1. A justa causado alcoolismo
A embriaguez habitual ou em serviço considera-se justa causa, no direito do trabalho brasileiro, para rescisão contratual pelo empregador (art. 482, alínea f, da CLT).
A lei não diz o conceito de embriaguez, o que ficou por conta da doutrina.
Não menciona, também, a norma legal, o grau de embriaguez nem tampouco a natureza do elemento químico embriagante, como pondera Antonio Lamarca: “não interessa ao legislador, o grau de embriaguez nem sua causa: bastante é que o indivíduo se apresente embriagado no serviço (ou se embebede no decorrer dele) ou que se inebrie habitualmente”(1).
2. A incapacidade relativa dos ébrios habituais
O Novo Código Civil considerou relativamente incapazes os ébrios habituais, (art. 4.º, II, da Lei n.º 10.406, de 10.01.02, em vigor desde 11.01.03), o que poderá influir na apreciação da justa causa prevista no art. 482, alínea “f” da CLT (embriaguez habitual ou em serviço).
Com efeito, são, agora, considerados incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido (art. 4.º, II, do Novo Código Civil Brasileiro).
Esclarece Renan Lotufo que, mesmo antes das mudanças trazidas pelo Novo Código Civil, boa parte da doutrina já considerava os toxicômanos e ébrios habituais como relativamente incapazes em face do disposto no Decreto n.º 891, de 1938. Esse diploma legal trata tanto dos viciados em tóxicos como dos ébrios (art. 29). Quanto à capacidade civil, “a interdição limitada importa na equiparação do interdito aos relativamente incapazes, assim com a interdição plena o equipara aos absolutamente incapazes, respectivamente, na forma dos arts. 5.º e 6.º do Código Civil” de 1916. Assim, já havia normatização sobre a capacidade civil dos toxicômanos e dos ébrios habituais, sendo o novo texto legal (art. 4.º, inciso II) explícito ao considerá-los relativamente incapazes(2).
Comentando esse dispositivo legal, e a incidência na órbita do Direito do Trabalho, diz Edilton Meireles: “As modificações são substanciais quanto à previsão do inciso II (os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido), com reflexo no Direito do Trabalho, pois os enquadrados nestas hipóteses passam a ser relativamente incapazes, inclusive para atuarem em Juízo e firmarem compromissos”(3). Ressalva, no entanto, que “se maiores de 18 anos, tais pessoas apenas poderão ser consideradas incapazes, ainda que de forma relativa, após o devido processo de interdição (plena ou parcial)”(4).
3. O alcoolismo como doença
A Organização Mundial de Saúde definiu o alcoolismo como sendo “estado psíquico e também geralmente físico, resultante da ingestão de álcool, caracterizado por reações de comportamento e outras que sempre incluem uma compulsão para ingerir álcool de modo contínuo ou periódico, a fim de experimentar seus efeitos psíquicos e por vezes evitar o desconforto da sua falta, a tolerância ao mesmo, podendo ou não estar presente”(5).
Esse reconhecimento, do alcoolismo como doença, expressou-se em Recomendações na 9.ª Conferência de Revisão da ONU, 1975, e restou adotado pela Vigésima Assembléia Mundial de Saúde da ONU(6).
4. As conseqüências para o Direito do Trabalho
Sendo, como de fato é, o alcoolismo uma doença reconhecida internacionalmente pela OMS e consagrada no CID, devem ser mitigados os efeitos do art. 482, letra “f”, da CLT, até que essa regra seja expungida do mundo trabalhista via legislador.
