Hugo Nigro Mazzilli

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Já nos acostumamos a ouvir que democracia é governo da maioria. Mas é mais que isso. Democracia não é apenas o governo da maioria, e sim da maioria do povo. Isso significa que democracia não é o governo da maioria das elites, nem da maioria das corporações, nem da maioria dos grupos econômicos, nem mesmo da maioria de alguns grupos políticos, que, muitas vezes, são aqueles que efetivamente fazem a lei mas nem sempre defendem os interesses da população.

A democracia legítima não é despótica, pois mesmo a maioria não pode escravizar a minoria. A propósito, cabe lembrar o dito que, com humor, assim define democracia direta: três lobos e uma ovelha votam em quem vai ser o jantar; e democracia representativa: as ovelhas elegem quais serão os lobos que vão escolher quem será o jantar [à](1).

A democracia moderna é mais do que apenas uma vontade majoritária. É o governo que se faz de acordo com a vontade da maioria do povo, colhida de maneira direta (plebiscito, eleições) ou de maneira indireta (pelo sistema representativo), mas desde que respeitados os direitos da minoria.

Além disso, uma democracia representativa só funciona adequadamente se houver um sistema efetivo de partidos, com programas de governo para que a vontade dos eleitores não seja burlada pelos eleitos que queiram trair os compromissos e programas partidários que foram usados para captar os votos dos eleitores. Por isso, faz parte da democracia o pluripartidarismo(2), sim, mas também a necessidade de fidelidade aos compromissos e programas de partido. Daí por que deveriam ser mais efetivamente usados o referendo e o plebiscito para as grandes questões nacionais, sem prejuízo de instituir-se a possibilidade efetiva de revogação do mandato dos eleitos (recall).

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Não seria democrático que nem mesmo a maioria do povo proibisse a existência de religiões e cultos, distinguisse etnias, culturas ou tendências políticas, ou vedasse comportamentos por nenhum outro fundamento senão a discriminação da maioria contra a minoria. Não fosse assim, estaríamos diante não de uma democracia, e sim diante do despotismo.

Entre os direitos básicos das minorias, está o de poderem existir, o de poderem dissentir e exprimir sua dissensão, o de verem-se representadas nas decisões que interessem a toda a sociedade, o direito de fiscalizarem de maneira efetiva a maioria, e o de, eventualmente, um dia tornarem-se maioria. Enfim, têm o direito de não se verem discriminadas. É aqui proveitoso recorrer à doutrina invocada por Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, segundo a qual ?protegem-se situações pessoais notoriamente marcadas, concernentes à origem, à raça, ao gênero, e a outros, e protegem-se, outrossim, escolhas ou condutas pessoais estigmatizadas, como religião, orientação sexual e outras?.(3)

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O combate à discriminação é, porém, uma via de dois sentidos: da mesma maneira que não se admite a discriminação da maioria contra a minoria, também o contrário é verdadeiro. Assim, por exemplo, tanto é reprovável a xenofobia, quanto o auto-enquistamento do estrangeiro que não queira realmente se integrar à sociedade onde vive; tanto é reprovável o racismo da maioria de uma população contra a minoria, como o racismo do grupo minoritário em relação aos demais. Tanto num caso como noutro, há discriminação social implícita e estigmatizante.

As pessoas são naturalmente diferentes e têm de ser respeitadas nas suas diferenças, mas não podem ser discriminadas naquilo que elas têm de igual, quais sejam seus direitos fundamentais (à vida, à saúde, à educação, ao trabalho, à dignidade, ao lazer etc.).

Toda discriminação gratuita é odiosa, ainda que feita em nome do combate à própria discriminação. E é sempre odiosa, pouco importa se aproveita à maioria ou à minoria, o que é irrelevante.

Notas:

(1)  ?Democracy must be something more than two wolves and a sheep voting on what to have for dinner?. In: BOVARD, James. Lost rights: the destruction of American liberty. Nova York: St. Martin?s Press, 1994.

(2)  Com o conseqüente direito de oposição. Cf., a propósito, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. p. 459.

(3)  FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência. Lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho, uma ação afirmativa. São Paulo: LTr, 2006. p. 183.

Hugo Nigro Mazzilli é procurador de Justiça aposentado, advogado, professor no Complexo Jurídico Damásio de Jesus e na Escola Superior do Ministério Público, consultor jurídico e autor de diversos livros.