O presente ensaio abordará questão referente à pertinência da discussão de excesso de linguagem na decisão de pronúncia, após a reforma pontual do Código de Processo Penal (Lei n.º 11.689/08).
Há pouco mais de um ano, veio a lume no ordenamento jurídico nacional a Lei n.º 11.689, de 9 de junho de 2008, que alterou o procedimento dos crimes dolosos contra a vida, dando nova feição ao Tribunal do Júri.
O antigo § 1.º, do art. 408, passou a ter a seguinte redação: “Art. 413. (…) § 1.º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria e participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”.
A razão de ser desse dispositivo foi evitar que a pronúncia se transformasse em verdadeiro ato de acusação, pois a indicação da certeza de autoria influenciaria o Conselho de Sentença. O novo procedimento apenas tornou explícito o que já era um entendimento jurisprudencial pacificado(1).
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n.º 96123/SP, Rel. Min. Carlos Britto, Primeira Turma, cujo julgamento ocorreu em 3/2/2009 (DJe 6/3/2009), firmou o entendimento de que não haveria mais interesse de agir em recurso contra decisão de pronúncia por excesso de linguagem, sob o argumento de que com a reforma não existiria mais a possibilidade de leitura da sentença de pronúncia quando dos trabalhos no Plenário do Júri(2).
Entendeu-se que os abusos cometidos pelo juiz togado em face do excesso vernacular, não mais exerceriam influência sobre a convicção dos jurados. Porém, não se pode cogitar ausência de interesse de agir em recurso que sustenta nulidade por excesso de linguagem, porque o novo sistema não obstaculizou o contato dos jurados com a decisão de pronúncia. Ao contrário, ainda permanece a necessidade de utilização pelo juiz togado de um discurso sóbrio e comedido.
É que o § 2.º e o § 3.º, do art. 480, do Código de Processo Penal, acenam para a possibilidade dos jurados efetivamente lerem a pronúncia. Caso algum deles não se sinta habilitado para proferir o veredicto, poderá ter vista dos autos, desde que o solicitem ao juiz presidente. Por outro lado, após formado o Conselho de Sentença “(…) o jurado receberá cópia da pronúncia (…)” (CPP, art. 472, parágrafo único).
É elementar que nos intervalos da sessão do Júri, munido desse documento, o juiz de fato irá consultar a decisão do Juiz de Direito. Ao tomar conhecimento direto da condenação prévia, com quem ficará o cidadão leigo que somente agora irá conhecer a causa? Com a defesa ou com a acusação aprovada na decisão judicial?
O acórdão isolado do Pretório Excelso acima referido sugere o cancelamento indevido da proibição ao excesso de linguagem, tornando letra morta o § 1.º, do art. 413 (“limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios…”).
Se da pronúncia viciada pela eloquência acusatória não for mais possível recorrer (por falta de interesse de agir), então não haverá mais razão para o magistrado limitar o juízo de valor nela empregado.
O entendimento conduz ao raciocínio de que a pronúncia poderia se tornar verdadeira decisão de mérito, contra qual não haveria mais interesse em recorrer. Intolerável contradição.
Por tais razões, digno de registro o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça (Quinta Turma), consubstanciado nos autos de REsp 946.289/PE, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 19/2/2009, pela pertinência da discussão do excesso de linguagem em sede recursal, mesmo após as inovações introduzidas pela Lei n.º 11.689/08: “(…)
2. Muito embora o STF, em recente julgado de 3/2/09 (HC 96.123/SP, Rel. Min. Carlos Brito), tenha expressado entendimento no sentido de que em razão da superveniência da Lei 11.689/08 que deu nova redação ao art. 478 do CPP, impossibilitando as partes fazerem referências à sentença de pronúncia durante os debates não mais haveria o interesse de agir das impetrações que alegassem excesso de linguagem, de outro lado, a norma inserta no novo art. 480, § 3.º, do CPP permite aos jurados a oportunidade de examinar os autos logo após encerrados os debates, o que, em tese, e ao meu sentir, justificaria tal interesse. (…)”.
Notas:
(1) (STJ, 5.ª T., REsp 93.552/PB, rel. Min. Edson Vidigal, j. 14/4/1998, v.u., RT 756/532; STF, 1.ª T., HC 68.606-1, rel. Min. Celso de Mello, j. 18/6/1991, v.u., RT 682/393; STJ, 5.ª T., RHC 4.748/GO, rel. Min. Jesus Costa Lima; j. 16/8/1995, m.v., DJU 4/9/1995, p. 27.841).
(2) CPP: “Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: I à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;”.
Luis Otávio Sales é advogado. www.dottieadvogados.com.br
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