Os Tribunais brasileiros, já há algum tempo, vêm sendo suscitados a decidir sobre a possibilidade de serem reconhecidas nulidades no Inquérito Policial e as conseqüências advindas desse reconhecimento.
Para examinar melhor o tema, alguns pontos, ainda que rapidamente, precisam ser estabelecidos como premissas: o Inquérito Policial, na atual conformação do Código de Processo Penal, constitui uma das formas de investigação preliminar, que tem como finalidade (ou deveria ter) servir de base para a propositura (ou não) da ação penal pelo respectivo legitimado (o Ministério Público, nas ações penais de iniciativa pública; e o particular, nas ações penais de iniciativa privada); a doutrina e a jurisprudência definem o Inquérito Policial como procedimento administrativo, a cargo da polícia judiciária, a ser realizado nos termos do art. 4.º a 23 do CPP(1);
Afirmar, portanto, que o Inquérito Policial tem natureza de procedimento administrativo significa optar pela não-aplicação das garantias constitucionais atinentes ao processo, por todas, a do processo legal devido. Aceita-se, assim, desde 1871 quando foi criado(2), que a polícia judiciária, sozinha, realize as mais diversas diligências para apuração do fato de que teve conhecimento através de notícia do crime (agora, após 88, algumas dessas diligências devem ser precedidas de autorização judicial, a exemplo da busca e apreensão em domicílio), sem a participação, a princípio, do legitimado para propor a ação ou da defesa do indiciado.
Nessa configuração, indaga-se: é possível se falar em vícios no Inquérito Policial? Se sim, que regime a elas se aplica: aquele trazido pelo CPP (arts. 563-573)(3), aquele aplicado aos atos administrativos em geral ou um terceiro regime? Há diferença de tratamento do tema pelos dois primeiros mencionados, com conseqüências também distintas, a começar pela possibilidade ou não de convalidação de atos viciados. De qualquer forma, quer parecer que o Judiciário pode ser chamado a fazer o controle da legalidade de tais atos, em qualquer hipótese.
A doutrina, quando enfrenta o tema, limita-se a dizer que eventuais vícios não atingem o processo penal(4) ou afirma que não é possível falar em vício nessa fase da persecução penal(5). Não obstante, a prática demonstra que muitos dos atos ali praticados padecem de vícios graves, ora com ofensa ao direito material, ora com ofensa a regras procedimentais e processuais. E o enfrentamento dessas questões se torna, sem dúvida, relevante na medida em que, como se bem sabe, os elementos colhidos na fase de investigação preliminar pela polícia judiciária são levados em consideração pelo magistrado no processo, inclusive em sua decisão, que, de regra, é condenatória. Apesar da evidente inconstitucionalidade de tal postura, a jurisprudência reconhece a possibilidade do juiz condenar o acusado com base na prova do Inquérito Policial, desde que corroborada pela prova colhida no processo (bem se sabe, todavia, que muitos desses elementos colhidos não serão repetidos em juízo, por uma série de razões). Disso resulta que são permitidas, então, condenações com base em provas produzidas sem contraditório e sem ampla defesa, ofendendo frontalmente o texto constitucional (art. 5.º, LIV e LV, CR/88).
Diante de tal diagnóstico, é preciso enfrentar tecnicamente a questão, dando ao tema o devido tratamento legal, doutrinário e jurisprudencial. Mas é preciso tratar do tema efetivamente, ou seja, não é possível, sem qualquer discussão, tentar resolver o problema dos vícios no Inquérito Policial através de analogias não fundamentadas, como aquelas utilizadas, com todo respeito, por exemplo, pelo Supremo Tribunal Federal. Para ilustrar a situação aventada, traz-se o seguinte julgado:
?HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO NA FASE INQUISITORIAL. INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES. TEORIA DA ÁRVORE DOS FRUTOS ENVENENADOS. CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS SUBSEQÜENTES. INOCORRÊNCIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PROVA AUTÔNOMA. 1. Eventuais vícios do inquérito policial não contaminam a ação penal. O reconhecimento fotográfico, procedido na fase inquisitorial, em desconformidade com o artigo 226, I, do Código de Processo Penal, não tem a virtude de contaminar o acervo probatório coligido na fase judicial, sob o crivo do contraditório. Inaplicabilidade da teoria da árvore dos frutos envenenados (fruits of the poisonous tree). Sentença condenatória embasada em provas autônomas produzidas em juízo. 2. Pretensão de reexame da matéria fático-probatória. Inviabilidade do writ. Ordem denegada?(6).
A situação levada a exame por esse Habeas Corpus é gravíssima: na fase do Inquérito Policial procedeu-se ao reconhecimento do suposto autor do fato sem observar as regras do CPP sobre reconhecimento de pessoas. Tal reconhecimento, ao que tudo indica, trouxe às investigações o indício de autoria. A partir desse reconhecimento, assim, preencheu-se uma das condições para exercício da ação penal (justa causa art. 43, III, 2.ª parte, CPP), sem a qual, por certo, não haveria oferecimento de denúncia e, de conseqüência, não haveria instauração de processo penal contra o acusado (ainda que as demais condições tivessem já preenchidas). Não há, portanto, simplesmente que se dizer que o reconhecimento feito em juízo, com a observância das regras do código sanaria tal vício, vez que este diz com a própria constituição do processo penal! Em outras palavras, se não tivesse havido tal reconhecimento, não haveria sequer processo, não sendo possível afirmar, assim, que a condenação se deu com base em provas autônomas produzidas em juízo…Ademais, é preciso indagar se se poderia cogitar, nessa seara, da teoria dos frutos da árvore envenenada, aplicável às provas ilícitas e não às ilegítimas (aqui, trata-se de efeito da declaração da nulidade). Aliás, é mesmo de se perguntar, antes de tudo, se tal vício tornaria esse reconhecimento ilícito ou apenas ilegítimo, pois talvez as conseqüências também pudessem ser distintas. Nada disso é enfrentado no voto do Ilustre Ministro Relator, porém. Fato é que referida teoria vem sendo evocada quando se discute nulidade no Inquérito Policial(7).
De qualquer forma, até que o atual sistema não seja modificado e o Inquérito Policial continue a existir, algo deve ser pensado para amenizar os graves problemas trazidos pela investigação preliminar em sua atual configuração, certamente tendo como referência o texto constitucional. Um bom começo, por certo, é a adoção de posturas democráticas pelos tribunais, mormente aquele que é, por expressa atribuição do art. 102, caput, da CR/88, o guardião da Constituição.
Notas:
(1) Ver, por exemplo: MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 1961. p. 151 e seguintes.
(2) O Inquérito Policial foi criado, no Brasil com a Lei 2.033/1871, regulamentada pelo decreto n.º 4824/1871.
(3) Não se desconhece, ressalte-se, a precariedade do sistema de nulidades adotado pelo CPP atual, que demanda, certamente, reforma urgente.
(4) Por exemplo, MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 16.ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 85-86.
(5) Por exemplo, MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 1961. p. 159.
(6) STF, HC 83.921-5, Rio de Janeiro, 1.ª T. Rel. Min. Eros Grau. Decisão tomada por unanimidade.
(7) STJ HC 49.179/RS, Rel. Min. Laurita Vaz; HC 60.584/RN, Rel. Min. Gilson Dipp; STF HC 80.949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 81.993-1/MT, Rel. Min. Ellen Gracie, dentre outros.
Érica de Oliveira Hartmann é mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora de Direito Processual Penal e Prática Penal no Unicenp, professora de Direito Processual Penal na Unibrasil.