O Fundamento Constitucional dos Direitos de Personalidade

Um dos temas mais relevantes do Código Civil brasileiro (CCB), vigente desde há pouco mais de um ano, é certamente o contido no Livro I da Parte Geral (Das Pessoas), Título I (Das Pessoas Naturais), Capítulo II (Dos Direitos da Personalidade), englobando os artigos 11 a 21.

Nada obstante a previsão na lei civil, cumpre afirmar a imbricação da temática dos direitos de personalidade com o direito constitucional, nomeadamente com os direitos fundamentais, os quais, no dizer de LORENZETTI, “têm sido chamados de garantias de liberdade, direitos individuais, direitos participativos, direitos humanos ou direitos personalíssimos”. (01)

A doutrina destaca a afinidade dos direitos de personalidade com os direitos fundamentais, podendo-se citar CAPELO DE SOUSA, para quem essa relação “emerge da parcial sobreposição ao nível da pessoa humana de dois planos jurídico-gnoseológicos: o de direito civil, onde se fundam os direitos da personalidade, e o de direito constitucional, donde irradiam os direitos fundamentaisª. (02)

É freqüente a proteção dos direitos inerentes às pessoas pelo direito público (inclusive internacional), por princípios e normas previstas em pactos e convenções internacionais, em especial declarando os direitos fundamentais da pessoa humana.

No Brasil, a Constituição da República (CR), elencando direitos fundamentais como pilares para uma sociedade fraterna, pluralista e democrática, anunciou a supremacia do ser sobre o ter, do ser humano sobre os bens materiais. De fato, são “princípios fundamentais” da República Federativa do Brasil: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV Ä os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político (art. 1.º).

O princípio da “dignidade da pessoa humana” é um conceito jurídico ainda em formação, em especial quanto a seu conteúdo. Nada obstante, ressalta-se a existência de excelentes estudos sobre o tema, como “a caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana”, do Professor JUNQUEIRA DE AZEVEDO (03). Partindo da constatação de ser a “dignidade da pessoa humana” um “conceito jurídico indeterminado”, porém utilizado com freqüência em direito público, (04) defende o autor a superação da concepção insular da pessoa humana (fundada no homem como razão e vontade ou como autoconsciência), para uma “concepção própria de uma nova ética, fundada no homem como ser integrado à natureza, participante do fluxo vital que perpassa há bilhões de anos, e cuja nota específica não está na razão e na vontade (…) e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem de sair de si mesmo, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem”. (05)

Tratando da “pessoa humana como valor unitário e sua proteção integral” no ordenamento jurídico nacional, escreve TEPEDINO: “no caso brasileiro, em respeito ao texto constitucional, parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade”. (06)

Para GEDIEL, “a revitalização do conhecimento jurídico, por meio dos textos constitucionais e da doutrina constitucionalizada, permitiu aos estudiosos do Direito Civil refundir os direitos fundamentais, originalmente erigidos contra o Estado, com os direitos de cunho privado, para destacarem o seu núcleo comum, localizado na dignidade humana”. (07)

Em tal perspectiva, a CR, norma suprema do ordenamento jurídico e garantia da unidade do sistema, impõe seus princípios e valores ao nível infraconstitucional, enfraquecendo a clássica dicotomia “direito público/direito privado”. (08)

A Constituição é a norma fundamental a determinar os valores éticos e morais a serem seguidos pelo legislador infraconstitucional na elaboração das leis. Assim, necessário afastar a idéia de que as Constituições são meros documentos políticos a impor limites ao legislador, com suas normas programáticas. Ao revés, afirma-se a efetividade das Constituições, as quais contém normas jurídicas dotadas de aplicabilidade direta às relações de direito privado, o qual deve refletir os princípios e os valores da lei maior.
Neste sentido, ressalte-se a lição de FACHIN: “no domínio juscivilístico não estão tão-só as regras tradicionalmente aplicáveis às relações de Direito Civil. Chamadas à colação estão as normas constitucionais e nelas encartados os princípios constitucionais, vinculantes e de caráter normativo (…) As coordenadas constitucionais só tem limite nos próprios princípios, não podendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou ordinária, contrastar essa diretiva máxima do Estado democrático de Direito”. (09)

Assim, a tutela dos direitos de personalidade afirma-se (fundamentalmente) em nível constitucional. Logo, a matéria objeto dos artigos 11 a 21 do CCB, tratando a proteção da pessoa em aspectos de sua integridade física, moral e intelectual, deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana.

