Há pouco tempo o advogado de um processo de herança do interior, foi condenado a pagar danos morais por ter reproduzido, em publicação avulsa, o teor da inicial de uma ação de sonegados e conferência de colações inoficiosas, aforada contra um dos herdeiros, acusando-o de ter se locupletado do patrimônio familiar em vida do de cujus, com doações e desvio de bens. A decisão condenatória considerou grave ofensa moral o uso, no texto que serviu de apresentação do opúsculo, de expressões como ladino e dissimulado (tidas como as mais graves), além da charge de que o editor se serviu para ilustrar a capa da obra. Houve apelo encaminhado à Sexta Câmara Cível do Tribunal de Alçada (ora extinto), sustentando que as ditas contumélias e a própria charge não continham nenhuma carga ofensiva, no sentido semântico e gráfico. Igualmente, o recurso fez ver que, sob o mesmo pretexto, o apelante já respondera por queixas-crime, que correram em iníqua litispendência, das quais, porém, se saiu absolvido de um lado e beneficiário da prescrição do outro, – todas com trânsito em julgado. Para surpresa do apelante, porém, o acórdão se recusou, de plano, a apreciar o alcance ofensivo das indigitadas palavras, alegando ser irrelevante cogitar do sentido semântico delas, isto é, se possuíam ou não carga ofensiva (?). Quanto às absolvições penais o argumento que preponderou no decisum foi a repetição do lugar comum de que a sentença penal é diversa da cível, mesmo frente a absolvição do réu e sua inculpação pela prescrição penal, sem trazer, porém, qualquer argumento que justificasse e distinguisse o duplo juízo (o bis in idem), senão o famigerado dolus in re ipsa, que, para prevalecer teria então que retornar ao valor semântico das palavras, para reconhecer seu efeito ofensivo e moralmente danoso. E incidiria numa contradictio in adjecto. Enfim, o acórdão tampouco levou em conta o argumento de que as tais blasfêmias morais (se existiram), e junto delas sua expressão gráfica, nem chegaram a produzir impacto ou menoscabo na auto-estima do ofendido, ou ganharam repercussão de efeito social. Enfim, excluída a semântica, também sua repercussão, as circunstâncias pessoais e o quadro conjuntural que o motivou, o acórdão foi enfim se fixar é na edição do livrete. E sentenciou, omnium consensu: sim aí, com ?a publicação da malsinada obra? é que está o ?evidente ilícito?, por levar ?essas rusgas pessoais?… ?ao conhecimento público? através do malsinado livrete. E então, a serviço do apostolado da moral familiar o acórdão adverte e castiga: ?essas rusgas pessoais não podiam extrapolar tal âmbito? (familiar). E anote-se que a expressão condenada é rusgas, que, no sentido próprio, são ?pequenas brigas ou desentendimentos entre duas pessoas (Dicionário Houaiss, Michaelis, Aurélio…). E, ato final: o advogado acabou condenado por danos morais, não porque tivesse empregado expressões ofensivas ou desairosas e, com isso, produzido sério amargor individual ou reflexo social nas relações ou atividades do pretenso ofendido. Foi condenado a dar reparação moral porque publicou o inteiro teor da inicial de uma ação já aforada e que correu e ainda corre no foro local, passados quase 8 anos, sem nunca ter merecido qualquer restrição ou censura por usar linguagem incompatível com o foro, da parte contrária ou dos juízes que a presidiram (art. 15, do CPC). Ocorre, porém, que o venerando acórdão não se deu tento de observar que o Estatuto da advocacia e a OAB (Lei n. 8.906/94), art. 34, n. XIII faculta ao advogado ?fazer publicar na imprensa… alegações forense ou relativas a causas pendentes?, quando se reputem necessárias e feitas sem habitualidade, constituindo sua infringência, quando ocorra, mera infração disciplinar. Além disso, para os que acompanham a vida judiciária deste país, sempre constitui prática habitual da imprensa e de toda sorte de publicações, a divulgação de petições, recursos e pareceres em geral. Nunca ninguém viu nisso ilícito penal ou civil, pois a justiça é, em princípio ato público (CF art. 93, IX e CPC art. 155).

