O complexo tema da maioridade penal

A morte brutal do menino João Hélio, que foi arrastado preso pelo cinto de segurança por quilômetros em um carro conduzido por assaltantes menores de idade, trouxe à tona a discussão sobre a redução na maioridade penal. O tema ganhou força e a Câmara dos Deputados, em Brasília, já estuda a revisão da lei que prevê a responsabilidade criminal a partir dos 18 anos.

Para tanto, alguns nomes fortes da legislação brasileira, como os juristas René Dotti e Miguel Reale Júnior, foram convidados pelo deputado Marcelo Itagiba, da Comissão de Constituição e Justiça, para participar de uma audiência pública em Brasília. Porém os dois declinaram do convite.

Para Dotti, árduo defensor da revisão do sistema criminal do problema, o cerne na questão está na administração, não na legislação. ?Há leis e algumas bastante rigorosas. Temos como exemplo os seqüestros, que leis que prevêem punições gravíssimas, mas continuam acontecendo. O problema é que as leis não são cumpridas?, diz o jurista. Ele destaca que a falta de investimentos em material humano e físico, bem como tecnologia, são fatores decisivos para o aumento dos índices de violência no Brasil. ?Há demora nos julgamentos dos processos e as delegacias também estão saturadas de processos em andamento. Mas não é por falta de empenho de pessoal, mas por falta de estrutura, falta de políticas públicas nas áreas de segurança e justiça?, aponta.

Com convicções fortes, ele acredita que a reação imediatista da classe política é apenas uma cortina de fumaça para enganar as pessoas. ?Temos que ser duros para evitar que isso aconteça e cobrar medidas mais efetivas para acabar com a omissão do estado na luta contra o crime?.

A carta encaminhada pelo Professor Dotti:

Curitiba, 5 de março de 2007.

Prezado Deputado Marcelo Itagiba

Pela presente renovo os cumprimentos transmitidos pessoalmente pela sua eleição à Câmara dos Deputados na certeza de que a sensibilidade, a ética e a competência já demonstradas em suas relevantes funções no Estado do Rio de Janeiro lhe conferem os atributos essenciais para um excelente desempenho legiferante no complexo e profundo território da segurança pública.

Há vários anos tenho procurado contribuir com a revisão do sistema criminal brasileiro. Além da colaboração na feitura das Leis n.º 7.209 e 7.210, de 1984 (Parte Geral do CP e Lei de Execução Penal), nos últimos tempos, desde 1992 até 2000, participei de comissões de juristas no âmbito do Ministério da Justiça para a redação de projetos de reforma do Código de Processo Penal, visando maior economia e eficiência para os procedimentos. Desse longo trabalho resultaram 7 (sete) projetos de lei com os seguintes assuntos e números:

1.º) Investigação criminal (Proj. de lei n.º 4.209/2001);

2.º) Prisão, medidas cautelares e liberdade (Proj. de lei n.º 4.208/2001);

3.º) Interrogatório do acusado e defesa dativa (Proj. de lei n.º 4.204/2001);

4.º) Provas (Proj. de lei n.º 4.205/2001);

5.º) Suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e novos procedimentos (Proj. de lei n.º 4.207/2001);

6.º) Júri (Proj. de lei n.º 4.203/2001);

7.º) Recursos e ações de impugnação (Proj. de lei n.º 4.206/2001).(1)

Em artigo publicado na Folha de São Paulo (pág. 3) do dia 15 de fevereiro, o Ministro Marcio Thomaz Bastos refere-se a estes projetos e lamenta que os mesmos não tenham sido aprovados para atender às necessidades de uma justiça criminal mais eficiente e mais ágil.

Quanto ao anteprojeto de simplificação dos procedimentos do Júri fui seu relator até o dia de meu afastamento espontâneo da comissão em solidariedade ao Ministro José Carlos Dias, que renunciou (2000). Estou encaminhando cópia de artigo sobre o meu texto pelo correio físico. Entre os aspectos essenciais está a proposta de supressão do protesto por novo Júri. É em função do antiquado art. 607 do CPP que os réus condenados por homicídios qualificados que poderiam ter uma pena superior a 20 anos são beneficiados com reclusão por tempo menor para evitar um novo e automático julgamento. Assim ocorreu, por exemplo, com os matadores da atriz Daniela Perez e mais recentemente em São Paulo quando a filha assassinou seus pais, auxiliada por cúmplices. A propósito, escrevi artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, cuja cópia também lhe estou enviando.

