O direito de morar e a regularização fundiária em Curitiba

1970: luta pela moradia como luta jurídico-social

No núcleo do Direito do Trabalho uma das idéias-força é a de que a questão social se resolve no plano justiça social. Por isso, através de históricas lutas, os trabalhadores desenvolveram as bases da construção democrática. Na evolução desse conceito – e na afirmação prática da ação transformadora – a tutela individual de direitos não era suficiente, projetando-se como necessária a tutela coletiva. E, para tanto, a organização dos trabalhadores – política, econômica, social, sindical, cultural – serve como instrumento indispensável para a consecução desse objetivo mais amplo. Na operacionalização desses campos, congregam-se trabalhadores de segmentos variados identificados por visões humanistas. Os trabalhadores gradativamente entenderam que não lhes bastava ter a projeção de um rumo definido. Sucessivas derrotas ensinaram-lhes caminhos. E também concluíram ser insuficiente o simples domínio dos mecanismos jurídicos, ou da organização, ou das esferas sociais de atuação. Havia necessidade de um processo integrador. O Direito, ao se fundir com ciências afins no campo social, econômico, cultural e, especialmente, político, sedimentou a teoria libertadora de uma prática solidária e de transformação. Dentro deste pensamento criativo, um grupo de professores, advogados, arquitetos, estudantes, assistentes sociais, líderes comunitários e representantes de outros segmentos reuniu-se, em encontros para reflexão crítica e consciência da realidade, visando uma mudança de postura e comportamento sócio-político, em um momento então decisivo para nosso povo. Era o final dos anos 70, aguçava-se a luta de resistência contra a ditadura militar. Sabiam que as armas organizativas e jurídicas em geral eram frágeis diante do poderio político-militar daquele momento de dominação. Somente a força do número – de um grande número  -poderia mover a roda em direção a um novo tempo.

Em 1977 fui procurado por um líder comunitário Jairo Graminho de Oliveira – que buscava advogado que pudesse defender alguns trabalhadores em inquérito policial. Ele, seus amigos, familiares, viviam em uma favela. O aglomerado de barracos havia sido cercado por arame farpado, como se gado fossem, por quem se dizia proprietário do terreno ocupado. Apenas por uma pequena passagem os favelados podiam entrar e sair do local. O crime de que os trabalhadores eram acusados era o de ter rompido a cerca de arame. Chamada a polícia, detidos, estavam a mercê de seus perseguidores. Além de defendê-los da acusação, adotei as medidas jurídicas necessárias contra a violência cometida pelo pretenso proprietário em cercar as pessoas e impedí-las de livre circulação. E fui além: reunida a comunidade, expliquei-lhes as noções básicas do direito de ir e vir, da posse sobre o imóvel, a necessidade de defender o direito de moradia e de conseguir melhorias básicas de vida, direitos à água, luz, saneamento, educação, saúde. E a melhor forma de defesa de seus direitos individuais e coletivos era a organização de uma entidade. Daí surgiu a associação dos moradores e amigos dos bairros, dispostos à luta de resistência e ação transformadora nas áreas periféricas de Curitiba destituídas de mínimas condições de vida.

O movimento evoluiu, novas associações foram criadas, as reivindicações foram levadas ao poder público municipal e estadual, lideranças firmaram-se, construindo-se um forte, compacto e extenso sistema associativo popular em defesa da moradia. Em decorrência da época, o movimento expandiu-se para contornos sindicais e políticos na luta contra a ditadura militar e a favor da anistia ampla e irrestrita. Sempre atuando com respaldo na legitimidade da forma organizativa, como nas ações de defesa e justa reivindicação de direitos, o movimento uniu capacitação jurídica dentro da unidade social e força política. Após a anistia de 1979 e a reconstituição político-partidária, as lideranças comunitárias integraram-se nos partidos de oposição, o PMDB e o PT. Esse movimento levou à primeira eleição do hoje governador Roberto Requião, em 1982, a deputado estadual, e respaldou minha candidatura a governador do Estado, no mesmo ano. Várias lideranças integraram-se nas oposições sindicais e conseguiram expressivas vitórias nas eleições das entidades sindicais de trabalhadores, tornando-se combativos dirigentes, ampliando-se o movimento, abrangendo várias frentes de luta.

