A questão da responsabilidade das casas de bingo, modalidade de jogo proibida no país com a edição da MP 168 de 20 de fevereiro de 2004, nos leva a fazer algumas digressões. A questão é a seguinte: de quem a responsabilidade sobre o pagamento de verbas rescisórias devidas aos empregados, na impossibilidade de continuidade do negócio em virtude da MP?

O artigo 486 da CLT, caput, menciona:

Art. 486. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. (Redação dada pela Lei n.º 1.530, de 26.12.1951).
§ 1.º…§2.º…§3.ºS….

Russomano(1) explica que, em essência, o factum principis é espécie de força maior, que na legislação da maioria dos países é colocado nesse capítulo, e que não prevê a possibilidade de o empregado exigir do empregador, no caso, qualquer indenização. Assim se pronuncia Sanseverino, na Itália.(2)

A lei brasileira, todavia, adotou solução diversa: o ato da autoridade não elide a possibilidade do recebimento da indenização pelo empregado, apenas transfere-a ao ente público. Em nosso sentir, a teor do dispositivo legal, apenas a indenização ficará a cargo da administração pública, eis que o artigo referia-se à antiga indenização de antiguidade, hoje “substituída” pela multa de 40 % do FGTS.

Discorda desse entendimento Estevão Mallet(3) que o amplia para responsabilizar a administração por todas as verbas diretamente resultantes da rescisão. Em artigo sobre o tema, menciona : “Verificado, porém, o factum principis, pela paralisação da atividade, em decorrência de ato do Poder Público, para o qual não concorreu o empregador, cabe à autoridade responsável arcar com os prejuízos ocasionados. Tal o que se passa, por exemplo, quando a lei proíbe a exploração de determinada atividade, antes permitida, suprime empresa pública ou extingue cartório”. No caso dos bingos, portanto, deve o governo arcar com o valor da multa do FGTS? Pensamos que não.

A atividade de bingo no Brasil foi permitida pela Lei 9.615/1998, a chamada “lei Pelé”, como forma de fonte de arrecadação para o Desporto. A lei estabelecia uma série de requisitos para a autorização:

Art. 60. As entidades de administração e de prática desportiva poderão credenciar-se junto à União para explorar o jogo de bingo permanente ou eventual, com a finalidade de angariar recursos para o fomento do desporto.

Art. 61. Os bingos funcionarão sob responsabilidade exclusiva das entidades desportivas, mesmo que a administração da sala seja entregue a empresa comercial idônea.

Art. 62. São requisitos para concessão da autorização de exploração dos bingos para a entidade desportiva: I – filiação a entidade de administração do esporte ou, conforme o caso, a entidade nacional de administração, por um período mínimo de três anos, completados até a data do pedido de autorização; (II e III vetados). IV – prévia apresentação e aprovação de projeto detalhado de aplicação de recursos na melhoria do desporto olímpico, com prioridade para a formação do atleta; V – apresentação de certidões dos distribuidores cíveis, trabalhistas, criminais e dos cartórios de protesto;

VI – comprovação de regularização de contribuições junto à Receita Federal e à Seguridade Social; VII – apresentação de parecer favorável da Prefeitura do Município onde se instalará a sala de bingo, versando sobre os aspectos urbanísticos e o alcance social do empreendimento; VIII – apresentação de planta da sala de bingo, demonstrando ter capacidade mínima para duzentas pessoas e local isolado de recepção, sem acesso direto para a sala; IX – prova de que a sede da entidade desportiva é situada no mesmo Município em que funcionará a sala de bingo.

Art. 63. Se a administração da sala de bingo for entregue a empresa comercial, entidade desportiva juntará, ao pedido de autorização, além dos requisitos do artigo anterior, os seguintes documentos:

I – certidão da Junta Comercial, demonstrando o regular registro da empresa e sua capacidade para o comércio;

II – certidões dos distribuidores cíveis, trabalhistas e de cartórios de protesto em nome da empresa;

III – certidões dos distribuidores cíveis, criminais, trabalhistas e de cartórios de protestos em nome da pessoa ou pessoas físicas titulares da empresa;

IV – certidões de quitação de tributos federais e da seguridade social;

VI…VII…VIII….

Art. 65. A autorização concedida somente será válida para local determinado e endereço certo, sendo proibida a venda de cartelas fora da sala de bingo.

Art. 73. É proibida a instalação de qualquer tipo de máquinas de jogo de azar ou de diversões eletrônicas nas salas de bingo.

Art. 74. Nenhuma outra modalidade de jogo ou similar, que não seja permanente ou o eventual, poderá ser autorizada com base nesta Lei.

Tais artigos, que colacionamos apenas para que se observem as exigências para a autorização, foram revogados pela Lei 9981 de 14 de julho de 2000, artigo 2.º:

Art. 2.º Ficam revogados, a partir de 31 de dezembro de 2001, os artigos 59 a 81 da Lei n.º 9.615, de 24 de março de 1998, respeitando-se as autorizações que estiverem em vigor até a data da sua expiração.