A minha decepção com as omissões e erronias do Congresso Nacional das últimas legislaturas em assuntos de Política Criminal – que prefere legislar para um direito penal de emergência – não me animam a prestar depoimento em audiência pública na Câmara dos Deputados, em atenção à sua generosa sugestão.

Enquanto não houver vontade política dos governos federal e estadual (e também municipal) quanto aos sistemas de execução das penas, compreendendo estabelecimentos penais com recursos humanos e materiais, o público brasileiro continuará ouvindo a notícia do fracasso como ocorreu há dias com a progressão do regime em favor da ex-advogada Jorgina de Freitas, condenada há vários anos por crimes patrimoniais de grande volume contra o INSS. A TV Globo informou que ela passaria para o regime semi-aberto e que consistiria em ?sair durante o dia para trabalhar e recolher-se à noite?.

No entanto, a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84) – de cuja redação participei junto com Miguel Reale Junior e outros juristas – estabelece pelo art. 91: ?A Colônia Agrícola, industrial ou similar, destina-se ao cumprimento da pena em regime semi-aberto?. Trata-se, portanto, de uma prisão. A hipótese do condenado sair durante o dia e se recolher à noite é própria do regime aberto que deveria ser executado através da Casa do Albergado (LEP, art. 93). Mas como os governos estaduais não se preocupam, como deveriam, com a construção de estabelecimentos para o regime semi-abertos, o condenado passa, após certo tempo, do regime fechado para o … aberto. Também não há interesse em construir Casa de Albergado que funcionou muito bem em São Paulo nos anos 70 quando o Professor Manoel Pedro Pimentel foi Secretário de Estado da Justiça.

Daí a denúncia dos meios de comunicação e o sentimento de impunidade por parte dos cidadãos…

O que fazer? Aumentar as penas para o crime hediondo?

Participei, quando o Nelson Jobim era Ministro da Justiça, de um grupo de trabalho com Miguel Reale Junior, Juarez Tavares e outros colegas. Elaboramos o projeto que se converteu na Lei n.º 9.426/96 que aumentou as penas para os crimes de roubo e extorsão, punindo severamente o seqüestro relâmpago. E, no entanto, tais modalidades de crimes continuam sendo praticadas com alarmante freqüência nas maiores e menores cidades. E o que dizer da Lei dos Crimes Hediondos que não reduziu os seqüestros?

Penso, Senhor Deputado, que o Congresso Nacional não pode manter o debate sobre a antecipação da imputabilidade penal-absolutamente ilusório quanto aos seus efeitos práticos – enquanto não houver uma profunda revisão nos meios e métodos do trabalho legislativo com vista ao sistema criminal em geral, compreendendo Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito de Execução Penal. Em suma: uma Política Criminal fundada em bases racionais.

Outra cortina de fumaça está sendo anunciada com o projeto que suprime a prescrição pela pena concretizada (CP, art. 110, §§ 1.º e 2.º). Trata-se de grave e lamentável equívoco. Esse instituto, criado pela jurisprudência do STF e sob a liderança intelectual de Nelson Hungria procura evitar o sofrimento dos acusados pela demora do processo quando o Estado (Polícia, MP, Juiz) não podem cumprir os prazos da instrução, alegações, etc. E a razoável duração do processo é, atualmente, uma das garantias constitucionais expressas. Como fazer com que – segundo a Constituição  – sejam assegurados ?os meios que garantam a celeridade de sua tramitação? (art. 5.º, LXXVIII), se for aprovado esse desastrado projeto do ex-Deputado Biscaia?

Agradecendo a leitura da presente e declinando do convite para participar de audiência pública, transmito as expressões de estima e consideração.

Nota:

(1) Estes projetos estão publicados e comentados no importante livro Código de Processo Penal Comentários aos projetos de reforma legislativa, coordenação de Eduardo Reale Ferrari, Campinas; Editora Millennium, 2003 www.millenniumeditora.com.br

René Ariel Dotti

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