O direito é um legado da modernidade, sendo considerado como necessário para a implantação das idéias revolucionárias surgidas com o novo paradigma a codificação napoleônica e a tentativa de [completo] engessamento da mente do hermeneuta.
Ao direito foi atribuída a tarefa principal de assegurar a ordem advinda com o capitalismo. Constituiu o direito um verdadeiro racionalizador de segunda ordem da vida social, substituto da cientifização da sociedade.
Para que tal projeto fosse implementado, o direito se submeteu à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna, e em consequência ele também se tornou, por assim dizer, uma “ciência”.
Foi ele devidamente estatizado, totalmente manietado, engessado pelo Estado moderno. Buscava-se, principalmente, a ordem da natureza e a ordem da sociedade, pois o homem se sentia o possuidor de tudo.
Com efeito, se na Idade Média o direito simplesmente brotava desta mesma sociedade, na modernidade é ele imposto de cima para baixo pela espada do Estado absolutista, que exerce inexoravelmente o monopólio jurídico.
Conforme Lenio Streck, a sociedade atual está carente de realização de direitos e, por outro lado, existe a Constituição Federal brasileira, que garante tais direitos da forma bem mais ampla, faltando a concretização.
Como realizar o direito? De que forma os direitos fundamentais podem ser realizados, concretizados atualmente? Qual é o verdadeiro papel do jurista moderno [ou pós-moderno]?
O direito, como instrumento de transformação [e pacificação] social não pode ficar manietado, engessado, diante de uma realidade hodierna bem mais palpitante, que clama por solução rápida dos conflitos inter ou plurissubjetivos.
Não se pode mitificar a lei, como pretendeu Napoleão, mas cabe sim interpretá-la de forma adequada, e consoante instrumental hermenêutico disponível e completamente ao alcance do exegeta, bastando que este abra sua visão a fim de descobrir o arcabouço de princípios constitucionais.
O direito não fica [nem pode ficar] adstrito à codificação; o direito não se resume à lei. Aliás, nesta esteira assevera Norberto Bobbio que hoje estamos acostumados a pensar no direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado num código. Isto é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos deve procurar se livrar(1).
No caso do Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988 foram colocadas à disposição do direito [e do próprio intérprete] as ferramentas necessárias para que se conceda a possibilidade de o ser humano ser tratado de forma igual, conforme pugnado pela modernidade.
Como bem adverte Cícero, citado pelo humanista Michel de Montaigne, não possuímos um modelo sólido e exato do verdadeiro direito e da justiça perfeita; fazemos uso de sua sombra, de sua imagem(2).
Nesse passo, assegura Miguel Reali que dia a dia se percebe que a legislação dos povos passa das páginas dos códigos e das leis extravagantes para a memória do computador, o mesmo acontecendo nos domínios da atividade jurisdicional, numa integração do mais alto alcance(3).
Cabe ao jurista, diante de tal fato, afastar a filosofia da consciência [centrada no sujeito-objeto] e perceber, definitivamente, que a hermenêutica filosófica [Gadamer e Heidegger – relação sujeito-sujeito] é um caminho sem volta, em tempos de pós-modernidade.
Willis Santiago explica que a atividade judicial não se reduz à mera aplicação do direito preexistente. É, a bem da verdade, criativa, produtora de direito. Cita, pois, a teoria desenvolvida por Niklas Luhmann(4).
O direito moderno [subsistema] é atividade técnica, e [em tese] não política, sendo produção eminentemente capitalista. Entende Eros Roberto Grau que seu requisito único de validade repousa na “representação popular’ associada à maioria legislativa.
Os pressupostos que fundamentam a sua legitimidade encontram-se na separação dos poderes e na vinculação do juiz à lei(5). Assevera ainda o mesmo pensador que a peculiaridade do direito é justamente a “universalidade abstrata”. O direito busca a conservação dos meios.
Em consequência, o Estado liberal burguês de Direito tem a finalidade principal de tutelar as instituições do chamado comércio jurídico, notadamente no que se refere ao contrato e a propriedade.
