O CNJ e a autonomia dos tribunais estaduais

Os Tribunais Estaduais foram criados na República, quando o Brasil passou de Império a Estado Federal. Antes, tinham o nome de “Tribunal da Relação”, que até hoje é adotado em Portugal. A Constituição Republicana de 1891 dedicou poucos artigos à Justiça dos Estados (v.g., art. 61), porque se entendia que isto era matéria de Constituições Estaduais.

Por exemplo, a Constituição de Minas Gerais, de 15 de junho de 1891, tratava nos artigos 63 a 73 do Judiciário local. Manteve-se o nome de Relação e o título desembargador para os seus magistrados, não especificando quantos seriam. Já no Rio Grande do Sul, a Constituição de 14 de julho de 1891 criou um Superior Tribunal, com sete desembargadores (art. 51). E assim, Brasil afora, cada estado criou seu Judiciário, de acordo com suas necessidades e preferências.

À medida que o tempo passou as Constituições Federais foram incluindo a Justiça dos estados e criando regras que as uniformizavam. Por exemplo, a CF de 1946 dispensou-lhes um Título e um artigo (124) com 12 incisos. Neles se previa, entre outras coisas, o ingresso na magistratura por concurso, a promoção por antiguidade e merecimento e vencimentos iguais aos de secretário de estado.

A CF de 1988 foi minuciosa ao dispor sobre o Poder Judiciário, quase igualando o Poder Judiciário da União e o dos Estados (arts. 92 a 100). A completar, a Emenda Constitucional 45/2004 criou o Conselho Nacional de Justiça, em meio a uma polêmica enorme e com resistência da maioria dos membros da magistratura.

As dúvidas que este histórico suscita são: a) da Constituição de 1891 à EC 45/2004 foi solapada a autonomia dos Tribunais Estaduais? b) a criação do CNJ fere o pacto federativo?

Em uma só resposta para as duas indagações, é possível afirmar que sim, sem dúvida, com o passar dos anos a autonomia das Justiças Estaduais perdeu individualidade. Todavia, não é correto dizer que perderam força, porque, ao contrário, receberam elas todas as garantias reservadas apenas aos magistrados federais. Basta ver os textos constitucionais que tratam do Poder Judiciário.

Em um Estado Federal os estados gozam de autonomia política, portanto são livres para organizar os seus poderes. Nos EUA, esta autonomia é cuidada com zelo e, por isso, leis estaduais são absolutamente diferentes (p. ex., uns adotando a pena de morte e outros não). Os Tribunais Estaduais são distintos, havendo em alguns estados apenas um de apelação e, em outros, uma Suprema Corte Estadual (v.g., Colorado). Os vencimentos também são díspares. Em 2010, enquanto um juiz da Suprema Corte da Califórnia ganhava U$ 218,2 mil por ano, seu colega do Mississipi recebia U$ 112,5 mil.

Na Argentina dá-se o mesmo. Até os Códigos de Processo são autônomos. Se um advogado da Província de Corrientes for propor uma ação em Mendoza deve, antes, estudar o Código Processual Civil, editado através da Ley Provincial Mendonzina 2.269, de 29 de outubro de 1993.

No Brasil, o Judiciário Estadual acabou se tornando totalmente assemelhado, muito embora os estados sejam absolutamente diferentes do ponto de vista cultural, geográfico, climático e econômico. As peculiaridades regionais são simplesmente ignoradas.

Por exemplo, a extinção dos Tribunais de Alçada pela EC 45/2004 ? sem entrar no mérito da utilidade ? foi uma intromissão inadequada do governo central nos Judiciários estaduais. Cada estado tem o direito de decidir se lhe interessa ou não ter uma Corte intermediária. Outro exemplo, o fim do pretor, cargo outrora existente no Pará e Rio Grande do Sul. A intromissão exagerada engessa a autonomia local.

No âmbito administrativo, o CNJ cometeu um equívoco ao uniformizar, pela Resolução 130/2011, o horário de funcionamento de toda a Justiça brasileira (9h às 18 h). Não se levou em conta a temperatura, os hábitos locais, as situações consolidadas. De um momento para outro tudo mudou, gerando um enorme tumulto, protestos de toda ordem e nenhum resultado positivo. Em boa hora o STF (ministro Luiz Fux, 30.6.2011) suspendeu os efeitos do ato administrativo.

Mas, do ponto de vista disciplinar, não há como defender a autonomia dos TJs nem de outros Tribunais da União, inclusive os Superiores. Esta atividade do CNJ, que é da máxima relevância, está prevista no artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso III da Constituição Federal. Discute-se se a ação do CNJ é concorrente ou suplementar à dos tribunais (todos, não apenas os estaduais). É dizer, se o CNJ pode investigar uma falta funcional de imediato (concorrente) ou se deve aguardar a investigação ou omissão do tribunal (supletiva).

A redação do inciso III citado, no que interessa, diz: “sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais”. Quer me parecer que a dúvida não se justifica e que o desejo do constituinte foi exatamente dotar o órgão de competência concorrente.

Esta me parece a correta interpretação, inclusive porque os magistrados de tribunais nunca tiveram qualquer tipo de controle. Pessoas que convivem diariamente não se fiscalizam, seja por amizade, por espírito de corpo, por troca de apoio em alguma reivindicação ou até para não prejudicar o filho que está se formando em Direito.

Ao contrário dos juízes de primeiro grau, que, ora mais, ora menos, sempre foram cobrados (tudo a depender de quem é o corregedor), desembargadores e ministros jamais responderam a quem quer que seja. Como esses cargos não transformam seres humanos em anjos, foi preciso criar-se o CNJ e sua Corregedoria Nacional, para que os casos de infrações disciplinares tivessem investigação.

Esperar que os tribunais apurem para depois o CNJ agir é ignorar a realidade da vida, optar pela discussão acadêmica (sempre mais sedutora e neutra) do que enfrentar a realidade (no caso, sempre difícil). Ingenuidade pura.

Em suma, há que se prestigiar a Justiça dos Estados, reconhecer-lhe a necessidade de autonomia, mas sem abrir mão do poder do CNJ investigar os deslizes cometidos pelos membros dos Tribunas de Justiça, como de resto também de todos os outros Tribunais da União, exceto o STF, cuja posição hierárquica está acima do Conselho e deve ser preservada.

Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.

 

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