A câmera filma. Passa uma carruagem. A câmera emperra. Depois nada passa quando ela volta a funcionar. Embora não se julgasse Shakespeare ou a Bíblia como David Griffith, o mágico Georges Méliès descobre no erro a possibilidade de subverter a mera seqüência de fotografias projetadas no cinematógrafo dos irmãos Lumière em arte e construir uma nova linguagem, um novo uso das palavras e dos signos a serviço das idéias e das metáforas, um novo mundo. Da trucagem à fantasia, os homens se transformam em atores, e seus movimentos são colhidos em pequenos planos decupados ao prazer do roteirista. Entre a verdade registrada ou a verdade construída, cabe a nós, como bons cinemeiros, sentarmo-nos diante do filme e ver o culto ceder lugar à exposição benjaminiana, ver a mnemosfera de Debray passar à videosfera, como se a realidade fosse tão rápida ou tão magnífica quanto os fotogramas nos fazem perceber.
O cinema, a par de todo brilho e do avanço da técnica, trabalha com metamorfoses, duplicidades, sombras, espelhos, maquetes, sobre-impressões, invisibilidades, e, sobretudo, ilusões e simulacros, e disso nem a fidelidade de Dziga Vertov conseguiu se furtar. Estamos, quer queira quer não, sujeitos aos bons ou maus desígnios do cineasta ou do cinegrafista. Absorvermos a imagem e o entrecho por eles construídos, dispusemo-nos de nossos próprios sabores, fugimos de nossa tirania, dessubjetivamo-nos, deslocamo-nos num tempo deleuzeano irreconciliado de poses eternas e cortes móveis, sentimos a sinestesia cuidadosamente criada e nos deleitamos na imagética de nossas percepções ao sabor de uma dada cinematografia. Somos apenas expectadores, e, no pior das vezes, quando nos sujeitamos a uma indústria cultural, somos arrebatados de nossos destinos e nossa vida deixa de ser construída em 24 horas, para o ser em 24 quadros-por-segundo.
O juiz em seu gabinete, como quisera Méliès em seu estúdio em Montreuil, ao trabalhar com luzes, planificações e a construção de argumentos, trabalha, por outro lado, com a sua fita de celulóide, trabalha com o ?seu? processo e nos faz produzir a ilusão de que os atos e os sujeitos processuais estão em verdadeiro movimento, que a marcha do processo segue naturalmente os passos que o CPC ou CPP lhe impõem. Entretanto, se o processo era um jogo em 1950 para Piero Calamandrei, em tempos modernos certamente ele diria que o processo é um filme, que o juiz dirige, escreve o roteiro, faz seu olhar girar numa panorâmica, aproxima a sua objetiva dos fatos, corta e reinicia perícias, trabalha com tempos, prazos e espaços, dá o ritmo narrativo da conclusão que deseja violentar ao final com o seu dispositivo, ou pior ainda, é muitas vezes o protagonista, que expõe de modo dramático, mas técnico-legal, a montagem incontrolável de seus planos, a satisfação incontrolável de seu ego, e a sua desvairada subjetividade em busca do riso ou da lágrima dos expectadores.
O juiz, ao projetar os atogramas do processo numa freqüência de 24 quadros-por-segundo, ou de 24 vidas por segundo, além de nos dar a idéia de movimento, faz de sua linguagem o instrumento que deseja, faz de seus argumentos um grande argumento, e do mesmo modo como o cineasta trabalha com a incapacidade do cérebro de processar as imagens como fotografias separadas, quando dispostas seqüencialmente nesta velocidade, o juiz mescla os atos e os enunciados do processo para dar a sensação de movimento natural de idéias. O juiz é, no fundo, um grande mágico que procura imprimir no cérebro a mesma persistência retiniana que o cineasta se utiliza para que não vejamos a tarja preta separadora dos fotogramas. Se há qualquer coisa de mágico no processo, como bem dissera Giuseppe Capograssi, sem dúvida o juiz é o seu encantador e o seu ilusionista.
