negativa dos sujeitos seguiu-se a função promocional do Estado.

Nesse momento, olhando para ambos os respondentes, tornou a perguntar: restou, porém, inacabada a ponte que uniria as margens entre o País das diferenças e a Nação prenhe de desigualdades[xiv]?

Foi então que o primeiro respondente retomou a palavra, no mesmo tom preambular, afirmando: a rigor, o que se denota, materialmente, no País do presente, é um incremento de necessidades, especialmente vinculadas à desconcentração de terra e de renda. O Direito e seus discursos, bem como sua teoria, ainda que crítica, tem trabalhado com universais, como se os conceitos fossem entes acima da história e aptos a produzir, por si só, sua própria realidade.

Um feixe de poderes econômicos, sociais e históricos onipresentes tem gerado a permanência do passado, limitando possibilidades e adestrando definições e ensinamentos. Entre o Brasil real e o discurso jurídico criou-se, por assim dizer, um terceiro setor argumentativo, recheado de cultos, intermediações quase sacerdotais, mitos-conceitos, um corpo intermediário entre o ser e a terra.

O ?ser-no-mundo? de Heidegger[xv] se fez aí sob um paradoxo: de um lado, a construção teórica da quinta dimensão dos direitos humanos e fundamentais, pertinente ao desenvolvimento social, incluindo-se terra e moradia, como escreveu Zagrebelsky[xvi]; de outro, a legião dos novos apátridas, não apenas displaced persons, mas também aqueles que não têm o fundamental da vida digna, aqui ou acolá, homeless, roofless, houseless, ou SDF, sans domicille fixe:sans abri, la rue t?appartient.

Quiçá por essa razão que se diferenciou[xvii] les droits de l?homme e les droits du citoyen, para atacar duramente o egoísmo do homem e a arbitrariedade. Daí porque ver no futuro do pretérito alguma pós-modernidade, com certa fusão de horizontes[xviii], corresponde a ver demais diante de séculos de exclusão, nos quais a regra se tornou estado de exceção[xix] permanente.

E como que revelando sua identidade, o primeiro respondente arrematou:

Eis o desafio de ensinar, no Direito Civil dos cursos jurídicos no Brasil, a estrutura da tipicidade dos Direitos Reais, jura in re própria ou jura in re alieno, bem como no Direito Constitucional da função social da propriedade e da ordem econômica, sem deixar de lembrar o índice de Gini. Tal índice, como se sabe, é parâmetro internacional para medir a concentração de renda.

Cumpre, então, indagar se tem algum sentido, nesse contexto, uma nova ordem mundial que estaria sendo edificada, segundo HUNTINGTON[xx], pelos quase duzentos Estados ou nacionalidades, povos, tribos e grupos étnicos.

Melhor quem sabe optar pela recuperação do século de Péricles, isto é, necessita-se menos de operar verdes bravatas teóricas argumentativas, e mais da ousadia do exercício da crítica racional da realidade, como escreveu Comparato[xxi].

Foi, de inopino, interrompido pelo segundo respondente, que, parcialmente, o contrariou:

Ora, disse, a fim de pensar sobre o direito e o futuro no Brasil de hoje é inafastável um complexo e plural labor teórico-prático de construção; é preciso inovar a vida, lembrando poeta português maior, e ainda mais: ?é um imperativo deontológico, um imperativo categórico de cidadania enraizar nos seus alunos a esperança?[xxii].

Neste instante, sobre a cabeça dos três vinha flanando ao sabor do vento uma folha de papel que pousou à frente deles, e todos se puseram de pronto a ler o que nela se continha. Era Mário Quintana que falava:

?Lá bem no alto do décimo

segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

– ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente

incólume na calçada,

Outra vez criança…

E em torno dela indagará o povo:

– Como é teu nome, meninazinha de

olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho,

para que não esqueçam:

– O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA?[xxiii].

Ao fim dessa leitura conjunta e silenciosa que os três fizeram do texto, rapidamente se despediram, fraternal e singelamente, certos da inexistência de uma resposta única, levando consigo uma missão: a insubmissão do presente ainda conclama a dizer tudo de novo para que o futuro assegure as possibilidades que emergem mesmo dos limites que arrostam os afazeres de todos os dias e de todas as questões que nos irmanam na busca de paz e de justiça.

Notas:

[i]     Fernando Pessoa fornece o mote da aporia que permeia o presente ensaio, pois ?inventou o Livro do Desassossego, que nunca existiu, propriamente falando, e que nunca poderá existir?. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego:composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa; organização Richard Zenith. São Paulo:Companhia das Letras, 1999. p. 13.

[ii]     Sobre o tema, ver: COSTA, Ana Lúcia dos Prazeres. O futuro do pretérito e suas variantes no português do Rio de Janeiro: um estudo diacrônico. Rio de Janeiro, UFRJ / Faculdade de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Lingüística.

[iii]     HABERMAS, J. Para a construção do materialismo histórico. São Paulo:Brasiliense, 1990. p. 206.

[iv]     Fonte: O Judiciário brasileiro em Perspectiva; análise da Associação dos Magistrados Brasileiros baseada em relatórios do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e do Banco Mundial. Publicação da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros. Coordenação Rodrigo Formiga Sabino de Freitas. Brasília, DF, 2007.

[v]     Ib.

[vi]     PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 06.

[vii]     Exemplo saliente é o teor do parágrafo único do art. 2.035 do novo Código Civil: ?Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos?.

[viii]     TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar: 2004. p. 19.

[ix]     Para análise mais profunda sobre o tema. vide o artigo, que transcreve a aula inaugural proferida no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 12 de março de 1992, intitulada ?Premissas metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil? do Prof. Gustavo Tepedino em: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar: 2004. p. 1-22.

[x]     HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 70.

[xi]     Construções teóricas de H. G. Gadamer, na obra Verdade e método. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

[xii]     Como escreveu Amy Gutman, no préfacio da obra Multiculturalism:examining the Politics of Recognition, de Charles Taylor. Princeton University Press, 1994, p. 2.

[xiii]     Insere-se a boa-fé e seus desdobramentos, exempli gratia, bem como (ao reverso) a crítica à máxima da eficiência na análise económica do contrato com todo o arsenal desenvolvimento sobre o cumprimento eficiente.

[xiv]     O texto trata de uma aporia, daí porque assume paradoxos e reconhecer, no tema, complexo teia de poder político nacional, regional e local.

[xv]     À página 236 da obra Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1997.

[xvi]     ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – ley, derechos y justicia. 3.ª ed. Madrid: Totta, 1999.

[xvii]     MARX, K. A questão judaica. São Paulo: Centauro, 2005. p. 32.

[xviii]     Expressão de Gadamer, obra citada, p. 289/290.

[xix]     AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer:o Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

[xx]     HUNTINGTON, Samuel. The clash of civilization and the Remaking of World Order. New York: Simon & Schuster, 2003.

[xxi]     À página 9, a obra Afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004.

[xxii]     Palavras de Avelãs Nunes proferida em conferência de 2002 no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFPR.

[xxiii]     Extraído do livro Nova Antologia Poética. São Paulo: Globo, 1998. p. 118.

Este texto retoma, com ajustes, mudanças e acréscimos a exposição feita no VII Encontro Cainã, realizado em Portugal de 21 a 23 de janeiro de 2008, e utiliza, como título (e com a devida autorização do professor António José Avelãs Nunes, coordenador do evento e vice-reitor – e neste momento reitor em exercício – da Universidade de Coimbra), a denominação dada ao evento.

Luiz Edson Fachin é professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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