O ato vinculado se constitui na declaração do poder administrativo emanado mediante a estrita realização das especificações legais, ou seja, sem que reste margem para a atuação do agente público; implica no agir segundo o único comportamento tipificado em lei.
A ordem jurídica como fonte do poder administrativo confere caráter vinculado aos atos administrativos, à medida que a lei não abdica indicar a competência, a forma nem a finalidade dos atos administrativos, todavia, quanto à motivação e o objeto há liberdade de decisão pela administração pública conferida pela própria lei diante do caso concreto.
A liberdade de atuação, legitimada pelo legislador, se exprime na possibilidade de escolha de uma das opções fornecidas pela lei, com base nos critérios de oportunidade de conveniência.
Ressalve-se que tal liberdade não traz consigo a conotação de arbítrio, é entendimento muito mais restrito. A elementar subjetiva conferida ao administrador se legitima “única e tão somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicada”(1).
Se na arbitrariedade há evidência de um instrumento danoso ao ordenamento jurídico ou mesmo finalidades estranhas ao interesse público, a discricionariedade implica no acerto da subsunção do caso concreto às categorias prescritas em lei.
O aspecto do ato administrativo que enseja liberdade de apreciação é denominado mérito(2). Os critérios de apreciação desse são formulados pelo administrador, no entanto, é indissociável a conjugação dos princípios, valores e regras do direito, sob pena de se conformar um ato arbitrário.
Celso Antônio Bandeira de Mello assim define o mérito administrativo:(3) Mérito é o campo de liberdade suposto na lei que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissível perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.
Parte da doutrina entende o mérito como competência exclusiva da Administração Pública. Avaliado o viés subjetivo e privativo, se funda a grande controvérsia: seria o mérito passível de submissão à apreciação do poder judiciário?
A questão se coloca quanto à total impossibilidade de submissão jurisdicional ou quanto aos limites demarcados à intervenção, mormente ao se verificar o mérito desconforme às normas, princípios e valores do direito, em casos de erro na adequação ou apreciação do caso concreto ao direito, de inutilidade ou injustiça para o alcance da finalidade desejada.
Quanto ao controle jurisdicional do ato vinculado e no relativo à legalidade, é pacífico o entendimento que mediante provocação há garantia de controle externo, todavia, em relação ao mérito, segue a controvérsia.
Segundo Cino Vita, referido por Cretela Júnior, subentende-se o vício de mérito naquilo que envolve a inoportunidade ou inconveniência do ato, e tão logo no atinente à legalidade, restando admissível a submissão à tutela jurisdicional.
Todavia, para o último a intervenção é vedada, à medida que atinge o núcleo político administrativo do ato, aquele cuja matéria abarca interesses e não somente matéria claramente transposta à norma jurídica(4).
Segundo o entendimento de Maria Sylvia Zanella di Pietro, embora se compreenda vedada a submissão jurisdicional do ato administrativo, não há que se abrigar sob essa perspectiva o ato que denote ilegalidade e imoralidade administrativas e, assim, é imperioso alocar a discricionariedade em seus devidos limites, de forma a banir o ato arbitrário(5).
Se a margem de atuação da discricionariedade se funda “única e tão – somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima”(6) naquilo que melhor realize o interesse público, parece contraproducente a complacência aos atos que atentem contra à moralidade, à justiça, à razoabilidade, aos direito individuais e coletivos, e que afastem a consecução do interesse público.
O mau uso ou o uso injusto da discricionariedade não se diferencia da arbitrariedade. Ademais, em momento algum, dentro do ordenamento jurídico, deixam de ser conjugados os princípios e quem dirá a lei suprema. Não parece difícil a compreensão, sobretudo naquilo que seja manifestamente injusto e contrário ao interesse social, a inquisição do arbítrio.
Em consonância ao pensamento, primeiramente, se alude ao princípio da juridicidade o qual envolve a atividade do Estado em princípios e normas que fluem em todos os seus atos, bem porque o rege o Direito como um todo. Abarca mesmo a concepção de legalidade estrita pois enseja a submissão da atuação estatal às normas do ordenamento jurídico.
Em suma, seja vinculado ou discricionário, quer adentre no mérito ou não, os atos administrativos, mesmo quanto à oportunidade e à conveniência, devem recepcionar todos os princípios do Direito, expressos ou implícitos, próprios da Administração ou gerais do direito.
Ademais, ao se configurar ofensa a princípio é sobrestada qualquer idéia de imunidade jurisdicional do mérito administrativo. Submete-se o ato à avaliação jurisdicional sem que haja violação ao princípio constitucional da independência dos Poderes do Estado, já que o Poder Judiciário não se presta a perpetrar o ato administrativo ou mesmo fazer por si só um juízo de mérito, mas tão somente se restringe a declarar a invalidade de um ato. À invalidação segue a edição de novo ato pela Administração Pública em substituição ao ato irregular.
Rememorado o escopo de guardião constitucional do Poder Judiciário e deposta a inafastabilidade dos princípios constitucionais dos atos administrativos, há, em consonância ao controle jurisdicional, o disposto no artigo 5.º, inciso XXV da Constituição Federal: não será excluída, por lei, apreciação judicial de lesão ou ameaça a direito.
Em suma, deve-se entender positivo e possível o controle do mérito administrativo nos termos acima dispostos, assim como incoerente a imunidade extrema de atos emanados por qualquer um dos poderes, ainda mais se ressaltada a ampla repercussão que têm os atos administrativos nos direitos individuais e coletivos.
O Poder Judiciário, nesse contexto de proteção de direitos que possam se contrapor à Administração, tem o papel ímpar, bem pelo qual não se deve hesitar em provocá-lo.
Notas:
(1) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,pg. 389.
(2) MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 10.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,pg. 150.
(3) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,pg.38
(4) CRETELLA JÚNIOR, José. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 242 e 243.
(5) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p.9.
(6) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,pg. 389.
Thatiane Erika Sakamoto é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. terikasakamoto@yahoo.com.br