O controle das políticas públicas de saúde pelo Judiciário

1. A saúde(1) é direito humano fundamental, pressuposto da dignidade da pessoa humana e, como tal, deve ser incansavelmente protegido e respeitado, sendo inadmissível qualquer conduta comissiva ou omissiva tendente a ameaçá-lo ou frustrá-lo.

As ações e os serviços de saúde, por força de mandamento constitucional(2), são compreendidos como de relevância pública, surgindo para os gestores o dever-poder de prestá-los e garanti-los, no interesse de cada um e da própria sociedade. O fato da saúde ter sido explicitamente qualificada como de relevância pública, não deixa espaço para qualquer discussão acerca de sua essencialidade, impondo ao Estado (gênero) que atue diligentemente na sua prestação, a fim de que seja apta, em quantidade e qualidade, aos que dela necessitarem, devendo, por isso mesmo, ser universal(3), igualitária(4) e integral(5), não se podendo prestar ?meia-saúde?, o que é, à toda vista, inaceitável.

Mister enfatizar que as práticas concebidas e sistematizadas para proporcionar saúde não se reduzem ao ser humano individualmente considerado, na medida em que se estendem a todos os membros da coletividade, vinculando os administradores ao planejamento e à implementação de políticas públicas próximas do mundo da vida, posto que linhas, mais do que gerais, já estão traçadas no âmbito constitucional e infraconstitucional tendentes a proporcionar o adequado gerenciamento das questões sanitárias.

No Brasil, a saúde pública é ofertada através do Sistema Único de Saúde-SUS, cabendo-lhe – através de um conjunto de ações por parte da União, dos Estados e dos Municípios -, proporcionar as ações e os serviços de saúde prescritos aos pacientes. Porém, conquanto o SUS tenha alcançado evolução substancial, sua consolidação ainda não se estabilizou, a tal ponto que, diariamente, falhas e imperfeições ainda podem ser constatadas.

A inobservância dos princípios e diretrizes norteadores do SUS tem condições de gerar tristes e graves conseqüências, sendo que a não resolução dos problemas, em hipótese alguma, pode ser compreendida como realidade imutável, devendo existir por parte dos operadores do Direito, em razão de suas atribuições ou de suas competências, a compreensão do dever indeclinável de agir, de forma a evitá-las ou repará-las.

Não se tem a mínima pretensão, neste espaço, de esgotar os assuntos que circundam o tema, mas apenas procurar contribuir, modestamente, para que os debates ligados à matéria guardem respeito à (re)afirmação da saúde como direito fundamental(6), principalmente quando a função jurisdicional do Estado é acionada para dirimir conflito jurídico de interesses que o tem como objeto.

2. Com efeito, dos conflitos que envolvem aspectos ligados à saúde pública, sobretudo quando a delineação expressa na petição inicial e inferida da causa de pedir e do pedido revelarem a configuração de interesse transindividual, surge a necessidade da atividade jurisdicional aproximar-se das circunstâncias sociais e emitir comandos imbuídos de eficácia não apenas jurídica, mas também sociológica, acompanhando as transformações e a realidade em vigor.

Em outras palavras, a função jurisdicional deixa de assumir postura neutra e distante da problemática social, passando a atuar de forma preponderante na resolução dos litígios metaindividuais que lhes são apresentados. Nesse sentido, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas é incisivo ao afirmar: ?O fato de ser uma manifestação do jurídico não aparta o processo do social. Nada há o que se estranhar nisso. É preciso esquecer a visão estreita, velha e embolorada do processo como fenômeno puramente técnico, privatístico, de um liberalismo puro que já se esgotou desde os primeiros albores do século?.(7)

Essa perspectiva, além de assegurar maior resolutividade ao fortalecimento do direito à saúde, é capaz de assegurar a diminuição da sobrecarga da função jurisdicional na apreciação de causas fragmentárias versando sobre saúde pública, além de contribuir para impedir o registro de sentenças contraditórias, concedendo resposta unitária a conflitos com dispersão social.

Portanto, com o intuito de evitar a configuração de efeitos irreparáveis à vida/saúde dos pacientes usuários do SUS, em desprestígio de valores maiores do Estado Democrático de Direito(8) e à ordem jurídica justa, o Judiciário precisa pautar-se de forma pró-ativa, potencializando, naquilo que está ao seu alcance, a construção do Sistema Público de Saúde, interferindo quando verificar que, concretamente, por exemplo, as ações e os serviços de saúde estão sendo inconstitucional, ilegal, imoral e indevidamente restringidos, determinando as providências cabíveis para cessar a restrição, independentemente de quem ocupe o pólo passivo da relação processual, mesmo nas hipóteses onde o demandado é pessoa jurídica de direito público interno.

No entanto, infelizmente o tratamento direcionado aos conflitos de interesses envolvendo saúde pública, tanto por parte dos gestores, quanto por alguns operadores do Direito, em certas situações, contrastam com as normas de ordem constitucional e infraconstitucional reguladoras das questões sanitárias, muitas vezes tolhendo ou ceifando a eficácia desses dispositivos, em flagrante ofensa à atenção à saúde devida aos usuários do SUS.

