O direito humano fundamental de não ser torturado

“A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos sublinha que uma das violações mais atrozes da dignidade humana consiste no ato de tortura, cujos efeitos destroem a dignidade das vítimas, diminuindo a sua capacidade de prosseguir as suas vidas e as suas atividades”

(Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, art. 55).

Os Estados Unidos da América têm sido exemplo recorrente de proteção e promoção dos direitos civis e políticos. A sacralização desses direitos encontrou naquela sociedade o grande devoto capaz de, como mostra a História, romper limites territoriais e relativizar por conta própria o conceito de soberania para proteger esses mesmos direitos contra o arbítrio de governantes de outros povos. A insubmissão de governantes alienígenas ao princípio democrático (aí incluída a proibição da tortura) já foi o bastante para suscitar no governo norte-americano reação dura e imediata.

Nos últimos tempos, entretanto, a imprensa respeitável – incluída a dos Estados Unidos – tem denunciado documentadamente que a CIA (órgão que realiza os serviços de inteligência do Estado norte-americano) vem praticando sucessivos atos de tortura contra supostos criminosos capturados no Afeganistão. Está-se diante de um grave paradoxo: quem repudiava e combatia veementemente a prática da tortura, agora a executa. Segundo as informações, foi construída em Guantanamo, Cuba, em forma de círculo e com contêineres de metal, uma espécie de centro de detenções, onde as práticas de tortura incluem manter prisioneiros cegados por capuzes, em pé ou ajoelhados durante horas sucessivas; colocá-los em posições desconfortáveis e dolorosas; privá-los do sono com luzes que os ofuscam 24 horas por dia; manter em segredo seus nomes e não indicar seu paradeiro. Para a realização de suas “investigações”, a CIA tem praticado atos desta natureza em territórios de outros países, como Afeganistão e Inglaterra. Como se isso não bastasse, vem à tona outra acusação da prática de atos desta natureza: a Anistia Internacional acaba de receber denúncias, feitas por civis iraquianos, de que as forças da Coalizão estão torturando pessoas (com choques elétricos, por exemplo) em Basra e Nassiriah, no Sul do Iraque, com a finalidade de obter informações.

Já não persiste dúvida de que o crime de tortura vem sendo praticado sob os auspícios do Estado norte-americano. É necessário, portanto, voltar ao velho tema e examinar, mesmo que de forma sintética, como essa prática nefasta é tratada no Direito Internacional Público.

O conceito legal (1), assim como o doutrinário, de tortura encontram-se bastante difundidos, embora persistam entre si pequenas diferenças. Consiste a tortura na utilização de violência, ou ameaça, capaz de infligir em uma pessoa, física ou mentalmente, dor ou sofrimento. Trata-se de prática repugnante que deve ser combatida em todos os lugares.

Tanto a doutrina jurídica quanto a literatura em geral – seja no Brasil, seja no exterior – são mananciais inesgotáveis na narrativa de casos de tortura que, em diversos lugares e em diferentes momentos da História, causaram (e ainda causam) profunda repugnância (2).

Tem-se procurado, em todas as partes, impedir que os Estados torturem cidadãos. Na ordem jurídica internacional, não faltam documentos normativos específicos aprovados com esta finalidade. Podem-se classificar estes documentos em duas dimensões distintas, mas complementares entre si: plano global e planos regionais.

No plano global, existe a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada em 1984, na XXXIX Sessão da ONU (Organização das Nações Unidas). Ela estabelece que “em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para a tortura” (art. 2.º).

Nos planos regionais, existem preocupações nos continentes americano, europeu e africano.

No continente americano, vigora a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em 9 de dezembro de 1985, em Cartagena dos Índios (Colômbia), na XV Assembléria-Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos). A exemplo do documento anterior, estabelece que “não se invocará nem admitirá como justificativa do delito de tortura a existência de circunstâncias tais como o estado de guerra, a ameaça de guerra, o estado de sítio ou de emergência, a comoção ou conflito interno, a suspensão das garantias constitucionais, a instabilidade política interna, ou outras emergências ou calamidades públicas”. Além disso, estabelece que “nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura”.

No continente europeu, a forma mais clara de proteção da pessoa humana contra a tortura foi adotada pela Convenção sobre a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, lavrada em Roma em 4 de novembro de 1950. Diz seu art. 3.º: “Ninguém poderá ser submetido à tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”. Posteriormente, em 26 de novembro de 1987, veio a lume a Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante, firmada em Estrasburgo pelos Estados-membros do Conselho da Europa (C. Trindade, 461). Este documento normativo – reportando-se aos dispositivos, especificamente ao art. 3.º, da Convenção sobre a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais – preocupou-se com a efetivação do direito fundamental de não ser torturado, determinando que fosse estabelecido um Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e de Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante.

No continente africano também existe acentuada preocupação em combater a prática da tortura, embora não se tenha notícia da existência de documento específico sobre o tema. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (“Carta de Banjul”), aprovada em 1981 pela Conferência Ministerial da OUA (Organização da Unidade Africana), em Banjul, Gâmbia, reconhece que toda pessoa humana é inviolável e tem direito ao respeito da sua vida e à integridade física e moral (art. 4.º). A Declaração proíbe todas as formas de exploração e aviltamento do homem, como a tortura física ou moral (art. 5.º).

Todavia, este crime repugnante continua a ser reiteradamente praticado. Já não parece ser tão simples compreender esta lição elementar: inexiste, em lugar algum do mundo, fundamento jurídico ou ético que autorize a prática de tortura contra uma pessoa.

(1) Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes: “Para fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões” (art. 1.º).

(2) VERI, Pietro. Observações sobre a tortura. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Martins Fortes, 2000; DOTTI, René Ariel. Voltaire: o advogado de Calas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, 1994, v. 7, p. 160-166.

Zulmar Fachin

é doutor (UFPR) e mestre em Direito (UEL), mestrando em Ciência Política (UEL), professor de Direito Constitucional na graduação, pós-graduação e Escola do Ministério Público do Paraná (Londrina e Maringá). Membro do IBDC.

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