O caso da água engarrafada nos EUA

No dia 6 de outubro de 2008, às 21h do horário de Brasília, foi acessada no site de conteúdos UOL, uma reportagem originada do periódico “Le Monde”, intitulada a “A guerra contra a água engarrafada toma conta dos Estados Unidos”, publicada por Yves Eudes, desde McCloud, na Califórnia, e traduzida por Jean-Yves Neufville(1).

Trata-se de um caso da luta da sociedade civil local, liderada por uma administradora de agência imobiliária, chamada Debra Anderson, contra o grupo Nestlé.

Tudo começou quando, em 2003, numa reunião com o conselho distrital daquela cidade, a comunidade foi informada do megaprojeto de construção de um complexo industrial pela multinacional supracitada, o qual iria captar a água do rio McCloud, na sua fonte, e comercializá-la em grande escala.

Segundo Debra Anderson, o interessante foi observar como o projeto fora sumariamente proposto à comunidade e como sua aprovação fora precipitada pelo conselho distrital comunitário, em condições extremamente prejudiciais, de apropriação dos recursos naturais e benefícios econômicos unilaterais à multinacional.

Dentre os benefícios desiguais, obtidos pelo Grupo Nestlé, para a exploração da água no rio McCloud, estavam, segundo Debra Anderson, o fato de que não seria realizado nenhum estudo prévio de impacto ambiental para a instalação do megaprojeto; seria dada contratualmente exclusividade para a exploração de tal recurso natural por um período de 100 anos; durante esse período, a empresa poderia bombear 4.700 litros de água por minuto, mantendo tal montante, mesmo nos períodos de seca e mesmo que houvesse escassez de água para a população circunscrita ao local.

Em troca dessa apropriação dos recursos naturais, a empresa se comprometia a gerar 240 empregos diretos, a pagar taxas e impostos. Segundo Debra Anderson, o conselho distrital comunitário, formado por simples cidadãos locais, tinha a legitimidade para gerenciar os recursos da bacia hidrográfica local, mas não estavam aptos a enfrentar negociações de tal nível, de tal complexidade, em confronto aos interesses econômicos da empresa, os quais eram representados por advogados e outros profissionais especializados da multinacional.

De acordo com a reportagem em análise, essa é uma guerra desigual, pois o grupo Nestlé e sua subsidiária chamada Nestlé Waters, possuíam, com dados da época da publicação (2007), a propriedade de 72 marcas de água mineral, produzidas em 38 unidades instaladas no mundo, chegando a um faturamento de cerca de 6.300.000.000,00 de Euros. Só nos EUA, essa empresa controlaria um terço do mercado de águas engarrafadas, naquele período.

A missão do grupo local, inicialmente formado por amigos e liderado por Debra Anderson era “obter a anulação deste contrato leonino”. Num primeiro momento, a idéia do grupo de pessoas era de que isso seria solucionado em algumas semanas, a partir da ação intensiva da população local, por meio de atos de protesto, panfletagem, palestras, as quais levariam a realização de um abaixo-assinado contra o ocorrido.

Não obstante, mais pessoas foram se reunindo em torno dessa idéia, a qual conseguiu congregar diferentes ideologias, origens, concepções, partidos políticos da sociedade civil local, em torno de uma questão comum a todos: a proteção do meio ambiente. Isso levou a criação de uma associação por eles, a McCloud Watershed Council ou “Conselho da Região Hidrográfica de McCloud”.

Essa organização não-governamental (ONG) questionou judicialmente a abertura do complexo industrial, procurando anular o contrato estabelecido, pela falta da realização prévia de estudo de impacto ambiental, para a sua consecução.

A situação se ampliou e a divulgação pública do trabalho da McCloud Watershed Council gerou outras convergências dos esforços para a proteção do meio ambiente. Aos poucos, outros grupos de proteção do meio ambiente e entidade filantrópicas e de fins sociais começaram a declarar seu apoio ao trabalho dessa ONG.

A importante discu,ssão fundamental levantada pelo grupo era sobre a possibilidade de apropriação econômica de recursos naturais como água, enquanto elemento indispensável para a vida e que, portanto, não poderia ser considerada mercadoria proprietária.

Uma das formas de conscientizar a população local quanto a isso foi distribuição de garrafas de alumínio, reutilizáveis, que podem ser abastecidas numa simples torneira, com a mesma água que a multinacional quer vender a todos.

Além da escassez de água para as populações locais, notou-se que outros problemas diretos seriam gerados, estendendo o rol de argumentos contrários à instalação do empreendimento, apresentados pela ONG.

A instalação do empreendimento levaria a ampliação do tráfego de caminhões, para o transporte das garrafas, gerando novos índices de poluição atmosférica. Também geraria a demanda pela instalação ou transporte de garrafas de plástico, acentuando o uso de matérias primas derivadas de petróleo e o consumo de energia para sua transformação.