Por trás desse nefasto resultado, geralmente encontra-se, como um dos argumentos, a impossibilidade do magistrado ingerir no controle de políticas públicas.

No entanto, essa premissa não reúne condições de prevalecer, pois o Poder em si é uno, e a sua tripartição, consoante preconizada por Montesquieu, tem por escopo apenas melhor organizá-lo, controlá-lo e racionalizá-lo. Em razão da unidade do poder, melhor torna-se falar em funções com atividade legislativa, administrativa e jurisdicional, independentes e harmônicas entre si(9) e, nesse sentido: ?a tripartição clássica dos Poderes do Estado não obedece, no direito positivo, à rigidez com a qual fora idealizada. O executivo freqüentemente legisla (Const., arts 68 e 84, inc. IV), o Legislativo é chamado a julgar e o Judiciário tem outras funções, além da jurisdicional. Tal tendência faz-se presente em todas as organizações estatais modernas.?(10)

Portanto, a visão estreita de ?separação de poderes? não reúne mais condições de perdurar, já que não há diversos ?poderes?, pois o poder do Estado é ontologicamente uno e, ao se procurar encontrar a essência de cada função, perceber-se-á que a tarefa não alcançará o resultado esperado, na medida em que a base elementar de todas é a mesma, ou seja, o exercício do Poder, sobretudo quando o direito fundamental à saúde é manifestamente violado; daí o motivo pelo qual resulta autorizada a função jurisdicional em intervir na resolução dos conflitos jurídicos sanitários(11).

A função jurisdicional do Estado, quando provocada, funciona como última esperança capaz de impedir a prevalência de ações ou omissões lesivas, não dirimidas no campo extrajudicial. Por isso, atuação firme e sem temor mostra-se de grande valia aos jurisdicionados que sofrem – e muitas vezes têm agravado seus estados de saúde -, com a total falta de respeito ao preconizado pela ordem jurídica.

Nos atos de conhecer e julgar não mais há lugar, notavelmente nas demandas coletivas, para a simples aplicação burocrática do Direito. Ao contrário, muitas vezes o alcance do justo depende da influência no rumo de condução das políticas públicas. Nessas ocasiões, não se pode descurar que o endireitamento, quando forçoso, produz nuances até então não observadas, refletindo na gestão dos recursos e nas prioridades indevidamente encampadas pela administração. Entretanto, pode-se afirmar a não configuração de qualquer excesso ou arbitrariedade, visto que do pronunciamento proferido não se constata a criação de um direito novo, mas sim a transformação do comando abstrato contido na ordem jurídica em tutela concreta(12) do direito material ou do interesse legitimamente protegido, gerando, transformando ou suprimindo(13), de modo a perfectibilizar a pacificação do conflito, bem como porque a manifestação judicial permanecerá restrita ao reconhecimento e estabelecimento do norte a ser trilhado pelo ocupante do pólo passivo, sem imiscuir na maneira através da qual o demandado atingirá a meta determinada. Em outros termos, a União, o Estado e o Município devem cumprir o papel que lhes fora previsto pela Carta Magna e legislação infraconstitucional, não havendo óbice ao exercício do controle jurisdicional sobre as demais funções, na medida em que não se busca definir política pública – visto que delineada e traçada no ordenamento jurídico -, mas está sim apenas impondo ao legitimado passivo a sua observância.

E não se diga que a função jurisdicional, em razão da investidura de seus integrantes não ter decorrido dos votos de eleitores, mas sim de concurso público, encontra-se fadada a permanecer limitada, confinada e impedida de apreciar atos da função executiva. Ora, quando o ato for contrário à lei, por exemplo, não há qualquer óbice ao exame e julgamento do órgão jurisdicional, principalmente porque os litigantes terão oportunidade de se ?fazerem ouvir no processo, por intermédio de contraditório recíproco, da paridade de tratamento e da liberdade da discussão da causa?(14), o que certamente serve para assegurar existência, validade e eficácia às determinações judiciais.

Como se não bastasse, a organização da assistência à saúde deveria dar-se através de contínuos e eficientes atos de gestão, prestação e regulação, de modo a assegurar, com adequado planejamento, a atenção devida aos usuários do SUS. Assim, a praxe atual de obstar ou suspender a concessão da tutela pleiteada -mesmo quando presentes os requisitos necessários ao seu acolhimento -, sob o argumento de que o deferimento interferirá negativamente no financiamento reservado à saúde, não tem condições de prevalecer, pois, em essência, olvida-se nessas hipóteses dos princípios, diretrizes e da normatização que lhe são peculiares, permitindo retrocessos e a redução de algo que, ao menos progressivamente e de forma equilibrada, deveria avançar, garantindo a perfeita implementação de políticas públicas. Isso – embora vergonhoso e tremendamente injusto vem infelizmente se expandido, contribuindo para o descrédito vivenciado pela função jurisdicional(15), bem como para o desrespeito a algumas de suas ordens.