Interessa inexoravelmente, a proteção da propriedade e busca-se que as cláusulas contratuais sejam devidamente cumpridas e respeitadas, a fim de que o sistema não seja desestabilizado.
Mas, segundo Boaventura de Sousa Santos, o direito, da forma como concebido, perdeu de vista a tensão entre a regulação e a emancipação. Segundo o mesmo autor, os excessos cometidos pela modernidade são devidos ao direito e a ciência. Para Santos, a ciência pós-moderna é uma ciência assumidamente analógica que conhece o que conhece pior através do que conhece melhor(6).
Com o advento da modernidade, surgiram as teorias do contrato social, sendo que a mais importante, como se sabe, é a de Rousseau. Para ele, somente existe a vontade geral como um exercício essencial de soberania inalienável e indivisível.
Tal vontade geral representa a síntese entre a regulação e a emancipação. O contrato social é feito por todos com todos. Na modernidade, o direito foi instrumentalizado, definitivamente manietado, colocado sob camisa de força, criando [sérias e evidentes] disfunções e incongruências, afastando-se quase que por completo da sociedade.
Tais disfunções redundam, segundo Santos, em ineficácia do direito. Este é um subsistema de comunicações jurídicas que funciona mediante utilização de código binário: legal e ilegal.
Ainda consoante o mesmo Santos, o direito só se regula a si próprio. É, a bem da verdade, o ambiente que rodeia os outros subsistemas [ciência, filosofia, igreja, economia etc.], tal como estes são o meio ambiente do próprio direito(7).
Na modernidade, existe a materialização [sendo que esta é um produto do discurso jurídico] e [quase que plena] ineficácia do direito. Não tem ele autonomia necessária e carece de reformas estruturais.
Na sociedade moderna verifica-se que são várias as formas de direito, sendo que o estatal [ou oficial, imposto pelo Estado] é apenas uma delas. O Estado moderno tem como pressuposto básico o fato de que o direito opera uma escala, no dizer de Boaventura.
As diversas ordens jurídicas trabalham em escalas diferentes [local, nacional e global]. Willis S. Guerra Filho adverte que na pós-modernidade dá-se uma pluralidade de descrições da realidade social igualmente válidas.
Em decorrência disso, também as prescrições feitas com base em tais descrições são plúrimas. O ideal, então, é tentar combiná-las, a fim de obtermos soluções mais adequadas, porque mais abrangentes, para problemas sociais(8).
Santos propõe a separação do direito em relação ao Estado, o que se nos parece utopia no estágio atual da humanidade. Propõe ainda a sobreposição, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas atitudes, como nos comportamentos.
O novo senso comum partiria de uma concepção de direito autônomo da que é produzida pelas profissões e instituições jurídicas do Estado(9). Mas a proposição se torna tão fácil de ser colocada em prática, e os problemas para solidificação de um direito próximo à sociedade são inúmeros.
Começa-se por abordar o tema relativa ao jurista atual, dito moderno [ou pós-moderno]. Sabe-se, primeiramente, que a linguagem do homem está [inequivocamente] adstrita ao seu nível de conhecimento, e quanto ao jurista [especialmente o pátrio], a regra não é diferente, pois o direito é eminentemente discurso.
Engessado à filosófica da consciência, desconhecendo a hermenêutica filosófica colocada ao alcance da sua mão, o jurista atual possui lentes inadequadas e que deformam sua visão, olvidando que há ferramentas jurídicas suficientes para desmistificar [ou desmitificar] a lei posta pelo Estado.
Em outras palavras, mas com igual alcance, o jurista da atualidade continua sendo simples e mero operador e reprodutor do direito posto pelo poder estatal, enquanto que seu papel fundamental não é o de ser operador, reprodutor daquilo que já existe, mas sim compete-lhe ser verdadeiramente construtor do direito, que é linguagem pulsante e ativa.
