No final do séc. XIX, desde os estertores da centralização de nosso segundo Pedro de Alcântara, o Brasil experimentava no plano político e econômico uma lenta ?americanização?, conduzida em seguida com maestria nas mãos de Rio Branco e em plena sintonia com os presságios de Monroe e Roosevelt. A América era, doravante, o lugar dos ?americanos?, descolonizados, independentes, ?autônomos?, que passavam a contrapor-se à força do concerto europeu de poderes e a toda a opressão conservadora que constituiu a triste historiografia latino-americana.
Se no sécs. XVI e XVII o capital flamengo nos colocou economicamente no mundo, e nos sécs. XVIII e XIX o capital inglês nos conduziu à liberdade do exclusivo metropolitano e do lado ?negro? de nossa história, o final do séc. XIX e o séc. XX fazem aparecer o capital norte-americano na compra de nossos excedentes de café e na proclamação de nossa República. Os EUA se tornam o ?novo parceiro?, a nova ?mão-condutora?, e o Brasil europeu passou a ser o Brasil ?norte?-americano.
Essa aproximação não foi apenas econômica ou política, mas o foi, sobretudo, cultural. Se antes Bilac se regozijava e se destacava escrevendo em francês, e nossa elite jurídica dançava no antigo paço os passos da Polca, da Mazurca, da Valsa, desde então, os brasileiros, quando não brindavam nos Frevos ou nos Chorões, estavam lentamente sendo norte-americanizados, e seus saracoteios bamboleavam ao som do Cake-Walk, Two-Step, Blackbotton, Jazz, Fox-trot, etc.
Nossa elite musical trocou o choro das flautas e do oficlide pelo som nobre do saxofone. Nossa elite política, formada por pequenos industriais, mas, especialmente, por juristas (professores, magistrados, advogados, promotores) trocou suas influências franco-germânicas pelo gosto do american way of life. O Brasil era culturalmente um país hollywoodiano.
Apesar da eqüidistância pragmática intentada no início por Getúlio, o Brasil foi paulatinamente se tornando cada vez mais norte-americanizado. Os Estados Unidos não se tornaram apenas nosso agente econômico, mas nosso grande pedagogo. E assim, a elite política, que estava acostumada com as aventuras amorosas nas garçonières e a auto-exibição nas pelouses dos hipódromos, passou a fazer footing nas avenidas; talqualmente o povo a deleitar-se nos shows ao som do rock?n roll.
Esse completo alinhamento político-econômico e cultural à Nova Inglaterra, se por um lado permitiu o avanço da substituição das importações e da industrialização nacional, e, logo, uma possibilidade de desenvolvimento econômico, trouxe, por outro, inevitavelmente, uma aniquilação da cultura nacional, especialmente, uma antropofagia modernista às avessas no sistema educacional brasileiro.
Se antes o romântico iluminismo europeu, mesmo aos tropeços, elitista, mesmo com as ?idéias fora do lugar?, como bem gosta Roberto Schwarz, tentava construir um ensino voltado à busca por uma cultura do povo brasileiro, lavrada a sangue índio e a sangue negro (Darcy Ribeiro), o consumismo norte-americano invadiu os bancos escolares, as faculdades de direito, e, há mais de meio século, tem contribuído para construir um modelo de ensino frágil, superficial, pragmático e utilitarista.
Nesse caminho, o ensino jurídico também a certo ponto se norte-americanizou. Não adotou a perspectiva casuística (ainda, enquanto os ?cases? não tomarem conta do ?novo modelo? de jusensino), talvez por simples ausência de alteração legislativa, porém esse modelo assumiu em todos os seus níveis um papel fundamental: otimizou raciocínios, tecnicizou currículos, agilizou respostas forenses, publicizou imagens de professores-palestradores showmen, em suma, empobreceu a juspedagogia brasileira.
Essa giganta aproximação não seria de todo ruim se fora feita com cautela ou se se restringisse à recepção de construções teóricas aprimoradas de brilhantes intelectuais norte-americanos, cujos objetivos não se mostrariam como neoimperilistas, mas como prudentes reflexões sobre o mundo. Todavia, esse achegamento à cultura norte-americana trouxe para academia jurídica uma triste realidade, seja no que diz com o conteúdo, seja com o corpo discente, seja com a docência nacional. Tudo, infelizmente, americanizou-se.