Logicamente, cuidados e critérios necessitam ser adotados, a fim do magistrado não servir de instrumento capaz de favorecer a obtenção de excessos indevidos, em prejuízo da adequada gestão do SUS. Porém, de outro lado, existem obrigações certas e indeclináveis do Estado (gênero), tais como as decorrentes do dever de aplicar nos exercícios financeiros percentual da receita orçamentária de acordo com o mínimo constitucionalmente exigido, além de manter o Fundo de Saúde como receptor único desses recursos, garantir leitos de internação, consultas especializadas e dispensação de fármacos, quando justificadamente devidos(16). Nessas hipóteses, conforme exposto, a função jurisdicional possui respaldo para atuar com efetividade e celeridade, inclusive no controle de políticas públicas, servindo de instrumento e propiciando a observância dos preceitos constitucionais e legais peculiares à saúde.

Diante dos limites deste escrito, em virtude da relevância pública e demais características afins à saúde, crê-se que a questão sanitária, com essas propostas, tem condições de alcançar e permanecer no patamar que constitucionalmente lhe restou erigido, fazendo frente ao contínuo desafio de garantia à eficaz tutela da saúde!

Notas:

(1) Concebida pela Organização Mundial da Saúde como o ?estado completo de bem-estar físico, mental e social e não simplesmente como a ausência de doença ou enfermidade?.

(2) Artigo 197 da Constituição Federal.

(3) Acesso garantido às ações e serviços de saúde para toda a população, em todos os níveis de assistência, sem a possibilidade de imposição de qualquer preconceito ou privilégio.

(4) Atenção à saúde com igualdade, tratando os iguais de forma igualitária e os desiguais de forma desigual, com vistas a alcançar a igualdade substancial.

(5) A oferta de saúde deve incluir ações de prevenção, recuperação e tratamento em qualquer nível de complexidade, levando-se em consideração que o ser humano é uma totalidade, um todo indivisível.

(6) O artigo 2.º, da Lei n.º 8080/90, destaca: ?A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício?.

(7) DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Mandado de segurança coletivo: legitimação ativa. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 29.

(8) Dentre eles: cidadania, dignidade, respeito à vida e à saúde, igualdade, etc.

(9) MAGGIO, Marcelo Paulo. Condições da ação com ênfase à ação civil pública para a tutela dos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2005. p. 38.

(10) CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. 21. ed. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 166.

(11) Em emblemático pronunciamento, a 1.ª Turma do STJ, à unanimidade, asseverou que: ?[…]Prometendo o Estado o direito à saúde, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria que assola o país. […] 6. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. […] 11. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a inferência entre os poderes, o judiciário, alegando o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.? STJ REsp 577836/SC 1.ª T. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. Em 21/10/04. DJ 28/02/2005 (grifo nosso). Na mesma esteira de entendimento: STJ – Resp 790175/SP 1.ª T. Rel. Min. José Delgado. Julg. Em 05/12/2006. Em hipótese semelhante, assim também o STF – RE 436.996-6/SP, Rel. Min. Celso de Mello, pub. no DJ de 07.11.2005.

(12) Conferir MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado Contemporâneo. In: Estudos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 65.

(13) KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 255-256.

(14) NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 131.

(15) Segundo informação extraída do endereço eletrônico http://veja.abril. com.br/idade/exclusivo/160507/radar.shtml.

(16) Apenas para elucidar, diante da possibilidade de algumas prescrições médicas apresentarem eficácia discutível, o Ministério Público do Estado do Paraná encaminhou recomendação administrativa ao Secretário de Estado da Saúde e ao Secretário de Saúde do Município de Curitiba, no sentido de ?orientar os profissionais médicos a esgotarem as alternativas de fármacos previstas nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde e demais atos que lhe forem complementares, antes de prescreverem tratamento medicamentoso diverso aos pacientes. Se ainda assim for prevalente tecnicamente a prescrição de droga curativa não apresentada nos Protocolos, o profissional responsável deverá elaborar fundamentação técnica consistente, indicando quais os motivos da exclusão dos medicamentos previstos nos regulamentos citados, em relação ao paciente; quais os benefícios do medicamento prescrito no caso concreto; apresentação de estudos científicos eticamente isentos e comprobatórios dessa eficácia (revista indexadas e com conselho editorial); menção à eventual utilização anterior, pelo usuário, dos fármacos protocolizados, sem resposta adequada e, por fim, manifestação sobre possíveis vínculos, formais e informais, do prescritor com o laboratório fabricante do remédio em comento, justificando, assim, essa excepcional orientação clínica?. Somente após a observância dessas premissas é que costuma agir em defesa do indivíduo ou na proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Marcelo Paulo Maggio é promotor de Justiça, atuando junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública, mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina-UEL.

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