Cineastas e filósosofos se debatem no questionamento das tantas tarjas pretas que compõem o filme, ao perceberem que quase um terço da seqüência de imagens é tarja preta, que quase um terço das imagens é plena ?escuridão?. E alguns vão ao delírio de pensar inclusive a sala de projeção como um grande útero, de nebulosidade e ausência de luz absoluta, em que as idéias criadoras do enredo nascem e se processam. Os cineastas, então, são os grandes articuladores da escuridão, que nos iludem e nos fazem remetermos para outro lugar, para um lugar do fora. O juiz, no mesmo compasso, é um grande artesão das tarjas pretas do processo, e através delas, como um senhor das trevas, desloca paulatinamente o tempo de seus argumentos, faz escorregar sentidos para fora, para um além-mundano, e com a velocidade que lhe é peculiar, imprime sua subjetividade, seus maiores desejos, seus maiores pesares, suas maiores angústias, seus maiores pecados nestes segundos de ausência de atos, nesta ?ausência de processo?. O juiz é um articulador do processo e de sua negação, é um simulador de tensões, um artista do silêncio, e um cinéfilo que fantasia suas próprias personagens na sensibilidade da ?prata? do processo. Ele impõe, nessa medida, ao querer de seu breviário de intenções, quando muito sem motivação, a exposição de seus limites, o trazer à superfície de suas vaidades descabidas, e nos faz crer em seu engodo como se fosse o nosso próprio engodo. Vivemos então o processo como um grande filme: o filme do juiz.
E os demais sujeitos processuais, muitas vezes, dispostos a uma espécie de fenômeno N processual, acomodam seus olhares, acomodam-se ao movimento criado pelo próprio processo, como se tudo realmente e tão-somente fosse natural. Tudo é feito em apenas alguns segundos, nos segundos que nosso cérebro não consegue captar nas tarjas pretas, nos segundos que nossa consciência não consegue se despertar, e desapercebidos somos levados a nos acomodar. O juiz está o tempo inteiro à procura de reconstruir para si, antes do que para seu auditório universal, ao querer perelmaniano, todo o objeto do processo, e por isso constrói planos diversos, ora geral, ora médio, ora em primeiro plano, ora num grande plano, mas sempre querendo descrever o seu ambiente, realçar o que deseja, e prender o seu expectador nos segundos da tarja preta, nos segundos de seu silêncio. Desde o conjunto das peças processuais do processo físico à condução do debate ou do interrogatório do acusado em audiência, o juiz trabalha com o caráter retórico do silêncio, e no plano de seu travelling faz o seu convencimento aproximar-se ou se afastar lentamente da ?verdade? do processo, inserindo-o na estória; e de seu silêncio escolhe a sonorização adequada, mixando os tons de seu delírio, para sensibilizar sua platéia.
O juiz como um bom roteirista leva o processo ao seu clímax nas decisões interlocutórias ao fazer o herói beijar a mocinha e resolver tudo o que estava pendente, liberando-os para o amor sem fim. Mas ele também sabe levá-lo ao seu anticlímax, ao seu absurdo, na absolutória por prescrição ou insuficiência de provas, ou pior, na absolutória imprópria, acertando o caso penal, mas fazendo o réu ficar eternamente na mesma cena de acusado e não encarcerado, na mesma cena de imputado mas não condenado, eternamente acusado como quisera Carnelutti, sempre de algum modo preso na mesma cena, como um filme que deixa espaço para os próximos capítulos. Estamos sujeitos a um ordenamento jurídico desarrazoado e a um juiz megalomaníaco, incapaz de lidar com a sua subjetividade, e disposto a operar cortes, colagens, superposições e trucagens para fazer os jurisdicionados aceitarem abusos de autoridade, desrespeito e, no pior das vezes, desconhecimento.
Um grande filme se constrói antes de tudo com um bom cineasta e um bom roteirista, são eles que escolhem os melhores atores, os melhores cinegrafistas, o melhor cenário, são eles que escolhem a melhor trama, a melhor fotografia e o melhor desfecho. Se deles se exige criatividade, do ordenamento e do juiz se exige sensatez e conhecimento, o que nem sempre existe, exceto por alguns grandes magistrados. É necessário que sejam superjuízes, no sentido nietzscheano, e se construa um ordenamento coerente, para que o processo deixe de ser mera dissimulação da realidade, para ser visto e vivido em 24 horas por segundo.
Mas, o nosso sistema jurídico ainda não está maduro para esse juiz que desça das montanhas após o seu exílio ou para um processo sem os recursos midiáticos da indústria cinematográfica, pois ainda vive de flash e autógrafos. Infelizmente temos que concordar. Louis e Auguste Lumière não acreditavam no futuro do cinema, porque não viam além da mera projeção de imagens do cinematógrafo, talvez nós também não acreditemos no futuro da justiça e seus processos, mas que eles nos comovem à beça, eles nos comovem!
Guilherme Roman Borges é advogado, mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, mestrando em Sociologia do Direito na UFPR e professor de Direito Econômico na UnicenP e de Criminologia na Unibrasil.