O intelectual e pensador italiano Norberto Bobbio elaborou um ensaio para uma conferência em 1983 abordando a virtude da serenidade, analisada sob o prisma do diálogo entre a moral, o direito e a política, publicado no livro intitulado ?Elogio da serenidade?(1), do qual podemos extrair para reflexão os ensinamentos abaixo sintetizados.
Diante do riquíssimo catálogo das virtudes, Bobbio escolheu precisamente a serenidade, que advém da palavra italiana mitezza, que somente a língua italiana herdou do latim e que foi empregada no texto com o significado aproximado de ?moderação? ou ?suavidade?.
Serenidade é aquela virtude que alcança maior profundidade que a mansuetude. Sereno não significa ser manso, porque mansuetude é uma disposição do espírito do indivíduo (manso, calmo, tranqüilo, não se ofende por pouca coisa, vive e deixa viver, não reage à maldade gratuita).
A serenidade é ?uma disposição de espírito que somente resplandece na presença do outro: o sereno é o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si?. O filósofo Carlo Mazzantini faz um elogio à serenidade, como sendo a única suprema potência que consiste em ?deixar o outro ser aquilo que é?. Como colocar a virtude da serenidade na fenomenologia das virtudes? Bobbio criou uma distinção entre virtudes fortes e virtudes fracas, o que não significa que sejam positivas ou negativas.
Relaciona como virtudes fortes: a coragem, a firmeza, a bravura, a ousadia, a audácia, o descortino, a generosidade, a liberalidade, a clemência, que são típicas dos potentes, isto é, daqueles que têm o ofício de governar, dirigir, comandar, guiar, e a responsabilidade de fundar e manter os Estados.
E como virtudes fracas: a humildade, a modéstia, a moderação, o recato, a pudicícia, a castidade, a continência, a sobriedade, a temperança, a decência, a inocência, a ingenuidade, a simplicidade, e entre estas a mansuetude, a doçura e a serenidade que são próprias do homem privado, do insignificante, do que não deseja aparecer, daquele que na hierarquia social está embaixo, não tem poder algum, não deixa traços nos arquivos em que devem ser conservados apenas os dados dos personagens e dos fatos memoráveis.
Bobbio chama estas virtudes de fracas, não porque as considera inferiores, mas porque caracterizam aquela outra parte da sociedade, na qual estão os humilhados e os ofendidos, os pobres, os súditos que jamais serão soberanos, aqueles que morrem sem deixar outra pista de sua passagem pela terra que não uma cruz com o nome e data em um cemitério, aqueles de quem os historiadores não se ocupam porque não fazem história, porque são uma história diversa, com h minúsculo, a história submersa, ou melhor, a não história.
Na história não há lugar para os serenos e sim para os ?heróis?, aqueles a quem é lícito o que não é ao homem comum, até mesmo como o uso da violência.
Na galeria de poderosos, alguma vez foi visto o sereno? Ao fazer uma apologia à serenidade, Bobbio destaca que opostas à serenidade como ele a entende, são a arrogância, a insolência, a prepotência, que são virtudes ou vícios, segundo as diversas interpretações do homem político. A serenidade não é uma virtude política, antes é a mais impolítica das virtudes. A serenidade chega a ser mesmo a outra face da política.
A serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência. A serenidade é contrária à insolência, que é a arrogância ostentada. A prepotência é abuso de potência não só ostentada, mas concretamente exercida. O prepotente pratica esta potência, por meio de todos os tipos de abusos e excessos, de atos de domínio arbitrário e, quando necessário, cruel.
O sereno é, ao contrário, aquele que ?deixa o outro ser o que ele é?, ainda quando o outro é arrogante, insolente, prepotente. Não entra em contato com os outros com o propósito de competir, de criar conflito, e ao final vencer.
O sereno é tranqüilo, mas não se confunde com o submisso, o concessivo e o afável. O submisso é aquele que renuncia à luta por fraqueza, medo, por resignação. O sereno não: refuta o destrutivo confronto da vida por senso de aversão, pela inutilidade dos fins a que tende este confronto, por um sentimento profundo de distanciamento dos bens que estimulam a cupidez dos demais, por falta daquela paixão que, segundo Hobbes, era uma das razões da guerra de todos contra todos.
?O sereno não guarda rancor, não é vingativo, não sente aversão por ninguém. Não continua a remoer as ofensas recebidas, a alimentar o ódio, a reabrir as feridas. Para ficar em paz consigo mesmo, deve estar antes de tudo em paz com os outros. Jamais é ele quem abre fogo, e se os outros o abrem, não se deixa por ele queimar, mesmo quando não consegue apagá-lo. Atravessa o fogo sem se queimar, a tempestade dos sentimentos sem se alterar, mantendo os próprios critérios, a própria compostura, a própria disponibilidade?.