O conteúdo do jusensino brasileiro débil e burrego constrói-se às margens e às obviedades norte-americanas. Abandonam-se paulatinamente as grandes teorias, as investigações mais detalhadas, o gosto pelo rigor conceitual, pela seriedade de pesquisa e, especialmente, pela ?austeridade acadêmica?, e, no seu lugar, aparecem o imediatismo das respostas, a efetividade dos dispositivos, o deleite com as regras de decisão.
O corpo docente, por sua vez, em grande parte (embora alguns dignos devam ser excepcionados, porque fazem uma resistência, ora velada, ora aberta), também se deixou levar pela fluidez e superficialidade da formação pessoal e do ensino de seus alunos. Às vezes mal-intencionados, utilizando-se da academia para angariar clientes junto com os alunos ou estagiários para os seus gabinetes, contudo, às vezes muito bem-intencionados, procurando criar mecanismos para facilitar o aprendizado.
Assim, espécies de mnemônias jurídicas começaram a correr os bancos jusescolares por culpa de editores, mas, sobretudo, por culpa de professores. Tal como na pré-escola, em que os incipientes alunos recebem de seus pedagogos construções feitas, cujo nobre e necessário objetivo é a memorização léxica, o aprendizado da formação sintática e mesmo a ortoepia pela repetição exaustiva dessas fórmulas rítmicas (mnemônias): ?um, dois, feijão com arroz; três, quatro, feijão no prato?, ou mesmo as regionalistas ?tem picolé, seu José; é de juçara, dona Januária; é de murici, dona Lili; é de Abacaxi, seu Gigi?, etc., no jusensino elas também têm ocorrido.
Os alunos, longe das aulas feitas com discussão de textos ou debates e longe até da pesquisa e dos projetos de extensão jurídicas, tão fundamentais para a formação de ?juristas curadores de si?, têm sido limitados ao conhecimento que forma, que constitui, que os torna virtuosos, como bem queria a paideía grega.
Cada vez mais são conduzidos por seus mestres, americanizados, a fazerem monografias concisas, de rápidas leituras, papers, quando não o deveriam, já que a concisão e a capacidade de ?dizer-se? em parcas palavras e orações é privilégio de poucos machadianos. Do mesmo modo são levados a ler as tais sinopses, vez que os exames assim lhes auferem o ?conhecimento?, quando muito não as indicam em seus planos de ensino.
O grande problema é que, mesmo para os docentes bem intencionados (porque os mal não têm justificativa) essa facilitação fez os alunos perderem o gosto pela pesquisa, pela reflexão, pela abstração, pelo demorar-se com um texto, pelo ?saber com sabor?, no bem querer de Roland Barthes, pelo pacientar-se com o futuro econômico. Resumos, sumários, esquemas, cursos, sínteses, sinopses jurídicas prontificaram o jusconteúdo aos acadêmicos, mas abreviaram, concentraram assuntos, e, sobretudo, restringiram nessa medida o conhecimento. Somos, nada mais que uma boa coletânia de vernáculos e uma boa reunião limitada de conhecimentos aos nossos alunos. É preciso refletir a prática do ensinar.
Por fim, a norte-mericanização também se faz sentir no corpo discente. Os alunos das faculdades de direito (e aqui novamente inúmeros devem ser excluídos, porque procuram fugir a essa formatação) parecem constituir-se das imagens que os meios de comunicação acabaram por lhes vender. Se fossem apenas questões estéticas, o mal seria menor, a grande questão é que toda a principiologia da sociedade de consumo norte-americana os arrebatou na própria formação pessoal.
Os acadêmicos de direito parecem, nas palavras de Mario Quintana, ?viverem eternamente barbiturizados pelas novelas da Televisão?, e, desse modo, pelo gosto das coisas fáceis, rápidas, sem conteúdo, criadas com fim apenas da satisfação dos sentidos. Perdidos, não sabem exatamente porque fazem Direito, ou mesmo porque estão na faculdade, quando gostariam de estar fazendo outra coisa, que também não sabem bem ao certo o quê.