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Ruy Barbosa teve inúmeros trabalhos jurídicos publicados na imprensa e revistas do país, e até no estrangeiro, como aconteceu com seu famoso pedido de habeas corpus, perante o Supremo Tribunal em favor dos presos políticos de Floriano Peixoto, no início da República, que saiu a todo teor no The Law Gazette, de Londres. E estávamos ao tempo de pleno estado de sítio. Luiz Gama, o mais famoso líder da causa abolicionista nos tribunais de São Paulo, ficou famoso por complementar seu trabalho de valorar malungos e manumitir escravos nas varas da justiça, com artigos e peças jurídicas em que volta e meia disparava diatribes contra adversários e até juízes. Por igual no Paraná, a Biblioteca Pública conserva um rico legado de artigos e livros de sustentação de causas e razões jurídicas tiradas do foro pelos nossos mais ilustres advogados. É só consultar. Plácido e Silva fez reproduzir as razões finais de sua ação de desquite por infidelidade da mulher, com a identidade do triângulo amoroso. Benjamin Lins freqüentou a imprensa inúmeras vezes com textos de apelações cíveis, contestações, embargos, rescisórias, memoriais, pedidos de habeas corpus. Marcelino Nogueira Júnior também está presente nessas estantes, com textos de uma ação ordinária na Justiça Federal e outra reivindicatória proposta em Castro. Assim também Brenno Arruda (PR 341.46219 – Ac 779) e Roberto Barroso (PR 342.46219 – B 278), para só mencionar o que colhemos à primeira mão. Ora, atribuir evidente ilícito e impor pesado dano indenizatório, por levar ao conhecimento público, rusgas pessoais (que) não podiam extrapolar tal âmbito (familiar), é confinar a justiça ao limite estreito de um confessionário ou um círculo esotérico, por deixar de alcançar o sentido de justiça contida no preceito constitucional, que não pode servir de banca de varejo, para premiar bagatelas e apenar advogados a pretexto de acessos de pudor, incompatíveis com a gravidade da dor que as decisões mais qualificadas têm reclamado para a reparação do dano. Mas, de toda essa banalização a que se vêm reduzindo os critérios do pretium doloris, parece que quem corre o risco maior é o próprio advogado. De todos os protagonistas da justiça é ele hoje o mais exposto e o réu mais constante nas imputações desse gênero, a despeito do múnus publico que lhe confere o exercício da profissão e a pretensa imunidade penal que lhe atribui a constituição, o estatuto da Ordem e a legislação comum. O que se tem visto ultimamente, porém, é contínua desconstrução da prerrogativa constitucional, com a perda de seu conteúdo substantivo ou ideológico, para se converter em garantia meramente formal, comum a todos, e as decisões possam ser manipuladas a critério das diferentes idiossincrasias dos seus intérpretes: seja à luz opaca de seus preconceitos, de sensibilidades singulares e pudores pessoais. Certamente a imunidade profissional do advogado não é um garantia absoluta, um bill of indemnity, que isente o advogado de todos os excessos, pois no sistema democrático a lei não pode criar privilégios, nem, no que nos concerne, se incompatibilizar com o preceito constitucional da igualdade de todos perante, a lei (CF. art. 5º caput). É relativo, certamente, mas não dispensa que o comportamento do advogado seja valorado tendo em conta primeiramente o predicamento constitucional e as leis menores, especialmente consagradas para garantir a necessária autonomia e independência do exercício profissional, e possa o advogado cumprir o jus convinciandi, que é o que corresponde ao compromisso do seu mandato. É certo que muitas vezes os embates do foro, por sua índole assumam tonalidades mais veementes, por força das convicções dos que neles atuam ou porque são precipitados por lances de circunstância. Para Altavilla, o momento em que discute uma causa, o advogado está muitas vezes em estado passageiro de auto-sugestão, que faz com que assuma a personalidade daquele a quem defende. Certamente isso não o isenta de pena, se extrapola os limites da postura ética que deve manter no trato forense e pelos excessos desnecessários e desonrosos que possa cometer ou dirigir à outra parte ou ao próprio magistrado. Mas, concluindo: se a decisão não aponta nenhuma injúria ou difamação; se não vê qualquer reflexo de dor pessoal ou ressonância social nas palavras ladino e dissimulado, e, inclusive, na figura gráfica, e mesmo assim aplica severa pena de indenização no advogado, simplesmente à conta singela de que divulgou a petição inicial de uma ação de sonegados e expôs rusgas pessoais da família em torno da partilha de uma herança, em disputa judicial, não é, então, isso sim, extrapolar do sentido próprio e justo a que se deve ater a condenação por dano moral? E, além do mais, impor ao advogado severo castigo por cumprir sua função profissional, mediante atividade lícita, porque legitimada por regras de sua profissão e por inumeráveis precedentes que o convertem em norma de uso comum? Vênia concessa, foi essa, enfim, a melancólica impressão que fica dessa controvertida decisão.

Rui Cavallin Pinto é procurador aposentado e advogado.

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