O bombeamento da água poderia, outrossim, afetar o regime do lençol freático, rios e lagos locais, provocando efeitos em cadeia por todo o ecossistema envolvido.

Mas dentro da noção de complexidade da sociedade civil atual, na sua gama interconexa de interesses coexistentes, num mesmo momento e espaço, foi inevitável haver o choque com aqueles que se colocam a favor do desenvolvimento econômico a qualquer custo.

Isso pode ser verificado na resposta contrária que parte da população deu, ao criar uma outra ONG, para defender a instalação do empreendimento na localidade.

Na reportagem citada, é destacado que esses interesses opostos estão visíveis dentro do próprio seio familiar de Debra Anderson, no qual sua prima manifesta uma atuação intensiva pró-Nestlé. Para Kelly Claro, prima de Debra, seus interesses individuais estão colocados acima das questões ambientais.

Suas preocupações são voltadas ao seu próprio bem-estar imediato, tais como a obtenção de um emprego na nova empresa. Esse também é o foco da população favorável à instalação da fábrica, os benefícios individuais econômicos trazidos pelo novo empreendimento, mesmo que, no longo prazo, não se saiba as conseqüências e os riscos ecológicos desse feito.

Todavia, sem a atuação do grupo liderado por Debra, a unidade de captação já estaria em funcionamento. Devido ao posicionamento da parcela consciente da população, a multinacional acabou por ceder e rever suas metas industriais naquela localidade, cancelando o contrato originalmente assinado e colocando-se à disposição para uma reformulação negociada do projeto.

O efeito pedagógico social da ocorrência fez com que em outras comunidades, a mesma questão viesse à tona e, em casos similares, as populações começassem a enfrentar o poder econômico das empresas, questionando tal modelo de negócios.

Surgiram novas ONGs e as populações estão obtendo vitórias sociais e judiciais contra a instalação desse tipo de empresas. No âmbito político, surgiram discussões e debates sobre o assunto, a partir da irradiação positiva da idéia de preservação dos recursos hídricos para o futuro da humanidade, contra as engarrafadoras de água. Por decorrência ou não, certos órgãos públicos americanos, como a prefeitura de San Francisco e Minneapólis, citadas na reportagem, proibiram a compra de água engarrafada em suas repartições.

Em outro flanco, também explorado atualmente pelas ONGs, está a conscientização ao consumo consciente. Surgiram campanhas para convencer os consumidores a beber somente água da torneira. Segundo a reportagem, igrejas protestantes recomendam que seus paroquianos evitem comprar esse tipo de produto e nas universidades se realizam degustações para se demonstrar a igualdade de paladar entre as águas.

Ainda segundo a reportagem, todas essas repercussões, aos esforços do grupo liderado por Debra Anderson, trouxeram aos seus integrantes satisfa&c,cedil;ão e contentamento pelo trabalho realizado em prol do meio ambiente: “Alguns eleitos locais de uma região rural da Índia visitaram os Estados Unidos para divulgar seu combate contra uma usina de água engarrafada que pertence à Coca-Cola, e eles esticaram a sua viagem até McCloud, para nos conhecerem. Eles nos deram os parabéns! Depois disso, nós temos a obrigação de lutar até o fim”.

Esse é um fato notório, um indício claro do fenômeno mundial que estamos vivendo e que está em curso, a formação, pela ação integrada da sociedade civil global, de uma teia social de proteção do meio ambiente, o qual resultará, pela junção de esforços, na implementação futura do Estado Mundial Ambiental.

O caso demonstrou que não está em jogo a proibição do exercício da livre iniciativa econômica na sociedade, mas sua ação desmedida, sem a devida preocupação com o futuro das novas gerações.

O desenvolvimento econômico embasado na mera expectativa de lucros deve ser substituída pela perspectiva de equilíbrio entre Economia e Ecologia. Nesse sentido, a sociedade civil organizada, como demonstrado, apresenta importante papel ativo, ao lado do Estado, para fins de controle sustentável das atividades econômicas.

Dentro da idéia de Estado Mundial Ambiental, esse é o modelo esperado, o qual está a emergir não só no exemplo supracitado, mas pela atuação de um número cada vez maior de organizações não-governamentais de defesa ambiental.

Nota:

(1) http://noticias.uol.com.br/ midiaglobal/lemonde/208/10/06/ ult580u3353.jhtm, acessado em 6 de outubro de 2008, às 21h, horário de Brasília.

Sérgio Rodrigo Martinez é doutor em Direito, professor e pesquisador. Atualmente realiza sua pesquisa sobre Estado Mundial Ambiental na Universidade Complutense de Madrid.
selfpeq@yahoo.com

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