Em estudo específico sobre o crime de tráfico ilícito de drogas, pode-se dizer que os delitos envolvendo entorpecentes são de consumação antecipada. Equivale dizer: a lei não aguarda que se efetive a mercancia para tipificar o tráfico de drogas. Contenta-se ela já com o simples porte de sementes, semeaduras e outras atividades descritas no art. 12 da Lei 6.368/76. O tráfico ilícito de substâncias entorpecentes é crime comum, de mera conduta, de perigo abstrato e de ação múltipla, que se consuma com a prática de uma das condutas caracterizadas no tipo.
Muitos afirmam que a condenação pela prática do crime tipificado como tráfico ilícito de entorpecentes deve ser afastada por falta de prova da mercancia. Porém, esta afirmação esbarra no conteúdo legal que incrimina a aquisição, a venda, o depósito, a posse, a guarda de substância sem autorização legal. A propósito, vale colacionar decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal:
“Não é necessária, para a consumação do tipo previsto no art. 12 da Lei n.º 6.368-76, a consumação da venda da substância entorpecente, bastando tê-la o agente em depósito, com essa finalidade” (RTJ, 167/243).
Como é cediço, não é possível tão-somente com base no critério da quantidade da droga se caracterizar a mercancia. É necessária a análise do conjunto das circunstâncias para que se possa aferir com clareza a existência ou não da prática do crime de tráfico de entorpecentes. Disso decorre o entendimento de que a figura típica do tráfico de entorpecentes não pressupõe, necessariamente, a prática de atos de mercancia de referida substância, ou seja, a cessão gratuita da droga também está contida na descrição legal da conduta típica. Importante, então, confirmar tais afirmações fazendo-se o cotejo com a jurisprudência dominante:
Penal. Tóxicos. Traficante viciado. Prova forte a indicar a materialidade e autoria. Aplicação do redutor do parágrafo único, do Art. 19, da Lei 6.368/76.
Recurso conhecido e improvido. A quantidade de droga apreendida demonstra que o agente estava a exercer a mercancia ilícita das drogas. O fato de o acusado ser dependente leva à aplicação do redutor do parágrafo único, do art. 19, da Lei 6.368/76. Recurso conhecido e improvido.
(TJDF, Apelação Criminal, Proc. n.º 18030/97, (REG. Ac. 100945), rel. Des. P.A. ROSA DE FARIAS, DJ. 11.2.98)
APELAÇÃO CRIMINAL N.º 2000011052455-4 – REG. AC.N.º 144203
Relatora: Des.ª Ana Maria Duarte Amarante
Relatora Designada: Des.ª Carmelita Brasil
Ementa – Tóxico. Apreensão de 18,50 kg de maconha em poder do réu. Inexistência de prova da mercancia. Desclassificação para uso próprio.
Não é possível, segundo entendimento consagrado na jurisprudência, tão-somente com base no critério quantitativo da droga, a não ser quando a quantidade é absurda, caracterizar-se a mercancia. Não se demonstrando a presença de qualquer fato concreto que pudesse revelar a ocorrência de tráfico de entorpecentes, impõe-se desclassificar o crime para o art. 16 da LAT.
Acórdão – Acordam os Desembargadores da Primeira Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Ana Maria Duarte Amarante – Relatora, Carmelita Brasil – Relatora Designada, Everards Mota e Matos – Vogal, em DAR PROVIMENTO AO RECURSO. DECISÃO POR MAIORIA. Brasília – DF, 28 de junho de 2001. Fonte: DJU 17/10/2001, pág. 56.
Pode-se então afirmar com clareza que a legislação penal brasileira não faz qualquer distinção, para efeito de configuração típica do delito de tráfico de entorpecentes, entre o comportamento daquele que fornece gratuitamente e a conduta daquele que, em caráter profissional, comercializa a substância tóxica. A cessão gratuita de maconha, v.g., equivale, juridicamente, ao fornecimento oneroso de substância tóxica, pelo que ambos os comportamentos realizam a figura delituosa do tráfico de entorpecentes. Assim também já foi decidido pelos tribunais:
“Para a tipificação do tráfico do artigo 12, da lei própria, não é exigido que o infrator seja colhido no próprio ato de mercancia. A certeza que a condenação exige pode emergir do conjunto de circunstâncias e indícios que cercam o indivíduo” (Ap. Crim. n.º 32.615, de Laguna, Rel. Des. José Roberge, j. em 24 de fevereiro de 1995).
O conceito jurídico de tráfico de entorpecentes, que emerge do texto da Lei 6.368/76 revela-se amplo, na medida em que se identifica com cada uma das atividades materiais descritas nas múltiplas tipificações ali constantes. Disso decorre que a noção legal de tráfico de entorpecentes não pressupõe, necessariamente, a prática de atos onerosos ou de comercialização.
Por fim, vale salientar que, embora esteja caracterizado o crime de tráfico ilícito de entorpecentes, o comportamento do agente deve ser sopesado pelo julgador quando da análise das circunstâncias judiciais que embasarão o decreto condenatório: seria injusta uma decisão que não levasse em conta, v.g., o comportamento da mãe que porta substância ilícita para entrega gratuita a seu filho, que se encontra preso e necessita da referida droga para sua própria “sobrevivência” no sistema penitenciário. E este é o primado do processo penal – o princípio da individualização da pena, consagrado constitucionalmente.
Gisele Mara Durigan
é analista judiciário – Justiça Federal do Paraná, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, pós-graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal no Centro Universitário Positivo – UnicenP.