O Deus da morte

Vivemos como se a morte fosse uma mera ficção. Não acreditamos que realmente podemos morrer a qualquer instante. Admitir a vulnerabilidade da vida nos deixa por demais assustados. Assim, a morte é sempre uma ingrata surpresa, uma eterna fonte de perplexidade.

Esse distanciamento da morte foi o mecanismo que a psique humana criou para se proteger da consciência do próprio fim. Assim, tentamos amenizar a tremenda angústia que a perspectiva da morte nos causa, vivendo como se fôssemos eternos. Todavia essa aparente inconsciência da própria extinção não é suficiente para abrandar o nosso sentimento de insegurança e desamparo.

 Então, damos asas à imaginação através do misticismo religioso porque precisamos acreditar que temos uma alma eterna. Essa necessidade de crer na própria imortalidade é puramente emocional e não racional, já que todas as evidências são de que, assim como todo o resto na natureza, temos um começo, um meio e um fim. Talvez a integral consciência da fragilidade da condição humana nos seja insuportável.

Mas nem só de ilusão vive o homem, e a ciência, apesar dos entraves que lhe são impostos, nunca parou de evoluir. Se ficássemos apenas vivendo da fé, inúmeras vidas seriam perdidas por conta do atraso da vida selvagem. A ciência humana é realmente maravilhosa. Pensem, por exemplo, nas primeiras pessoas que estudaram e perceberam que havia tipos distintos de sangue e que isso poderia salvar vidas, ou, hoje, quando começamos a experimentar os efeitos da revolução das células-tronco. Evidentemente isso não ocorreu da noite para o dia, pois a ciência dá sempre pequenos, mas definitivos passos.

Manter-se vivo, todavia, reclama urgência e como a ciência tem seus limites, o ser humano sucumbe à tentação de clamar pela providência divina. Ou seja, a fé cresce (e aparece) justamente quando a situação escapa do controle humano, o que é contraditório, pois se acreditássemos realmente no poder da fé não nos submeteríamos a intervenções cirúrgicas nem usaríamos remédios, deixando tudo nas mãos divinas, que tudo podem. Porém, na prática, quando temos uma simples dor de cabeça, ao invés de rezarmos, corremos para os braços do tão criticado pensamento humano, ingerindo a ciência na forma de comprimido.

Na verdade, a única fé que convive harmoniosamente com a ciência é a fé na vida, em outras palavras, o instinto de sobrevivência. A fé religiosa é incompatível com o avanço do pensamento científico porque ela é mística por excelência. E se partirmos da premissa de que são regras místicas que regem o universo, para que perder tempo com a lógica humana racional? Seria um esforço inútil tentar evitar o inevitável e controlar o incontrolável…

Forçosa é a conclusão, portanto, de que a fé e a inconsciência do próprio fim visam sobretudo nos defender emocionalmente do inimigo maior, a morte. E como a ciência ainda não pode vencê-la, seguimos seus reféns. Agora, e se um dia a morte puder ser vencida, passando a ser uma opção individual, fica a dúvida: quem terá a coragem de morrer para subir aos céus e encontrar-se com Deus?

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