Padronizados pelo consumismo norte-americano e pela orientação desfalcada de professores também norte-americanizados, que lhes retiram conteúdos pela sinopse, apresentam uma nítida ?infantilidade?. Essa supressão de conteúdo, seja pela superficialidade do conhecimento passado, seja pela alienação produzida pela cultura de massa, impede-os de se madurarem.
Assim, em pleno curso superior, portam em suas malas experiências que deveriam ter ficado no passado: cadernos com imagens de ursinhos Walt Disney, canetas com estrelas que acendem com o apoio sobre o caderno, estojos Hello Kitty, ou mesmo práticas estudantis, como trabalhos entregues em folha almaço, provas feitas à lápis, gírias que retiram a variedade vocabular, e, como um bom passe-partout, impelem seus interlocutores a uma mesmice inevitável. Há, esteticamente, enfim, uma ?cor-de-rosalização? do mundo, cuja inocência, se não bela, deixa-os deleitados e presos numa irresponsabilidade peculiar da adolescência tardia.
No entanto, o que há de mais pesaroso é a importação do princípio norte-americano do I don?t care, que parece constituir-se numa espécie de mediação quase universal a ponto de deixá-los desleixados com o mundo. Inúmeras situações admitem na prática o uso do I don?t care e suas traduções também não são poucas, mas se concentram, talvez, no famoso (recentemente divulgado por fraca música de massa) ?tô nem aí!?.
Essa prática norte-americana de não se importar com nada se apresenta de diferentes maneiras no campo político, econômico, social, lingüístico, mas, especialmente, no âmbito antropológico. Vê-se nas variantes próximas: I couldn?t care less! (Eu não poderia me importar menos!), This definitely doesn?t concern me! (Isso definitivamente não me diz respeito!); Why should I know/worry? (E eu com isso?), em suma, whatever!. Há também às vezes em que são empregadas de maneira irresponsável: Include me out! (To fora! Me tire disso!); ou com vontade de menosprezo: Beats me! (Sei lá!); I have/got no idea! (Não faço idéia!); How should I know! (Como eu deveria saber!); I don?t give a damn (Não ligo para isso, não estou nem aí!); What?s that to me? (Não dou a mínima!); ou com vontade de desafio: And so what? (E daí?); Who cares? (Quem se importa?); ou com total relapso: Never mind! (Deixa pra lá! Não liga pra isso!) Forget it! (Esquece!) Big deal! (Grande coisa!).
Seja lá o sentido próprio movido pelo desprezo, pela irresponsabilidade, pelo relapso, pelo desafio, o triste é que esse princípio norte-americano contaminou parte significativa dos acadêmicos de direito no Brasil, que parecem estar a todo instante dispostos a não se preocupar com nada, a deixar tudo para depois, a não se importar com coisa alguma, em suma, a fazer do ?tô nem aí!? um modo de ser, uma Lebensfhürung (condução da vida), segundo Weber, uma forma de agir. Essa é uma forma de norte-americanização da alma, muito mais dura e profunda que a não menos trágica corrupção estética.
Desse modo, o american way of life se espraiou pelo mundo, o que é evidente, mas não poderia ter penetrado, ao menos em seu lado nefasto, no universo acadêmico jurídico. É preciso saber disso para que possamos dele nos afastarmos. É preciso fugir a tudo isso, sejam professores, sejam acadêmicos, à sedução das coisas práticas, dos fest-foods teóricos, da falta de compromisso. É necessário deixar a mandriice e a pachorra de lado que nos passarinha, que nos atenta e nos encanta, e optar pelas leituras mais bem construídas, mais bem refletidas, que nós brasileiros somos capazes certamente de fazer. Optemos pelo ensino paciencioso, pela disposição e pela prudência que se constrói lentamente numa academia jurídica à brasileira, sem síntese, sem plágios, sem ?Ctrl?s C e Ctrl?s V?!
Guilherme Roman Borges é advogado; mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito na UFPR; e professor de Economia e Direito Econômico no Unicenp.