A preocupação exacerbada com a forma do ato jurídico – deixando o direito material de lado – é latente, e inúmeros processos judiciais são simplesmente jogados na vala da extinção, sem julgamento do mérito, que é aquilo que real e invariavelmente interessa ao litigante devedor, na grande maioria dos casos.
Hoje prepondera o procedimento, a forma, observância de como o ato processual deve ocorrer. E os processos judiciais simplesmente se arrastam por meses, anos, deixando-se de lado o direito material, o que se traduz em prejuízo.
Sem adentrar no mérito da questão [sabendo-se que muitos são os feitos extintos sem julgamento por deficiência da formação do processo e do próprio profissional atuante], impende destacar que, de fato, o jurista desconhece o ferramental conferido pela própria Constituição Federal.
A ausência do saber [não raras vezes], especialmente o saber jurídico, acaba depondo contra o próprio direito, que, como se sabe, está [bem] acima do Estado.
Considerando sua não rara e inequívoca miopia, o jurista atual abdica de participar como ator principal do espetáculo, sendo que se compraz em figurar representando um papel de menor envergadura, deixando de ser arrojado, tal como propõe Paolo Grossi, ao afirmar que o jurista atual a referência é à maioria e não àqueles espíritos livres e arrojados é doente de decrepitude, é cada vez mais velho, e é sobretudo consumido por uma enfermidade sutil que desde sempre foi seu vício oculto, a preguiça, a preguiça intelectual(10).
Tal como a Síndrome de Abdula, citada por Streck, o jurista atual abdica de um papel ativo perante o direito, tornando-se passivo em relação ao disposto na lei posta pelo Estado.
De fato, considerando que o direito não viceja da sociedade [tal como no medievo], sendo imposto pelo absolutismo estatal, o jurista pátrio tem um leque hermenêutico disponível – que deita firmes raízes na própria Constituição da República -, a fim de demonstrar, mediante linguagem jurídica própria, que a lei não é a única e exclusiva fonte produtora do direito.
Mas para isso, o jurista carece conhecer instrumental próprio, a começar pelo conhecimento, motivo bastante para dizer que o discurso jurídico atual carece [urgentemente] ser repensado.
No sentir de Antonio Carlos Wolkmer, a moderna cultura liberal-burguesa e a expansão material do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo.
Essa racionalização, enquanto princípio organizativo, define-se como racionalidade instrumental positiva que não liberta, mas reprime, aliena e coisifica o homem(11). O apego exacerbado ao formalismo, somado à ausência de visão hermenêutica adequada, só fazem com que o jurista participe do espetáculo como mero coadjuvante, deixando as coisas fluirem.
Nessa esteira, o próprio jurista permite fique o direito encastelado, atrás das muralhas rígidas e intransponíveis do Estado, deixando de lado uma realidade bem mais palpitante, mas que seus olhos não conseguem enxergar.
Nunca se deve olvidar, tal como ensina Michel Foucault, que é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado(12).
Especulando mais a fundo o tema relativo ao jurista, nota-se que persiste ele na era iluminista, dormindo sono profundo nas certezas da lei encastelada, desconhecendo as grandes transformações sociais, culturais, políticas e econômicas ocorridas especialmente a contar da segunda metade do século XX.
O jurista é formado, quando muito, para lidar com querelas intersubjetivas, e não está preparado para utilizar ferramental adequado quando se depara com questões mais profundas, mais abrangentes, que são justamente as plurissubjetivas.
Bem assevera Grossi que talvez nós juristas não tenhamos plena consciência disso, mas ainda somos, em boa medida, os herdeiros e as vítimas da grande redução iluminista(13).
Com efeito, enquanto o jurista continuar molhando sua pena na filosofia da consciência, desconhecendo a profundidade da hermenêutica filosófica, certamente continuará portando inequívocas lentes deformantes, atendo-se [e obedecendo rigidamente] ao comando do código, da lei posta pelo Estado.
