O beijo de Suplicy

O senador Eduardo Suplicy é tido como homem sério. Às vezes parece um padre falando. Anteontem, como estrela de uma cerimônia em palácio, no Planalto, se emocionou. E chorou diante de todos e das câmaras. No final, pediu permissão e beijou as barbas do presidente Lula e, de quebra, tascou outro beijo no quase-desafeto José Dirceu, o companheiro ministro-chefe da Casa Civil que, no episódio de expulsão da senadora Heloísa Helena, considerou-o adversário.

Motivos para chorar e distribuir beijos o senador tinha de sobra. Principalmente num ano eleitoral como este. Lula acabava de sancionar texto de lei de sua iniciativa que institui o programa de renda básica de cidadania para todos os brasileiros a partir do ano que vem. Pelo texto bonito da nova lei, o Estado brasileiro tem que conceder benefícios que atendam às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, saúde e educação. É a ?renda básica da cidadania?. Ricos ou pobres têm o mesmo direito, chegou a dizer Lula, também emocionado, a ponto de observar que ?hoje, milhões de brasileiros pobres não ganham nada ou ganham menos do que os subsídios destinados à criação de animais nos países ricos?.

Em seu dia de glória, Suplicy ganhou elogios e consolidou sua fama de obstinado, sublinhada pelo companheiro presidente Lula. Se metade da classe política, ou da sociedade, tivesse a persistência (teimosia, disse Lula) do senador, o País já teria mudado. Ao projeto transformado em lei, por exemplo, Suplicy dedicou doze longos anos de sua carreira política. Agora pode descansar em paz e com a sensação do dever cumprido. O problema está resolvido. E quem não estiver conseguindo sobreviver com decência neste Brasil do desemprego, que apareça nos balcões da Justiça (ou de qualquer guichê do serviço público) para apanhar grana e ração…

Mas o próprio companheiro Lula sabe que as coisas não são bem assim. Leis são apenas leis, e de per si nada resolvem. Agora está diante do Planalto a tarefa de fazer a lei pegar. Mais uma, entre tantas e até melhores que essa. E ?essa lei só vai se transformar num barco completo quando pusermos o barco no mar?… e o mar é grande – é um oceano.

Aliás, se não fosse por demagogia, dir-se-ia que por burrice, estão todos esquecidos que nesse oceano já navega um barco chamado CLT (também uma lei, aliás, uma consolidação de leis), que só não afundou ainda devido a outros contrapesos, bóias e remos. Desde os idos tempos do saudoso Getúlio Vargas está lá escrito, com todas as letras, no artigo 76, que o salário mínimo deve ser a ?contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço e capaz de satisfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte?.

Atenção: ?necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte?. Em determinada época e região do País.

Temos, pois, que Suplicy não descobriu a pólvora nem Lula tem do que se gabar em suas andanças internacionais (inclusive a próxima, já anunciada, para discutir com o presidente francês, Jacques Chirac, o problema da fome mundial). Se choram, deveriam fazê-lo por reconhecer que estão usando o Estado para dialética nova em cima de tema velho. Melhor, por não terem tido a capacidade de fazer cumprir lei tão antiga como a velha e boa CLT, que muitos querem reformada. O beijo de Suplicy, diante disso, é meramente emblemático e a nada serve senão à vazão de seus próprios afetos. Ou instintos. Aos brasileiros resta a certeza de que, como a velha, a nova lei terá como destino alguma empoeirada gaveta. Infelizmente.

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