João Régis Fassbender Teixeira notabilizou-se como um dos doutrinadores do Direito do Trabalho que mais se empenhou pela erradicação do tema como justa causa disciplinada em lei. Em opúsculo intitulado “Alcoolismo e Direito (aspectos de alguns problemas)”, apresentado como contribuição no setor de temas livres no V Congresso Brasileiro de Alcoolismo de São Paulo, em setembro de 1984, pugnou pela declaração de “caduquice da letra “F” do art. 482 da CLT” e justificou: “Sendo o alcoolismo uma doença – e o é comprovada e declaradamente – não há maneira de enquadrá-la como justa causa, muito menos como falta grave, no concerto das ocorrências que podem tumultuar uma relação de emprego. Seria o mesmo que admitir, v.g., o câncer, a lepra, a tuberculose como motivos justos para rescindir um pacto laboral vigente”(7).
5. O reconhecimento da tese pela jurisprudência do TRT da 9ª Região
O E. TRT da 9.ª Região, por suas E. Turmas julgadoras, tem tido a oportunidade de examinar esse tema, em várias ocasiões, posicionando-se no sentido de afastar a incidência fria do art. 482, letra f, da CLT, aos casos de alcoolismo, tratando-o como doença:
“EMBRIAGUEZ. DEPENDÊNCIA FÍSICA. Confessando o preposto da reclamada que o empregado era dependente físico de álcool, não resulta justificada a rescisão por justa causa. Deve o empregador encaminhar o obreiro para o devido tratamento médico, como o faz em relação a qualquer outra doença impeditiva de continuidade da prestação de trabalho”(8).
6. A influência do art.4º, II, do Novo Código Civil
Em sólido artigo jurídico nominado de “O novo Código Civil e o contrato de trabalho sob lições de Orlando Gomes”, a Eminente Juíza do TRT da 21.ª Região Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro, registra, com inegável acerto, que a embriaguez não pode mais ser considerada como falha de caráter, ou uma falta para com o empregador, ou mero descumprimento das obrigações contratuais, e, considera: “Diante da definição de incapacidade no direito civil, a coesão do ordenamento jurídico indica a necessidade de uma revisão na definição de justa causa, no direito do trabalho, porquanto é impertinente que a mesma pessoa seja considerada portadora de enfermidade e, como tal, incapaz para os atos da vida civil e, pelo mesmo comportamento, seja considerada faltosa no contrato de trabalho”(9).
Desse modo, conclui, “se há algum tempo, questionava-se a caracterização desta espécie de falta, por não condizer com os estudos desenvolvidos sobre doenças, a norma civil passa a constituir fundamento bastante para afastar a imputação de falta”(10).
Se antes já se questionava a juridicidade do art. 482, alínea “f”, da CLT, agora os fundamentos são reforçados com o Novo Código Civil, que considera os ébrios habituais relativamente incapazes (art. 4. II, da Lei n.º 10.406/02).
Notas:
(1) Manual das justas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 431.
(2) Código Civil Comentado: parte geral (arts. 1.º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 24.
(3) O novo código civil e o direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2003. p. 14.
(4) Ob. e p. cit.
(5) TEIXEIRA, João Régis Fassbender. O alcoolismo doença – aspectos no direito do trabalho. In: COELHO, Anna Maria de Toledo (Coord.). Estudos de Direito do Trabalho. Homenagem ao Prof. Julio Malhadas. Curitiba: Juruá, 1992. p. 72.
(6) Ob. p. cit.
(7) Curitiba: CRIS editora e artes gráficas ltda, 1984. p. 14-15.
(8) TRT-PR-RO 10.162/98. Ac.3.ª T. 12.166-99. Rel.designada Juiza Wanda Santi Cardoso da Silva. DJPR 11/06/99. No mesmo sentido, do mesmo Tribunal, os seguintes julgados: AC. 2.ª T. 3.817/01, DJPR 09/02/01; AC. 2.ª T. 15.966/99, DJPR 23/07/99.
(9) Revista LTr vol. 66, n.º 06, junho de 2002. São Paulo: LTr, 2002. p. 695.
(10) Ob. e p. cit.
Luiz Eduardo Gunther
é juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região.Cristina Maria Navarro Zornig
é assessora no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região.