Defronta-se, diariamente, com a violação de direitos fundamentais dos cidadãos, retrato do aviltamento à dignidade humana prostituição infanto-juvenil, crianças esmolando, trabalhando precocemente, perambulando, subnutridas, exploração de todas as ordens.
Com facilidade, percebe-se que a causa desse estado de fatos, que os faz originarem e que assim os mantêm, deve-se, em muito, à omissão do Estado quanto às políticas públicas que conduzam à concretização dos direitos fundamentais.
A ausência de estratégias públicas até há pouco menosprezadas pelos operadores do direito assumiu seu verdadeiro status de grande responsável pelo desencadeamento da violência social e da opressão.
A promoção do direito social fundamental à educação exerce papel determinante nas estratégias política e jurídica de prevenção social os recursos tempestiva e adequadamente aplicados, hão de evitar a injustiça social que, inevitavelmente, produz marginalização, violência e exclusão.
Em face de seu caráter emancipatório, a educação, ao lado da saúde, é pontuada por Amartya Sen, o Prêmio Nobel da Economia de 1998, como fator de promoção da dignidade.
Em seu arrazoado, a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social, etc. contribui diretamente para a qualidade da vida e seu florescimento. Há evidências até de que, mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis de duração e qualidade de vida de toda a população(1).
Em particular, no que se refere à educação infantil, esta entendida como aquela ministrada a crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos de idade, somam-se os argumentos da comunidade científica de âmbito multidisciplinar que investiga o processo de desenvolvimento da criança.
Assegura-se que a inteligência se forma a partir do nascimento e menciona-se o que chamam de “janelas de oportunidade” na infância, o que ocorre quando determinado estímulo ou experiência exerce maior influência sobre a inteligência do que em qualquer outra época da vida.
Assim sendo, descuidar-se desse período a infância significa desperdiçar um imenso potencial humano. Mais que isto, significa comprometer os alicerces individuais e, por conseguinte, as bases do convívio social(2).
Nesta especial fase de desenvolvimento, a prioridade absoluta dessa clientela justifica-se na medida em que, superado o momento adequado, os investimentos posteriores não produzirão os mesmos resultados que poderiam ser obtidos naqueles períodos cruciais à estimulação.
É preciso, pois, democratizar essa oportunidade, denominada de educação infantil, para que todas as crianças possam gozar plenamente seus direitos em igualdade efetiva de condições.
Os argumentos sejam legais, sociais ou científicos implicam em uma educação infantil universalizada. Vale dizer, dirigida às crianças de todas as classes sociais e em qualquer situação de peculiaridade pessoal e ministrada com satisfatório grau de especialidade.
Embora, no Brasil, a educação de crianças menores de 7 (sete) anos conte com uma história de cento e cinqüenta anos, seu avanço mais significativo ocorreu a partir da década de 70. Entretanto, a educação infantil somente passou a ser concebida como educação, propriamente, com o advento da Constituição Federal de 1988.
Até então, a primeira fase da educação infantil, aquela destinada a crianças entre 0 (zero) e 3 (três) anos de idade, era ministrada em creches, estabelecimentos com perfil nitidamente assistencialista, cuja preocupação precípua, até então, repousava nos cuidados físicos, saúde e alimentação, descurando-se da vertente educacional. Era, assim, suprida, em grande parte, por entidades de filantropia e assistencialismo social, ignorando-se a consciência do direito.
Contudo, os percalços ainda estã,;o fortemente instalados na realidade nacional. Segundo consta do documento Educação: Manifesto dos Senadores, na educação infantil, para um universo de 22 milhões de crianças entre zero e cinco anos, acolhem-se nas creches, no segmento de zero a três anos, apenas 1.126.814 crianças e no segmento de quatro a cinco anos, somente 5.160.787 alunos.
Os índices desfavoráveis não param por aí. Tomando-se como referência as metas do PNE Plano Nacional de Educação, chega-se ao número de mais de 800.000 docentes que ainda devem fazer o ensino superior(3).
A realidade está a merecer, com a urgência que o tema requer, um posicionamento do direito sobre a questão. A omissão, pelo Poder Público, no estabelecimento e implementação das políticas públicas, em detrimento da efetivação dos direitos sociais, em desobediência à Constituição da República não pode ser justificada, equivocadamente, como uma questão de discricionariedade administrativa, frente à escassez de recursos.
Não se está no campo da opção e sim no da vinculação, a qual decorre do princípio constitucional, dentre outros, da prioridade absoluta. Na gestão de seus poderes-deveres, o Administrador Público atuará de forma vinculada e/ou discricionária.
Porém, não é a ele Administrador Público, a quem cabe estabelecer o que é um e o que é outro. E, ainda que se ingresse no terreno da discricionariedade administrativa, a extensão desta é estabelecida por lei, fonte de toda normatividade, regramento e delimitação da discricionariedade.
Os direitos fundamentais, erigidos constitucionalmente a este patamar, impõem ao administrador público o dever de promovê-los, dando-lhes efetividade. As políticas públicas constituem-se, nesse contexto, no instrumento para a efetivação destes direitos.
As políticas públicas materializam a estratégia do administrador público para se obter a concretização dos direitos. No âmbito de sua implementação, buscará o administrador, dentro das balizas apresentadas pelo ordenamento jurídico, mecanismos de priorização, considerando a realidade inexorável da magnitude dos direitos e a disponibilidade finita de recursos.
Se o estabelecimento de prioridades privilegiando-se recursos para certos segmentos, em detrimento de outros, menos prioritários é uma constante nas políticas públicas em geral, o mesmo não deve ocorrer no espaço da educação infantil.
Nesse segmento, poucas são as opções a serem feitas, haja vista que a criança e tudo mais que se revela indispensável para sua formação , recebeu tratamento constitucional prioritário. A opção, vale dizer, já foi feita pelo constituinte.
Nessa acepção, a discricionariedade ganha conotação de dever, e não de poder. Sendo assim, deve o Administrador Público, no exercício de sua função discricionária, perseguir uma série de finalidades normativamente ordenadas e, obrigatoriamente, alcançá-las.
Notas:
(1) SEN, 2000, p. 170 et.0 seq.
(2) Disponível em: HTTP:/FOLIO.MP.PR.GOV.BR. Acesso em: 19.jul. 2006.
(3) O salário médio dos professores da educação básica, em seus vários níveis, varia de R$ 430,00 (quatrocentos e trinta reais) na educação infantil, a R$ 700,00 (setecentos reais) no ensino médio. Sequer ultrapassa, portanto, o patamar de dois salários mínimos nacionais.
Hirmínia Dorigan de Matos Diniz é mestre em Direito Econômico e Social pela PUC/PR e Promotora de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Proteção à Educação do Ministério Público do Estado do Paraná.