Novatio legis in mellius: aplicação imediata do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06

A terminologia novatio legis in mellius é empregada quando há a publicação de uma nova lei que revoga outra anteriormente em vigência, e que vem a beneficiar o réu/condenado, melhorando, de qualquer forma, sua situação.

No trabalho proposto refiro-me, principalmente ao contido no parágrafo 4.º do art. 33 da Lei 11.343/2006, qual seja a chamada Nova Lei de Drogas, a qual estabeleceu diversas inovações no campo penal, processual penal e principalmente, na execução da pena. Será objeto de estudo aqui as questões relativas no campo penal e, principalmente, os reflexos na execução da pena.

Menciona a nova legislação ora estudada que ?Nos delitos definidos no caput e no par. 1.º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas em um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário e de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.?

O legislador inovou, impondo a quem pratica o crime de tráfico de substância entorpecente, lei mais benéfica que a anterior (Lei 6.378/76), onde não havia tal previsão para este tipo de situação.

Com vigência desde outubro de 2006, questiona-se sobre seu alcance, a sua retroatividade e, principalmente a resolução do conflito de lei penal.

Notório que àqueles que praticaram o crime do art. 33 da nova lei de drogas após sua vigência, impera a aplicação desta causa especial de diminuição de pena, sem qualquer óbice ou questionamento.

O que se propões aqui, é questionar a possibilidade de tal dispositivo alcançar casos já julgados e condenados pelo então dispositivo legal vigente à época (art. 12 da Lei 6.368/76). No entanto, primeiramente será analisada como fica a nova situação a quem pratica este delito atualmente.

O parágrafo 4.º do art. 33 da nova lei de drogas nada mais é do que uma causa especial de redução de pena, àquele que praticam o fato criminoso descrito no caput do artigo, que substituiu o art. 12 da antiga lei.

A conduta criminosa está tipificada no art. 33 (Lei 11.343/06), assim como estava no art. 12 (Lei 6.368/76), restando ao parágrafo 4.º somente prever a diminuição da pena diante de circunstâncias pessoais do réu (ser primário e de bons antecedentes e não se dedique a atividade criminosa nem integre organização criminosa), que são avaliadas no momento da fixação de pena, que é o momento que o juiz tem para aplicar a causa especial de redução de pena (3.ª fase da fixação da pena), podendo até mesmo, a pena ficar aquém do mínimo legal.

Ou seja, havendo tal circunstância, após fixada a pena-base (1.ª fase) e o reconhecimento de circunstâncias atenuantes e agravantes (2.ª fase), o magistrado remete-se à valoração da existência de causas especiais de aumento ou redução de pena (3.a fase). No caso do crime ora estudado (tráfico de drogas), tendo fixada a pena-base (5 a 15 anos) aplica-se o patamar de redução (1/6 a 2/3), conforme o poder discricionário que o Magistrado Sentenciante tem, fundamentando-se em critérios de necessidade da aplicação da pena e reprovação ao crime.

Exemplificando: a um indivíduo que cometeu o crime de tráfico de drogas após outubro de 2006, aplica-se a pena descrita no art. 33 da lei 11.343/06 (5 a 15 anos) e não mais a do art. 12 da lei 6.368/76, que era inferior (3 a 15 anos). No entanto, atendendo ao parágrafo 4o do art. 33, pode-se aplicar, se for o caso, a redução prevista (1/6 a 2/3). Se considerar uma pena fixada em seu mínimo legal (5 anos), e aplicar a causa especial de redução de pena em seu grau máximo (2/3), tem-se que a referido indivíduo restará em uma pena final de 1 ano e 6 meses, no mínimo (reduzindo 2/3) em até 4 anos e 2 meses (reduzindo 1/6), sendo esse o cálculo final para quem cometeu o crime de tráfico de drogas após outubro de 2006.

No entanto, como fica o indivíduo que foi condenado incurso às penas do art. 12 da lei 6.368/76, considerando que o art. 12 da lei anterior refere-se ao art. 33 da lei 11.343/06? Aplica-se ou não a (nova) causa especial de redução de pena, por ser mais benéfica ao acusado/condenado?

Como já dito, não existia na lei antiga a previsão do parágrafo 4.º do art. 33 da nova lei, que possibilita agora, um tratamento mais brando na fixação da pena a quem comete o delito de tráfico de drogas, sendo, assim, uma inovação legislativa, e portanto, tecnicamente, considerada uma novatio legis in mellius.

Não há questionamentos sobre a sua aplicação a fatos criminosos cometidos após outubro de 2006, porém, por dar um tratamento mais brando que a lei anterior é saber se será aplicado a fatos praticados na vigência da Lei 6.368/76, o que revela a grande problemática do debate ora proposto, pois a pergunta que fica é: Essa novatio legis in mellius poderá alcançar aos casos com sentença transitada em julgado?

