No final dos anos 80, numa pequena revista de Nova Iorque, The National Interest, o conceituado historiador nipo-americano Francis Fukuyama tinha oportunidade de publicar um ensaio interessantíssimo (e até certo ponto instigante e provocador), intitulado The end of the history (O fim da história). No ensaio em apreço, o historiógrafo procurava defender, com uma espécie de volúpia intelectual, a tese consubstanciada no próprio título do trabalho. A certa altura do seu texto, ele faz a seguinte afirmação, que considero nuclear, decisiva: ?O que estamos testemunhando, na atualidade, não é apenas o fim da Guerra Fria ou o término de um período específico da história do pós-guerra, mas o fim da história enquanto tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano?.
Como considerar a tese do ?fim da história?, representada pelo ?ponto final da evolução ideológica da humanidade? e, paralelamente, pela ?universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano?? Ambiciosa ou pretensiosa demais, esdrúxula, inconseqüente? Talvez. Apelativa, ou seja, formulada simplesmente ?pour épater le bourgeois?, para fazer sensação com seu malabarismo ou prestidigitação conceitual? Provavelmente. Discutível e contestável, no todo ou em parte? Certamente que sim.
Uma coisa posso garantir: a extravagante e curiosa tese não foi inspirada pelo famoso ?daimon? que assessorava Sócrates, como informa Platão. E diga-se, de passagem, que ?daimon? não significa demônio, mas antes anjo ou espírito benfazejo. No caso, portanto, o ?daimon? só podia ser outro…
Seja como for, é quase certo que, ao tomarem conhecimento da tese de Fukuyama, devem ter estremecido nos seus túmulos os ossos, ou melhor, o pó de uma plêiade admirável de historiadores, a começar pelo pai da história, o grego Heródoto, e continuando com Tucídides e Plutarco, Júlio César e Tito Lívio, Froissart e Fernão Lopes, Vico e Thiers, Michelet e Bloch, Spengler e Pirenne, Arnold Toynbee e ?tutti quanti?. (A rigor, a tese do nipo-americano não é inteiramente nova. Já foi tangenciada, de leve, por Hegel e Nietzsche, e até mesmo por Max Weber e Karl Jaspers.)
Não obstante, e data vênia a todos esses luminares do pensamento, a verdade é que a História não acaba. Não pode acabar, pelo menos enquanto continuarem a existir homens, sociedades, nações. Só o ?fim do mundo? (leia-se Apocalipse, sempre possível e sempre provável) implicará o ?fim da história?. Até porque, no dia seguinte a esse Dia ominoso e terrível, todos os historiadores estarão mortos…
Assim sendo, não posso admitir nem aceitar a tese do simpático Fukuyama. Ao contrário, permito-me apontar, isso sim, para a necessidade do fim inexorável de um certo tipo de historiadores que cultivam um subjetivismo deletério. Substituindo os documentos, sem os quais não pode haver história verdadeira, legítima, pelas opiniões, pelos pareceres, pelas interpretações, pelas exegeses mais ou menos conspícuas, mais ou menos rebuscadas.
Penso que o historiógrafo realmente capaz, hábil, competente, terá que fugir do impressionismo como o diabo da cruz. Deverá evitar preconceitos e pré-juízos. E deverá cultivar sobretudo a isenção, a imparcialidade, a objetividade. Numa palavra: a ética. Esse historiador ideal, fazendo da eticidade, da ?sittlichkeit? de Hegel, o seu ?leit motiv?, não pode limitar-se a olhar para o passado, para os tempos pretéritos, para os homens, os acontecismos, os ?fastos? de antanho, com lupa ou lente, microscópio ou telescópio. Mais do que trazer o passado até nós, atualizando-o, presentificando-o, mister se faz que ele viaje para os latifúndios de outrora, para situar-se, radicar-se lá, tentando investigar com ?ostinato rigore? o ?tempo & o modo? à sua volta, em seu entorno, procurando perceber, compreender, ver, cheirar, ouvir (numa palavra: sentir)o quê, como e quando aconteceu, antigamente.
Estas considerações breves, incompletas, talvez insignificantes, têm pelo menos um propósito: o de desmistificar (não digo demolir por uma simples razão: quem sou eu para fazê-lo?) a inteligentíssima mas absurda tese de Fukuyama.
Fim da história? A história não acaba pelo simples decreto de um historiador, por mais notável que ele seja. A história continuará, os historiadores continuarão, ?per omnia secula seculorum?. Pelo menos até o dia do Juízo Final.
Enfim, se eu fosse humorista, talvez fizesse a seguinte afirmativa final: a tese do fim da história é realmente o fim. Da picada…