O Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória nº 518, de 2010, que trata do Cadastro Positivo, com modificações em seu texto. Trata-se de importante avanço legislativo para regular o tratamento de informações, que irá contribuir para o desenvolvimento do crédito no País. Entretanto, uma das modificações promovidas pelo Congresso merece uma reflexão mais profunda: a inclusão do § 3º do art. 4º, que estabelece que a autorização para abertura do cadastro, concedida pelo cadastrado para um banco de dados de sua preferência, é válida para todos os demais bancos de dados, ainda que desconhecidos por ele, sendo vedada a inclusão de cláusula que restrinja a autorização apenas aos bancos de dados que o cadastrado conheça e nos quais confie para tratar os seus dados positivos.
O assunto cadastro de informações de pessoas é delicado por envolver a privacidade do cidadão e das empresas e há que se ter por referência que o titular das informações é sempre a pessoa, natural ou jurídica, sobretudo quando se trata de informações positivas.
O Cadastro Positivo é, indubitavelmente, assunto relevante e urgente que merece o tratamento especial que lhe foi conferido pelo Poder Executivo por meio da edição da Medida Provisória nº 518, pois a sua rápida implantação possibilitará a ampliação do crédito, em especial para a população de baixa renda, promovendo, ainda, meios para que seja avaliado e, consequentemente, evitado o superendividamento dos consumidores.
Contudo, para que este propósito seja alcançado, é necessário que sejam melhor compreendidos os efeitos do § 3º do art. 4º do Projeto de Lei de Conversão[1] aprovado pelo Congresso Nacional, a fim de que sejam adotadas as soluções que melhor preservem os interesses dos consumidores sem, contudo, inviabilizar a formação do Cadastro Positivo. Tal dispositivo não constava originariamente da Medida Provisória 518, tendo sido incluído por emenda da Câmara dos Deputados.
Antijurídico é o fato de que tal dispositivo retira do cidadão o direito de dispor conforme lhe convier das próprias informações. Há aqui uma agressão legislativa infraconstitucional à liberdade do consumidor em decidir o destino das suas informações positivas.
A coleta, o tratamento, o armazenamento e a disponibilização de informações creditícias para consulta é atividade que demanda alta especialização e responsabilidade para o seu desempenho. Está atrelada à credibilidade do gestor de banco de dados que prestará o serviço. Permitir que a autorização aproveite a todos os bancos de dados gerará o fundado receio de que as informações possam ser utilizadas para fim diverso daquele a que se destinam ou sejam tratadas sem as cautelas necessárias para a sua segurança.
A informação é um bem valioso para o seu titular e, por este motivo, o Poder Executivo cuidou de assegurar ao cadastrado a faculdade de autorizar ou não a formação de cadastro, mediante o seu consentimento informado. Logo, não faz sentido que as suas informações sejam tratadas por empresas que desconheça. No momento da coleta da autorização, deve-se assegurar ao cadastrado o direito de dispor dos seus dados positivos a quem quiser, estabelecendo a quais bancos de dados estas se destinam.
É importante lembrar que a credibilidade dos gestores dos bancos de dados para os quais as informações serão enviadas não interessa apenas aos cadastrados, mas também a todos os participantes (credores, fontes e consulentes). De acordo com o art. 16 do Projeto de Lei de Conversão, “o banco de dados, a fonte e o consulente são responsáveis objetiva e solidariamente pelos danos materiais e morais que causarem ao cadastrado”.
Se a autorização para abertura do cadastro valer para todos os bancos de dados, as fontes e os consulentes serão solidária e objetivamente responsáveis com estes bancos de dados, que nem mesmo conhecem. Esse efeito provocará um retraimento da expansão do cadastro positivo, na medida em que o consumidor, para evitar ter o seu nome em bancos de dados desconhecidos, não dará a autorização inicial. Até mesmo a fonte, que tem a obrigação de fornecer informações a todos os bancos de dados, não terá estímulo diante do risco de ser objetiva e solidariamente responsável com bancos de dados desconhecidos, nem sempre com patrimônio suficiente para responder por eventuais danos que venham a causar. São situações práticas que poderão gerar efeito não desejado pelo legislador.
A disposição em questão não se harmoniza com o espírito da nova lei, que exige, em seu artigo 9º, autorização específica para o compartilhamento de informações. Ora, se para o compartilhamento, que é uma atividade secundária, exige-se autorização específica pela qual se indique o banco de dados destinatário das informações compartilhadas, é incoerente que este direito seja subtraído do cadastrado no momento da abertura do seu Cadastro Positivo.
É imperioso, portanto, o veto ao § 3º do art. 4º do PL de Conversão, haja vista que a sua aprovação pode inviabilizar a formação do Cadastro Positivo pela não concessão de autorização pelos cadastrados em razão do fundado receio acerca da segurança das suas informações. Mais do que isso, o veto devolverá ao consumidor o direito de dispor, para quem e quando lhe convier, das suas próprias informações positivas.
A sanção presidencial deve ocorrer nos próximos dias e, em razão disso, espera-se a mobilização dos órgãos de defesa dos consumidores, DPDC e Procons, para que esse direito básico não lhes seja subtraído.
Essas considerações acerca do Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 518 visam a contribuir para o debate acerca da melhor forma para harmonizar os direitos e os deveres de todas as partes envolvidas e viabilizar a implantação rápida e eficaz do Cadastro Positivo, possibilitando aos cadastrados, às fontes, aos consulentes e aos gestores de bancos de dados usufruírem dos seus benefícios, em prol do desenvolvimento da economia nacional.
_______________________
[1] “Art. 4º A abertura de cadastro requer autorização prévia do potencial cadastrado, mediante consentimento informado, por meio de assinatura em instrumento específico ou em cláusula apartada.
(…) § 3º A autorização concedida a uma fonte, ainda que para fornecimento de informações a banco de dados específico, aproveita a todos os bancos de dados, vedada a inclusão de cláusula que restrinja os bancos de dados que poderão ter acesso às informações.”
Silvânio Covas é Diretor Jurídico da Serasa Experian e Experian América Latina. Mestre em Direito pela PUC-SP. Presidente da Comissão de Estudos sobre Instituições Financeiras da OAB- SP. Presidente da Comissão de Direito e Internet do IASP – Instituto de Advogados de São Paulo