Adverte Miguel Reali que dia a dia se percebe que a legislação dos povos passa das páginas dos códigos e das leis extravagantes para a memória do computador, o mesmo acontecendo nos domínios da atividade jurisdicional, numa integração do mais alto alcance(14), significando que o mundo economicamente globalizado exige do hermeneuta a adaptação mínima necessária às novas técnicas advindas com a era tecnológica, com a era digital, com a era da informação, com a era do botão, bem como jamais olvidar do binômio epistemologia e empirismo. Não bastasse, o próprio hodierno discurso jurídico é embebido em linguagem pouco acessível, até [e principalmente] ao homem comum, ao homem do povo, sendo que Eduardo Bittar adverte que o uso e o emprego disseminado de uma linguagem ininteligível é, por vezes, causa de distorções hermenêuticas dentro do sistema, e, no mais das vezes, causa de impermeabilidade da sociedade como um todo às falas dos juristas, operadores do direito e especialistas, o que somente gera um afastamento gradativamente maior de uma população significativamente analfabeta (ou semi-analfabeta) das instâncias da justiça e dos procedimentos legalizados (“ignorantia legis neminem excusat?’), induzindo-se a uma ojeriza da sociedade, das mídias e do não especialista às questões jurídicas(15).
Não bastasse, a própria formação acadêmica [deficitária] do jurista contribui, e muito, para a falta de [ampla] visão hermenêutica, quando encerra o curso jurídico e ingressa no mercado de trabalho [nas mais diversas profissões].
Com efeito, o fato de ainda persistir – em pleno tempo de pós-modernidade – como norte a filosofia da consciência o sujeito, fora do sistema, analisando o objeto; a leitura corriqueira e desbragada de códigos e leis em sala de aula, impondo ao aluno o imperativo da lei, sem a mínima e indispensável interpretação; o fato de não se conferir ao acadêmico uma iniciação efetivamente científica, e principalmente a ausência de contato deste acadêmico com a realidade, só fazem com que impere o dogmatismo jurídico.
Além disso, a mercantilização do ensino superior, tal como adverte Bittar(16), torna o acadêmico de direito apenas e tão-somente mais um consumidor [pois em sua grande maioria os alunos pagam para frequentar cursos], mas não consumidor do conhecimento – alguém disposto a enfrentar os desafios e buscar o conhecimento científico [que não se restringe à simples leitura da fria lei posta pelo Estado] -, mas sim consumidor da persistente má qualidade de ensino jurídico neste país.
Notas:
(1) O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora, 1999, p. 63.
(2) MONTAIGNE, Michel. Os Ensaios Livro III. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2001, p. 14.
(3) Nova Fase do Direito Moderno. São Paulo: Editora Saraiva, 2.ª ed., 2.ª tiragem, 2001, p. 114.
(4) A Filosofia do Direito:Aplicada ao Direito Processual e à Teoria da Constituição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 96. Trata-se da denominada Teoria de Sistemas Autopoiéticos, devida a N. Luhmann.
(5) O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 3.a ed., 2000, p. 69.
(6) Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez Editora, 3.a. ed., 2005, p. 72.
(7) Op. cit., p. 159.
(8) Op. cit., p. 101.
(9) Op. cit., p. 222.
(10) A Formação do Jurista e a Exigência de um Hodierno “Repensamento’ Epistemológico. Curitiba:Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Vol. 40 [2004], p. 8. Tradutor: Ricardo Marcelo Fonseca.
(11) Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. São Paulo: Editora Saraiva, 5.ª ed., 2006, p. 2.
(12) Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 22.ª ed., p. 180. E Foucault vai mais além, ao asseverar que é essencialmente do rei, dos seus direitos, do seu poder e de seus limites eventuais, que se trata na organização geral do sistema jurídico ocidental. Op. cit., p. 181.
(13) Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 72.
(14) Op cit., p. 114.
(15) O Direito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2005, p. 239.
(16) Op. cit., p. 379.
Carlos Roberto Claro é advogado; professor [adjunto I] de Direito Comercial, no Unicuritiba; professor na pós-graduação [lato sensu] da mesma instituição de ensino; mestre em Direito [área de concentração: Direito Empresarial e Cidadania] pelo Unicuritiba, e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia EUA].