A tarefa de dar efetividade ao conceito de dignidade da pessoa humana é de todas as pessoas, mas de modo especial dos juristas: a) os professores e aos doutrinadores incumbe traçar os contornos teóricos e culturais do aludido princípio; b) aos advogados, aos magistrados, aos promotores de justiça e outros profissionais do Direito, delega-se a missão de aplicar os preceitos constitucionais e de interpretar as leis infraconstitucionais à luz do princípio da dignidade e de outros expressos no texto da CR.

NOTAS

(01) LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado, Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo : RT, 1998, p. 283 .

(02) CAPELO DE SOUSA, Radinbranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra, Portugal : Coimbra Editora, 1995, p. 581-584.

(03) JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Caracterização jurídia da dignidade da pessoa humana. In: Revista dos Tribunais n$ 797. São Paulo: RT, março de 2002, p. 11-26.

(04) O autor exemplifica com a previsão da dignidade da pessoa humana na Declaração Universal dos Direitos do Homem; Constituição da República Italiana; Lei Fundamental da Alemanha; e Constituição da República Portuguesa.

(05) Partindo da idéia de “intangibilidade da vida humana” e de proteção de outros direitos fundamentais, o Professor JUNQUEIRA DE AZEVEDO exemplifica a concretização jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana, compreendendo: a) a proibição da eutanásia; b) a proibição da interrupção voluntária da gravidez; c) a impossibilidade da introdução legislativa da pena de morte; d) o respeito à integridade física e psíquica da pessoa humana; e) o respeito às condições mínimas de vida; f) o respeito aos pressupostos mínimos de liberdade e convivência igualitária entre as pessoas, denominadas “condições culturais”.

(06) “A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1.º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3.º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5.º, bem como a garantia residual estipulada pelo artigo 5.º, § 2.º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte”. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 47.

(07) GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo. Curitiba: Moinho do Verbo, 2000, p. 06. Trata ainda o autor da relação entre direitos de personalidade e direitos fundamentais: “Os direitos da personalidade integram os direitos fundamentais, ao se liberarem de sua origem puramente individualista e se apresentarem comprometidos com a solidariedade social (…) A fundamentalidade dos direitos da personalidade rompe com a fragmentação das categorias jurídicas de direito público e privado, à medida que contempla, concomitantemente, poderes e deveres, que se unificam no ser humano e se projetam no sujeito e no cidadão (…) A aproximação entre os direitos fundamentais e os direitos da personalidade, nos textos constitucionais mais recentes, a exemplo do que ocorre com a CF, permite não só contemplar os direitos de personalidade, a partir de uma cláusula geral de proteção (art. 1.º), mas também consagrar, explicitamente, um rol desses direitos (art. 5.º)”. (Idem, p. 48-50).

(08) Maria Celina Bodin de Moraes TEPEDINO, estudando a “constitucionalização do direito civil”, assinala ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a indicar que o antagonismo entre direito público e direito privado já não faz mais sentido. Segundo a autora, a CF deve orientar e informar todos os ramos do direito, devendo a hermenêutica do direito privado ser feita à luz das disposições constitucionais. TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil n.º 65. São Paulo : RT, julho-setembro de 1993, p. 26-28.

(09) FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 33-34.

Flori Antonio Tasca é professor Universitário no Estado do Paraná. fa.tasca@uol.com.br.

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