O impacto causado no Instituto da Adoção pelo novo Código Civil parece que não foi devidamente analisado por alguns especialistas. Há os que continuam simplesmente aplicando o ECA, enquanto outros invocam o princípio da especialização para uma suposta supremacia sua sobre o Código Civil. Penso ser insustentável tal entendimento. A um porque desconhece as regras da LICC sobre a prevalência da lei nova sobre a antiga, quando legislam sobre a mesma matéria; A dois porque o NCC é lei complementar e o ECA é lei ordinária; A três porque a especialidade é o instituto da adoção e não um suposto direito da criança e do adolescente; A quatro porque não existe este ramo autônomo do direito com tal denominação, sendo ele formado por vários ramos do direito, como o civil, penal, processual civil e penal, administrativo etc.
Se em vários casos é possível uma interpretação harmônica para salvar os conflitos entre o NCC e o ECA, em outros tantos a prevalência do NCC só pode ser combatida se for demonstrado que o dispositivo da nova lei é inconstitucional, pela via do controle incidental de constitucionalidade. A verdadeira solução para o problema passa por uma alteração legislativa. O PL n.º 6.960/02, do Dep. Ricardo Fiúza, relator do NCC, que lhe altera 208 artigos, será um mau ainda maior, já que elimina as hipóteses de interpretação harmônica, quando pretende revogar todos os artigos do ECA que tratam da adoção.
Uma parcela de juristas, mesmo admitido que o ECA precisa de aperfeiçoamentos e os malefícios trazidos pelo NCC, insiste que a melhor solução seria ajustar o Estatuto, a pretexto de uma unicidade legislativa. Democraticamente entendo tal posicionamento, só que, ao meu sentir, carrega ele intrinsecamente uma enorme dosagem de ingenuidade ou encobre o desejo de nada mudar, senão vejamos: a) centenas de projetos de lei(a maioria ruins ou inócuos) tramitam no Congresso para modificar o ECA e não evoluem. Ou seja, o novo ajuste ou vai também ficar “deitado eternamente em berço esplendido”, ou atrairá um sem número de teratologias jurídicas para desfigurar o ECA; b) as crianças que se encontram `arquivadas” nos abrigos precisam de uma lei ágil, principalmente as mais velhas, que facilite e estimule a adoção, não podendo se dar ao luxo de esperar questiúnculas do jurisdiquês para resolver as suas vidas; c) o verdadeiro compromisso deve ser com a doutrina da proteção integral e não com um suposto imaculado Estatuto (sempre que ouço essa defesa do ECA virginal me recordo da música de Belchior “como nossos pais”, e das críticas que dirigíamos aos defensores do revogado Código de Menores dizendo que eles estavam comprometidos com a lei e não com o interesse das crianças).
Em contrapartida, o projeto de lei n.º 1.756/03, de autoria do deputado catarinense João Matos, foi produzido de forma democrática com contribuições de todo o país, formuladas por juristas, psicólogos, assistentes sociais, grupos de apoio à adoção, etc. Tramitando na Câmara desde agosto de 2003, o seu autor conseguiu a criação de uma comissão especial, que promoverá audiências públicas para aperfeiçoamento do texto e posterior votação em plenário.
Mesmo os que não acorreram ao chamamento para ajudar na construção coletiva ainda têm tempo para apresentar suas valiosas contribuições.
A título ilustrativo, veja-se algumas das vantagens da LNA: a) bases para o cadastro nacional único; b) definição clara de quem é adotável e de quem pode adotar; c) fixação das diversas modalidades de adoção e os seus respectivos procedimentos; d) regras compatíveis com a Convenção de Haia sobre adoção internacional; e) prazos certos para abrigos, conselhos tutelares, promotores e juizes, inclusive com previsões sancionatórias; f) estímulo às adoções tardias; g) aprofundamento sobre a perda do poder familiar; h) fixação dos direitos dos adotandos e adotantes; i) indicativo para critérios de preferência entre adotantes; j) complementação das regras recursais do ECA, etc..
Simplesmente dizer “sou contra” ou sugerir que o projeto contempla defeitos é um desserviço à causa da infância. Impõe-se eticamente a apresentação de uma proposta de melhor conteúdo técnico e a indicação de caminhos novos para acelerar a tramitação no Congresso. Caso contrário, é um dever que contribuam para aperfeiçoar o texto já apresentado e ajudem na sua aprovação. Fora disso, fica desmascarado o discurso crítico vazio e terão que assumir suas parcelas de culpa coletiva por estarem os abrigos superlotados de crianças e as listas de espera dos juizados continuarem enormes, enquanto que estas duas realidades paralelas nunca se encontram.
Luiz Carlos de Barros Figueiredo
é juiz da 2.ª Vara da Infância e da Juventude do Recife- PE