Sobreveio, todavia, o decreto n.º 3.659, de 14/11/2000 que regulamentava a autorização e a fiscalização de jogos de bingo. Tal decreto é de duvidosa legalidade, uma vez que cria normas não previstas na Lei 9615/98. Destaco alguns artigos:

Art. 4.º A autorização para explorar jogos de bingo abrangerá um único sorteio em se tratando de bingo eventual e, no caso de bingo permanente, um período máximo de doze meses.(negritei) Art. 5.º A autorização deverá ser requerida à CAIXA com antecedência mínima de trinta dias da data pretendida para o início do evento, instruindo-se o correspondente pedido com os seguintes documentos e informações….

Observa-se, de todo esse imbróglio legislativo, que a modalidade do jogo do bingo no país dava-se sob a forma de autorização, ou seja, para Hely Lopes Meirelles(4), ato unilateral, discricionário e precário pela qual a administração consente na prática de determinada atividade individual, inexistindo qualquer direito subjetivo à continuidade. Veja-se que a lei respeitou as autorizações em vigor, até a data da expiração.

Teixeira Filho(5) diz que o cancelamento de concessão a título precário não configura o factum principis. Outro argumento poderia ser levantado: o artigo 2.º da CLT atribui ao empregador o risco da atividade econômica, recebendo os lucros e arcando com os prejuízos. A Constituição Federal eleva o trabalho à condição de fundamento da ordem econômica, e o novo Código Civil amplia as hipóteses de responsabilização do empregador trazendo um fundamento objetivo no artigo 927, qual seja, o risco da atividade normalmente desenvolvida. Mais: caso haja a inclusão da fazenda pública na lide, sob a forma prevista nos parágrafos do dispositivo, haveria sério prejuízo à celeridade processual ante as peculiaridades atinentes ao ente público em juízo, afora a forma de pagamento por precatório, bastante penosa para o trabalhador. O dispositivo do º 3.º do artigo 486 da CLT foi recepcionado pelo artigo 114 da Constituição Federal. Diz, verbis:

§ 3.º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.

Entendemos, todavia, ao contrário do que preleciona Estevão Mallet(6), e do que é, de fato, a doutrina dominante, que não se instala, no momento em que se inclui a fazenda pública na lide, uma ação que refuja à competência da Justiça do Trabalho e que justifique o deslocamento de jurisdição. Trata-se de lide em que o juiz do trabalho dirá qual a responsabilidade de cada réu com relação às verbas do trabalhador, como se decide no caso da responsabilidade comum entre empresas, e qualquer outra manifestação que não seja visando a reparação ao trabalhador se dará de modo incidental. O que não é possível é a justiça do trabalho negar a jurisdição ao trabalhador e remetê-lo a um caro, moroso e incerto procedimento na Justiça Comum. A postura majoritária, a meu ver, reforça o argumento de que o tal “factum principis” é de rara aplicação, senão inaplicável. Aliás, no dizer de Carrion(7), citado por Mallet(8) como representante da doutrina dominante em favor do deslocamento da jurisdição: “O instituto se esvaziou no decorrer do tempo, se é que já não nasceu morto; a prática revela dois aspectos: se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas por inteiro; se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo”.

O TST já tem posição à respeito, em julgado da Lavra do Min. Dalazen, dispõe que: a revogação de concessão de linha de transporte fluvial é ato previsível praticado pela administração publica no exercício do poder discricionário e não caracteriza “factum príncipes” (RR 187221 – 1995).

A empresa possui condições para arcar com os ônus de uma ação contra o Estado, aplicando-se aí um princípio de eqüidade e levando-se em conta o caráter protetivo do ordenamento trabalhista, que se alastra ao processo. O trabalhador postula verba alimentar, não pode ficar à espera da resolução da pendenga entre o governo e os bingos, que, aliás, já se arrasta há mais de dez anos.

Assim, conclui-se que, no caso dos bingos, os empresários sócios do negócio são responsáveis pelo pagamento integral das indenizações aos empregados, decorrentes da cessação da empresa, em face da MP 168/2004, uma vez que assumiram o risco da atividade realizada sob autorização a título precário.

NOTAS

(1) Comentários à CLT, Forense: Rio de Janeiro, 1982 p.574 e segs. e O empregado e o empregador no direito brasileiro, 1958, José Konfino editor, Rio de Janeiro, p367.
(2) “Si tratta quindi di precisare l”applicazione al contratto di lavoro del l”art 1218 do cod.civil, il quale esonera il debitore dal risarcimento del danni, quando, in conseguenza dell”impossibilita derivante de causa a lui non imputabile, no abbia adempiuto allá sua obbligazione” (Sanseverino, Luisa Riva – Diritto Del Lavoro, Padova, Cedam, 1971, p.510).
(3) Temas de Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 1998 p.82/83.
(4) Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1999.
(5) Institiuições, São Paulo: LTr 1996
(6) Op cit p.85
(7) Comentários à CLT, São Paulo, Saraiva: 2003.
(8) Op cit p. 85

Luciano Augusto de Toledo Coelho é professor de Direito do Trabalho na Universidade Tuiuti do Paraná. Assistente de gabinete e ex-assessor de Juiz no TRT do Paraná. Mestrando em Direito Econômico e Social pela PUCPR.

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