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Deflagrada a mobilização da Magistratura federal neste emblemático dia 30 de novembro- mas, digo de chofre, com amplo respeito ao jurisdicionado, que terá pronto atendimento nas tutelas de urgência -, e diante de tudo aquilo que tem sido democraticamente debatido em toda a imprensa nacional nas últimas semanas, sirvo-me deste espaço para apresentar a você, leitor, um breve extrato das razões da Magistratura. Para a sua reflexão, apenas; não para a polêmica. Porque todas as escolhas são democráticas (ou não são escolhas); e todos os debates também o são (ou não são debates). Ouvir primeiro, condenar depois, é a primeira lição que se aprende nas fileiras do Poder Judiciário.

Sobre o movimento que hoje se deflagra, algumas coisas precisam ser ditas e bem entendidas. Ainda que não se concorde com este grito de socorro, estridente e absolutamente indesejado (indesejado, diga-se, por parte dos próprios juízes), é preciso ao menos entendê-lo. É só o que pedimos ao grande público. Vejamos. 

(a) O movimento é justo. Os juízes do Trabalho amargam perdas inflacionárias que ultrapassam 22%, considerando-se a reposição parcial obtida em 2009 (9%). Esse estado de coisas viola a Constituição Federal, que estabelece o dever da União em revisar anualmente os subsídios da Magistratura, como se lê textualmente na parte final do art. 37, X, da Constituição Federal.

Dir-se-ia que essa garantia estende-se a todos os servidores públicos, o que é verdadeiro. Mas, no caso da Magistratura nacional, a corrosão da capacidade de compra da moeda representa, em modo oblíquo, uma violação à garantia da irredutibilidade de subsídios (art. 95, III, da CRFB). E as prerrogativas da Magistratura, que asseguram a autonomia das decisões e a independência dos juízes (porque a nossa missão envolve, não raro, desagradar os poderosos), interessam ao próprio Estado Democrático de Direito. Não digo isto em tom panfletário.

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Acreditamos nesta relação. Acreditamos, portanto, que lutamos por algo nobre – tanto mais quando a isso se agregam as questões relacionadas à previdência pública (prestes ao desmonte parcial, e para todo o serviço público, à mercê do Projeto de Lei n. 1.992/2007, tramitado a toque de caixa pelo Governo Federal), à saúde e à segurança pessoal e institucional dos juízes (quatro juízes assassinados nos últimos dez anos, sendo que aos contextos de ameaça e necessidade geralmente se opõe o mesmo e inacabado argumento: “não há efetivo policial”). Quem confiaria em um juiz que, nos atos da sua vida privada ou nas refregas do seu dia-a-dia, deixa-se espoliar? Em um juiz que, violentado em seus direitos, não protesta pela sua preservação? Que não lute por suas garantias institucionais? E, se juramos cumprir a Constituição, não tenham dúvidas: essa também é uma maneira de fazê-la cumprir.

(b) O movimento é ético. Os juízes do Trabalho não vão simplesmente “parar”, no sentido etimológico da palavra. Não deixarão a população padecer de inanição judiciária, lançada à própria sorte. Redesignarão audiências, é verdade; mas o farão para breve, de modo a causar mínimo prejuízo. E estarão todos, necessariamente, nos fóruns e unidades judiciárias, em todo o Brasil, atendendo a partes e advogados nas demandas por tutelas de urgência. Ausentar-se-ão, quando muito, para a participação em atos públicos nos quais essas circunstâncias sejam esclarecidas com transparência. Porque é agora preciso o diálogo com a imprensa e a sociedade civil, já que o diálogo com os demais poderes da República não apresentou quaisquer frutos até aqui.

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(c) O movimento é Constitucional. O recurso à paralisação é a consumação de um derradeiro ato de resistência legítima, ínsita à própria natureza humana (art. 8º, n. 1, “d”, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas), quando outros instrumentos não se revelam mais viáveis. A Constituição só o nega às carreiras militares (art. 142, §3º, IV, da CF); e a norma constitucional restritiva há de ser interpretada restritivamente.

A Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, garante aos servidores públicos em geral “os direitos civis e políticos essenciais ao exercício normal da liberdade sindical, sujeitos apenas às obrigações decorrentes de seu regime jurídico e da natureza de suas funções”, o que evidentemente inclui o máximo direito de resistência no campo profissional (e o que faremos, diga-se, não realiza em toda a plenitude o que prevê o art. 9º da Constituição, ao tratar do direito de greve). A defesa das prerrogativas da Magistratura não pode, sem mais, ser equiparada a “sentimento ou interesse pessoal” para quaisquer efeitos. Luta-se pelo cumprimento da Lei Maior. Não há nisso, afinal, interesse público?

(d) O movimento é necessário. O Poder Judiciário brasileiro está à mercê da boa vontade dos demais Poderes da República, conquanto pudesse não estar. Tramita no Supremo Tribunal Federal o Mandado de Injunção n. 4067/2011, ajuizado por inúmeras entidades de classe que compõem a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (FRENTAS), além da própria Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). A Magistratura acreditou no tirocínio dos Ministros do STF e recorreu à sua instância mais eminente, no afã de assegurar aos juízes o que os juízes asseguram aos cidadãos: o cumprimento das leis e da Constituição. Frustrou-se, porém, também lá.

Não há nada mais difícil do que mobilizar juízes para um protesto como este, do dia 30/11, que apenas por existir já é histórico. As defecções iniciais a qualquer movimento mais drástico, em todas as regiões do país, bem o demonstra. Se chegamos até aqui, é porque não nos foi dada alternativa. Todos os outros apelos – ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao próprio Poder Judiciário – foram baldados. 

(e) O movimento é de todos. Parecerá inconsistente ou demagógico, mas preciso dizê-lo. A mobilização deste dia 30/11 serve, afinal, ao interesse de todos. Serve, sim, ao interesse dos juízes- o de que se cumpra a Constituição onde ela os favorece. Mas o que reivindicamos assegurará que os juízes de amanhã integrem uma carreira digna, plena de garantias, para a defesa intimorata dos direitos do cidadão e da sociedade. Mais que isso, assegurará uma carreira profissionalmente interessante, mesmo aos olhos dos melhores bacharéis. Logo, uma Magistratura de excelência. Por isso, ouso dizer: a mobilização de 30/11 interessa a toda a sociedade civil.

Já não causa espanto, hoje em dia, o fato de as fileiras da Magistratura perderem quadros para outras carreiras de Estado, como a própria advocacia pública. Isso porque, diversamente das carreiras estruturadas mais recentemente, os direitos assegurados aos juízes constam de alguns poucos artigos da Constituição e da nossa antiga lei orgânica, que data da década de setenta (Lei Complementar n. 35/1979) – e tem foros de taxatividade. Mas é preciso insistir: não pedimos nem mais, nem menos. Neste momento, a Magistratura pede tão somente o que já consta destes textos e lhe tem sido negado.

Que um dia como o de hoje nunca mais seja necessário. Mas que, pelo sacrifício que se imporá a todos (juízes e cidadãos), um dia lembremos apenas vagamente destes tempos obscuros em que a própria Magistratura nacional precisou recorrer à resistência coletiva para denunciar publicamente a sonegação de seus direitos. E com pesar se diga: naquele tempo, não eram mais a última trincheira.

Guilherme Guimarães Feliciano é juiz do Trabalho e membro da Comissão Legislativa da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Artigo publicado no Conjur em 30.11.11).