O controle e a repressão da biopirataria no Brasil

Em operação batizada de ?Arca de Noé? (2007), o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a Receita Federal do Brasil (RFB), com mais aparelhos de raios-X, apreenderam cerca de 300 orquídeas, 576 aranhas caranguejeiras, escorpiões, borboletas, formigas, vespas, libélulas e besouros e 3670 conchas e moluscos marinhos na sede dos Correios no Jaguaré, zona oeste de São Paulo, que seriam enviados para o exterior (RODRIGUES, 2007, C6).

O Brasil é considerado um país megadiverso, com cerca de 22% das espécies nativas mundiais, aliás, o país com maior diversidade biológica (biodiversidade) do planeta, o que é demonstrado pela variedade de espécies apreendidas nos correios.

Pela vasta riqueza vegetal e animal, o Brasil é alvo constante de biopiratas. Ao contrário de outras formas de contrabando ou reprodução ilegal de conhecimentos sem autorização de seus proprietários ou detentores, a Biopirataria não é tipificada como ilícito criminal, mas apenas administrativo, com aplicação de multas que, excepcionalmente, são recolhidas pelo infrator.

Como se verá adiante, poucas figuras da Lei n.º 9.605/1998 (Lei de crimes ambientais) podem ser invocadas para repressão e combate a biopiratas e, ainda, assim, são consideradas como de menor potencial ofensivo (Lei n.º 9.099/1995 c/c Lei n.º 10.259/2001), que se resolvem com a lavratura de um termo circunstanciado e liberação do autor do fato poucas horas depois.

Daí o interesse dessa nova modalidade de criminalidade organizada que se encontra no ?ranking? das três atividades criminosas com maior movimento financeiro no mundo, ao lado do tráfico de drogas e comércio ilegal de armamento.

A extensão territorial do Brasil, que dificulta a fiscalização dos órgãos e agências governamentais, a facilidade de transporte (tubos de PVC, maletas, caixas térmicas, meias, cinturões) de insetos (aranhas, borboletas), ovos e pequenos animais (sapos, pássaros, cobras), o vasto número de pesquisadores na região amazônica, sem um efetivo controle ou cadastro de atividades, são fatores que ampliam a ofensividade da biopirataria.

Associado a esse universo de comodidades que o infrator encontra em solo brasileiro, a legislação pátria não desestimula a atividade irregular de forma eficaz, pois suas sanções são brandas e tratam de idêntica forma o infrator que exerce o comércio ilegal interno de animais silvestres e aquele que exporta pequenos animais para pesquisas internacionais por laboratórios estrangeiros e patenteiam novas fórmulas medicinais, com exclusividade, prejuízo das comunidades locais e lucros exorbitantes.

A biopirataria pode ser conceituada como a exploração, manipulação, exportação de recursos biológicos, com fins comerciais, em contrariedade às normas da Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, promulgada pelo Decreto n.º 2.519/1998.

Tem ínsita a idéia de contrabando de espécimes da flora e da fauna com apropriação de seus princípios ativos e monopolização desse conhecimento por meio do sistema de patentes, na esteira das leis de direito de propriedade intelectual do Gatt e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Aliás, é primordial que haja gestões junto à OMC para inclusão de critérios condicionantes da concessão de patentes, obtidas por meio de bioprospecção, baseada na legalidade do acesso ao patrimônio biológico.

O relatório da CPI da Biopirataria (2006, p. 11) menciona a biopirataria como o acesso irregular ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.

Sobre a biopirataria, a professora e Promotora de Justiça do Distrito Federal, Juliana Santilli (2005, p. 2)(1), a define como ?a atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a ambos) sem o respeito aos princípios da Conversão da Biodiversidade, isto é, sem autorização do país de origem e de suas comunidades locais e a repartição de benefícios?.

Para Pontes (2003), o biopirata ?é aquele que, negando-se a cumprir formalidades e, desconhecendo e desrespeitando as fronteiras e a soberania das nações (…), resolve agir por conta própria, invadindo santuários ecológicos em busca do novo ouro, quase sempre utilizando uma fachada para encobrir seu real intento?.

O termo biopirataria pode, por fim, ser associado ao uso de recursos biológicos e conhecimento indígena sem que as comunidades interessadas autorizem essa apropriação ou participem dos lucros, os quais são, por fim, patenteados por empresas multinacionais e instituições cientificas.

Estima-se que 12 milhões de animais por ano são retirados de seus habitats (BECHARA, 2003, p. 128).