A serenidade não é uma disposição para consigo mesmo, mas é sempre uma atitude em relação aos outros e somente se justifica no ?ser em relação ao outro?. A serenidade resvala o território da tolerância e do respeito pelas idéias e pelos modos de viver dos outros. O sereno não pede, não pretende qualquer reciprocidade: a serenidade é uma disposição em relação aos outros que não precisa ser correspondida para se revelar em toda a sua dimensão. A serenidade é um dom sem limites preestabelecidos e obrigatórios.
Para completar o quadro, Bobbio cita que ao lado das virtudes afins, existem as virtudes complementares, aquelas que podem estar juntas e que, estando juntas, se reforçam e se completam reciprocamente. Em relação à serenidade lembra de duas: a simplicidade e a misericórdia (ou compaixão), com uma advertência: a simplicidade é o pressuposto necessário ou quase necessário da serenidade e a serenidade é um pressuposto possível da compaixão.
Por ?simplicidade? entende a capacidade de fugir intelectualmente e praticamente das posições ambíguas. Dificilmente o homem complicado pode estar disposto à serenidade: ?vê intrigas, tramas e insídias por toda parte, e conseqüentemente tanto é desconfiado em relação aos outros, quanto inseguro em relação a si próprio?. Além do que, a serenidade ?pode (não deve) ser uma predisposição à misericórdia?.
Bobbio destaca que gostaria de ter a natureza do homem sereno, mas que se enfurece com freqüência excessiva. ?Ama as pessoas serenas, isto sim, porque são elas que tornam mais habitável este nosso cercado, a ponto de fazerem com que eu pense que a cidade ideal não é aquela fantasiada e descrita nos mais minuciosos detalhes pelos utópicos, onde reinaria uma justiça tão rígida e severa que se tornaria insuportável, mas aquela em que a gentileza dos costumes converteu-se numa prática universal?.
Assim como Bobbio apresentou a virtude da serenidade, é provável segundo o autor, que ela tenha adquirido a qualidade de uma virtude feminina. Trata-se de uma escolha não biográfica e sim metafísica, porque afunda suas raízes numa concepção do mundo que ele não saberia justificar.
Trata-se de uma escolha histórica: ?considerem-na como uma reação contra a sociedade violenta em que estamos forçados a viver?. Bobbio finaliza seu ensaio concluindo que identifica ?o sereno como o não violento, a serenidade como a recusa a exercer a violência contra quem quer que seja. A serenidade é, portanto, uma virtude não política. Ou mesmo, neste nosso mundo ensangüentado pelo ódio provocado por grandes e pequenos potentes, a antítese da política?.
A reflexão advinda dos ensinamentos de Bobbio nos leva a acreditar que é possível através da virtude da serenidade se contrapor à violência e defender a paz e o respeito à dignidade da pessoa humana, princípio reitor que orienta os Direitos Humanos. E, também nos inspira a acreditar que a sociedade e as instituições são capazes de promover as grandes mudanças em busca da não violência e da paz social quando, para além da serenidade, também está presente uma outra virtude que é a da coragem para impulsionar a mudança do cenário de exclusão, pobreza e desigualdade social rumo à igualdade e a solidariedade entre os seres humanos.
O Livro das Virtudes(2) nos lembra que ?a natureza contagiante de uma atitude corajosa por parte de alguém pode mudar um grupo inteiro. É a chave da coragem inspirada por Horácio na ponte e por Henrique V em Agincourt. Foi a chave para a coragem demonstrada por aqueles que, em silêncio, suportaram insultos ao se unir a Gandhi e a Martin Luther King Jr., em atos de protesto pacífico, para despertar a consciência pública contra a injustiça?.
O futuro exige um aperfeiçoamento de nossa democracia e revela a importância da ética na política, para que possa ser exercida como instrumento de efetivação dos direitos humanos, realçando o papel decisivo da educação para o desenvolvimento sustentável, centrado nos valores da família e na co-responsabilidade do Estado e do setor empresarial. Urge exigir dos governantes um plano de desenvolvimento sustentável, como prevê a Constituição Federal, e que insira a ?educação de qualidade para todos e com valores? como prioridade na agenda política. Eis aí a sinalização para a grande transformação pacífica da nossa realidade social.
Notas:
(1) Bobbio, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
(2) Bennett, William J. O livro das virtudes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
Maria Tereza Uille Gomemes é promotora de Justiça e presidente da Associação Paranaense do Ministério Público do Paraná.