2007: o direito pela regularização fundiária

Trinta anos depois, mais de seiscentos homens e mulheres, trabalhadores de vários segmentos profissionais, lotaram o auditório da Caixa Econômica Federal em Curitiba, reunindo-se para, uma vez mais, reafirmar o direito constitucional da moradia e da propriedade da terra urbana. Presidindo o ato, realizado no dia 14 de janeiro de 2007, o histórico líder da luta pela moradia em nosso Estado, desde a década de setenta, Jairo Graminho de Oliveira, um dos fundadores da União Geral das Associações de Moradores e Amigos dos Bairros de Curitiba e também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no Paraná. A reunião inaugurava a Conferência Municipal pela Regularização Fundiária, patrocinada pelo Governo do Estado, coordenada pelo assessor especial Doático Santos e com a presença do deputado estadual e ex-presidente da Cohapar Luiz Cláudio Romanelli, da então presidente desse organismo Rosângela Curra, do presidente da Sanepar Stênio Jacob e da diretora de meio-ambiente professora Maria Arlete Rosa. Importante ainda a presença do dr. Celso Carvalho, do Ministério das Cidades, do dr. Edson Peters, do Ministério Público Estadual, do prof. dr. José Antônio Peres Gediel, presidente do Instituto de Terras e Cartografia, do vereador Valdenir Dias e dos representantes dos vereadores André Passos e Roseli Isidoro. Na oportunidade, fui honrado com a designação de patrono da Conferência, face minha inserção, como advogado e político, no movimento de luta pela moradia desde a década de sessenta. O Plano de Regularização Fundiária de Curitiba abrange cerca de 80 mil famílias que vivem em quase uma centena de áreas a serem regularizadas. São moradias em terrenos públicos ou privados, mas sempre em situação de litígio, ocupados com a construção de moradias em condições muito diversificadas. Algumas dessas áreas estão ocupadas irregularmente desde a década de sessenta e grande parte delas já incorporadas à vida urbana de nossa cidade. A constituição de associações de moradores, da união geral dessas entidades e mais recentemente da Femoclam objetivou a criação de instrumentos dos moradores na luta pela defesa de suas posses, da melhoria das condições de moradia, na garantia de serviços públicos essenciais como transporte, luz, água, esgoto, além da própria luta pela regularização das áreas em litígio.

A área da Vila Formosa agora será regularizada, abrangendo 1.052 famílias, possuidoras daqueles imóveis, onde construíram suas residências e desenvolveram raízes. A propriedade, findo o litígio judicial com a expulsão do grilheiro principal, é da Caixa Econômica Federal, a ser transferida aos moradores, tornando-se local prioritário para a aplicação do Plano de Regularização Fundiária de Curitiba, servindo de modelo para outras ações do Ministério das Cidades e que contará com recursos financeiros-orçamentários expressivos em 2007. Ao mesmo tempo, as regiões do Parolin, Guarituba e Vila Zumbi estarão sendo beneficiadas com esses recursos, os primeiros aplicados face o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Neste sentido, estiveram na Caixa, no Ministério das Cidades e da Casa Civil os representantes da Conferência Municipal e do governo do Estado – Doático Santos, Maria Arlete Rosa e Rosângela Curra. No Ministério, reuniram-se com Raquel Ronik, secretária de Programas Urbanos, e o diretor Celso Carvalho, de Assuntos Fundiários Urbanos. Salienta Rosângela Curra, ex-presidente da Cohapar, que ?o Ministério das Cidades já tem os projetos e agora estuda como serão liberados os recursos, de imediato?. O Ministério das Cidades efetivará parceria com o governo do Paraná visando a constituição de núcleos e cadastros de moradores das áreas a serem regularizadas, contando com a participação da Prefeitura Municipal e da Companhia Municipal de Habitação, projeto a ser estendido gradativamente à região metropolitana de Curitiba. Salientou Doático Santos que alem da ação institucional, é vital que os moradores reforcem as associações de bairro e outras formas de organização local, sem o que não será possível a implementação do Plano e da continuidade dos trabalhos da Conferência Municipal. O Plano de Regularização Fundiária prevê, além da solução jurídica dos conflitos, com a definição da propriedade dos terrenos e sua inscrição em favor dos moradores, as condições de saneamento, infra-estrutura, drenagem e projetos de geração de renda e salário.

Edésio Passos é advogado e ex-deputado federal (PT/PR). E.mail:edesiopassos@terra.com.br

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