Neste mês de julho comemora-se os 17 anos da sanção do Estatuto da Criança do Adolescente, que entrou em vigor em 12 de outubro de 1990. De lá para cá, forçoso reconhecer, milhões de nossas crianças e adolescentes continuam sendo perdidas para a subcidadania, experimentando a marginalidade social (isto é, colocados à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) e, em alguns casos (daqueles que se encontram em condições reais de vida absolutamente adversas, insuperáveis pelos meios tidos como legais ou legítimos), impulsionados no sentido da criminalidade. A sociedade brasileira, talvez pela manipulação ideológica que sofre ou mesmo por falta de solidariedade, não tem olhos e coração para enxergar os seus filhos vítimas do holocausto permanente da mortalidade infantil (que morrem em razão da fome, da desnutrição, de doenças facilmente evitáveis), nem as crianças afastadas das creches e do sistema educacional, nem os adolescentes sem possibilidade de profissionalização, nem mesmo as crianças e adolescentes que, entregues ao próprio azar de terem nascido no país, hoje o campeão mundial das desigualdades sociais, perambulam pelas ruas sobrevivendo da esmola degradante, estão entregues ao trabalho precoce ou à exploração sexual comercial, fazem uso de drogas (as ilícitas e as ?lícitas?), praticam atos anti-sociais ou infracionais (embora em relação a esses últimos se queira a mais rigorosa das sanções).
Por outro lado, o Estado Brasileiro, que continua se vangloriando da ampliação do superávit primário para o pagamento da dívida interna e externa (que, diga-se, deveria ter sido submetida, por comando constitucional, a uma auditoria até hoje não realizada), além de não garantir a todos os direitos fundamentais da pessoa humana (prometidos na ?Constituição Cidadã de 1988?, tais como saúde, educação, alimentação, habitação, trabalho digno, etc.), sequer desenvolve política de promoção social para atendimento das famílias empobrecidas e despossuídas. Ao mesmo tempo, sabemos, os políticos corruptos, os funcionários públicos peculatários, os empresários quadrilheiros e os grandes fraudadores do fisco, permanecem ?sangrando? impunemente os cofres públicos, desviando exatamente os recursos que seriam necessários para a efetivação de políticas sociais públicas. Os administradores já condenados por improbidade administrativa, assim como mensaleiros e sanguessugas de todas as espécies, são reeleitos e por isso mesmo os orçamentos públicos continuam a contemplar recursos para atender os interesses dos financiadores das campanhas eleitorais (os mesmos que, com o abuso do poder econômico, ferem de morte o caráter democrático de nosso processo eleitoral).
Em razão exatamente desse contexto de iniqüidades políticas, sociais e econômicas que as forças progressistas da sociedade brasileira devem, na perspectiva da construção de uma sociedade mais justa e igualitária (capaz, por isso mesmo, de instalar relações sociais solidárias e pacíficas), interferir positivamente para a implementação das regras do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tal diploma legal, formulado a partir dos ditames da doutrina da proteção integral, tem como principal objetivo o de universalização da cidadania infanto-juvenil, garantindo-se que todas as crianças e adolescentes possam a vir exercitar direitos que somente parte privilegiada dessa população hoje exercita.
Além do trabalho dos integrantes do sistema de Justiça (diga-se, de quem se espera mais afinco, especialmente na utilização das ações civis públicas para proteção dos interesses individuais, coletivos ou difusos relacionados a crianças e adolescentes) e da espontânea atividade do administrador público em favor das crianças e adolescentes (afinal, como sempre dizem eles, não é delas que depende o futuro do País?), importante a participação da sociedade nas instâncias democráticas dos Conselhos Tutelares (seja quando da escolha, pelo voto universal e facultativo, dos seus componentes ou, igualmente, inscrevendo-se como candidato a tal serviço de relevância pública, encarregado que é de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes, assim como atender casos concretos de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal, familiar ou social) e dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (órgão encarregado de formular, em todos os níveis, a política de atendimento dos direitos das crianças e dos adolescentes).
Penso que, no momento dos 17 anos de sua sanção, devemos todos empregar o melhor dos nossos esforços para que as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente deixem de ser tratadas como singelas declarações retóricas ou meras exortações morais (e, assim, postergadas em sua efetivação ou relegadas ao abandono) para se constituírem em instrumentos de materialização da cidadania infanto-juvenil. Daí, tratando-se de tornar concretos os direitos, comparece o raciocínio de que – além da escola, da família e de outros espaços adequados para o seu desenvolvimento – lugar de criança é nos orçamentos públicos, cumprindo-se dessa maneira o princípio constitucional da prioridade absoluta em prol da infância e juventude (que significa, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, preferência na formulação e execução das políticas públicas, assim como destinação privilegiada de recursos para a área). O acompanhamento da elaboração e execução das leis orçamentárias (começando pelos planos plurianuais, passando pela lei de diretrizes orçamentárias, até o orçamento propriamente dito) surge assim indispensável para a melhoria – sob todos os aspectos – das condições de vida das nossas crianças e adolescentes.
Não tenho dúvida de que esse é o caminho: fortalecimento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, de molde a que, em todas as localidades, sejam realizadas investigações destinadas a diagnosticar a efetiva situação da infância e da juventude para, em seguida, restar traçada adequada política de atendimento às necessidades detectadas (como motivo a festejar), cita-se, nesse aspecto, decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido da obrigatoriedade de efetivação, por parte do administrador público, da política deliberada pelos Conselhos de Direitos: ?Administrativo e Processo Civil. Ação Civil Pública. Ato Administrativo Discricionário: nova visão. 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido? – STJ, RESP 493811, 2.ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, DJ datado de 15/03/04).
Exemplos positivos nessa linha são a efetiva interferência do nosso Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (especialmente no estabelecimento de sistema para execução de medidas socioeducativas (seja com a criação de cinco novas unidades de internação ou com o financiamento para a instalação nos municípios do programa de liberdade assistida) ou a criação, em todas as universidades estaduais, de núcleos de defesa dos direitos da criança e do adolescente (com, entre outras, a função de assessorar regionalmente os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente no diagnóstico e na formulação das políticas para a área da infância e juventude) ou o Decreto n.º 276, de 30 de abril de 2007, do Município de Londrina (que estabelece o obrigatório acolhimento nas leis de conteúdo orçamentário das resoluções do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) ou, ainda, a atuação do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (que passou a verificar a existência e funcionamento em todos os municípios do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, bem como o atendimento, nos orçamentos municipais, de suas deliberações).
A perspectiva é de que, quando da efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente pela ação dos poderes públicos (articulada com a sociedade de civil organizada) e, se necessário, via cumprimento de dever funcional por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário no Juízo da Infância e Juventude, estaremos todos colaborando decisivamente para que a Nação brasileira venha a alcançar, o quanto antes, um dos seus objetivos fundamentais: o de instalar – digo eu, a partir das crianças e adolescentes – uma sociedade livre, justa e solidária.
Olympio de Sá Sotto Maior Neto é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.
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