Em depoimento prestado perante a CPI para o tráfico ilegal de animais (2002), o Delegado de Polícia Federal Ricardo B. Elabras, segundo relatório final da CPI (2003, pp. 11-12), observou que, no caso de animais raros, é comum a prática da ?lavagem? dos animais, mediante a obtenção de documentação para respaldar o comércio ilegal em países fronteiriços com a Argentina e o Chile.

No âmbito da fiscalização administrativa, conta-se com a recente edição do Decreto n.º 5.459/2005, que regulamentou o art. 30 da Medida Provisória n.º 2.186-16, de 23/8/2001 e disciplina as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Na seara penal, a resposta do Estado representa um incentivo à ação ilimitada de biopiratas e, são por nossas fronteiras, com superação de obstáculos terrestres, aquáticos, uso de embarcações e transporte aéreo, que essas pessoas entram e saem do país sem um controle eficaz.

Em Recife, onde há vôos diários para Portugal, a Polícia Federal (PF) deteve o português João Miguel Folgosa Herculano(2), 31, acusado de traficar ovos de pássaros silvestres e flagrado com 58 ovos escondidos dentro de 5 meias de náilon. Foi feito um termo circunstanciado por infração ao art. 29, §§ 1.º, III, e 4.º, I e III, da Lei 9.605/98, diante da tentativa de transportar, para fora do País, ovos de aves silvestres da fauna brasileira.

O biopirata fica sujeito, na falta de tipificação penal congruente, ao art. 29 da Lei 9.605/1998 (apanhar espécimes da fauna silvestre – detenção de seis meses a um ano), ou seja, não é preso em flagrante, além de ser um tipo penal múltiplo e genérico que não diferencia a situação do traficante internacional, nacional, estadual ou municipal, igualando o tratamento penal leve (possibilidade de transação penal, suspensão condicional do processo) em hipóteses gravíssimas.

Apenas eventualmente, haverá a incidência de uma circunstância de aumento de pena (art. 29, § 4.º) e sua cumulação com maus-tratos de animais (art. 32 – detenção, de três meses a um ano) e, caso identificado o vínculo de permanência e estabilidade, a tipificação do delito do art. 288 do CP (quadrilha ou bando).

O Brasil é carente de uma política pública nacional para o combate ao tráfico de animais silvestres, de espécimes da flora e à biopirataria, sendo indispensável a estipulação de ações específicas para cada modalidade delitiva. Os valores de fiança são ínfimos e não têm sequer repercussão moral, por isso, entre as conclusões da CPI da Biopirataria (2006) constou a sugestão de projeto de lei que corrija essa distorção legal.

Conclui-se que o Brasil necessita, urgentemente, de medidas preventivas e repressoras adequadas, sob pena de perda de seu precioso patrimônio genético e sua biodiversidade, o que deve ser operacionalizado através da tipificação da biopirataria, adoção de política pública abrangente, de âmbito nacional, e diferenciação das situações do tráfico internacional e doméstico de animais silvestres, plantas, organismos biológicos, entre outros integrantes do patrimônio genético brasileiro.

Notas:

(1) Disponível em: http://www.ambiente.sp.gov.br/ea/adm/admarqs/JulianaS.5.pdf. Acesso em 12 jan. 2008.

(2) Disponível em: http://ecosfera.publico.pt/noticias2003/noticia2561.asp. Acesso em 12 jan. 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECHARA, Erika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. Relatório Final. Brasília, 2003, 154f.

????. Relatório Final da CPI para a biopirataria no país. Brasília, mar. 2006, 502f.

ELABRAS, Ricardo Bechara. Depoimento, audiência pública. Brasília, 26 nov. 2002. In Relatório Final da CPI para o tráfico ilegal de animais e plantas silvestres da fauna e flora brasileiras, pp. 11-12, 2003.

GOMES, Rodrigo Carneiro. O crime organizado na visão da Convenção de Palermo, Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

PONTES, Jorge Barbosa. Revista Eco 21, ano XIII, edição 32, outubro 2003.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. São Paulo: RT, 2005.

RODRIGUES, Cinthia. Fiscalização maior reduz biopirataria via Correios. Folha de S. Paulo, caderno cotidiano, C6, 14 dez. 2007.

SANTILLI, Juliana Ferraz da Rocha. Socioambientalismo e Novos Direitos – Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Fundação Peirópolis Ltda., 2005.

SHIVA, Vandana, trad. Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

Rodrigo Carneiro Gomes é delegado de Polícia Federal em Brasília, professor da Academia Nacional de Polícia. Mestrando em Direito e Políticas Públicas. Autor do livro ?O crime organizado na visão da Convenção de Palermo?, Ed. Del Rey, 2008, 272 f.

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