Ao meu ver, sim. E sempre! Vejamos: Para a regra geral do Direito Penal, qualquer lei nova que venha a beneficiar o réu/condenado deverá sempre retroagir para alcançar fatos pretéritos, quer por cumprimento ao princípio da retroatividade de lei mais benéfica, consagrado pelo Direito Penal, quer pela previsão legal descrita no parágrafo único do art. 2.º do Código Penal Brasileiro, in verbis:

Art. 2.º … … (omissis)

Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Necessário, neste momento, a observação do posicionamento dos juristas pátrios sobre a aplicação de uma nova lei mais benéfica:

ROGÉRIO GRECO(1) relata:

?A novatio legis in mellius será sempre retroativa, sendo aplicada aos fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, ainda que tenham sido decididos por sentença condenatória já transitada em julgado. Se, por exemplo, surgir uma lei nova reduzindo a pena mínima de determinada infração penal, deve aquela que foi aplicada ao agente ser reduzida a fim de atender aos novos limites, mesmo que a sentença que o condenado já tenha transitado em julgado.?

CÉZAR ROBERTO BITENCOURT(2), citando EDÍLSON BONFIM e FERNANDO CAPEZ, sobre a lei penal mais benigna, explica:

?Do mesmo modo, qualquer regra que diminua ou torne a pena mais branda ou a comute em outra de menor severidade também será mais benéfica.?

E mais à frente, às pág. 165 enfatiza:

?Mesmo que a sentença condenatória se encontre em fase de execução, prevalece a lex mitior que, de qualquer modo, favorece o agente, nos estritos termos do parágrafo ?único do art. 2.º do CP. O dispositivo deixa claro que a retroatividade é incondicional.?

Nota-se que, para os doutrinadores acima mencionados, a aplicação de lei nova mais benéfica deve ser aplicada a fatos pretéritos. E como no caso em questão, o que temos é um caso análogo a este entendimento, deverá incidir a nova regra sobre fatos já julgados.

No entanto há resistência de parte da doutrina afirmando que não se poderia aplicar somente parte da nova lei, pois esta (11.343/06) comina uma pena maior (5 a 15 anos) que a antiga (3 a 15 anos). E que não seria possível esta aplicação da causa especial de redução de pena mencionada no parágrafo 4.º do art. 33 da nova lei, tendo em vista que o Juiz estaria aplicando somente parte de uma lei, afirmando que deve aplicar ou uma (6.368/76) ou outra (11.343/06), não sendo possível a combinação de leis, pois a pena-base fixada foi de acordo com a Lei 6.368/76 e agora, não se poderia aplicar esta causa especial de redução de pena que se refere à nova lei.

Na verdade não se trata de combinação de leis. Se trata somente no princípio básico de aplicação imediata de lei nova mais benéfica ao condenado, e que deve, a qualquer custo ser aplicada em prol do condenado.

No entanto, se for o caso do entendimento de que o que ocorre no presente caso é uma combinação de leis, CÉZAR ROBERTO BITENCOURT(3), citando entendimento do STF, leciona sobre a possibilidade de tal conjugação de leis:

?A nosso juízo, esse é o melhor entendimento, que permite a combinação de duas leis, aplicando-se sempre os dispositivos mais benéficos. O Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de examinar essa matéria e decidiu pela possibilidade da conjugação de leis para beneficiar o acusado (HC 69.033-5, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU, 13 mar. 1992, p. 2925).

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná em recente acórdão(4) citou o ensinamento de JOSÉ FREDERICO MARQUES e RENÉ ARIEL DOTTI, sobre a possibilidade ora aventada:

?É antiga a discussão acerca da possibilidade de combinação de normas mais favoráveis de leis em confronto para aplicação ao caso concreto. No Brasil, esforço histórico magnífico nos é apresentado pelo notável professor e jurista paranaense RENÉ ARIEL DOTTI (Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 270/276), por meio do qual se conclui que a orientação mais avançada prega a necessidade de se promover uma combinação para se extrair, de uma e de outra lei, as disposições mais benéficas. E, para assim agir, o juiz – escudado na obediência ao princípio da eqüidade consagrado pelo legislador constituinte – estará apenas laborando dentro dos quadros legais para atingir uma integração absolutamente lícita e possível, pois se o réu deve ter o tratamento penal mais favorável e benigno, nada impede que o órgão judiciário selecione parte de uma lei e parte de outra – diga-se, norma de uma e norma de outra – para tornar concreta a vontade da regra constitucional que deve se sobrepor a ?pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico?. (JOSÉ FREDERICO MARQUES. in FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO. Princípios Básicos de Direito Penal. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 36/37).?

JULIO FABRINI MIRABETE(5), também se expressa no mesmo sentido:

?A melhor solução, porém, é a de que pode haver a combinação das duas leis, aplicando-se sempre os dispositivos mais benéficos.?

LUIZ FLÁVIO GOMES, ALICE BIANCHINI, ROGÉRIO SANCHES CUNHA E WILLIAM TERRA DE OLIVEIRA(6) já ensinando sobre o entendimento da nova lei prolata o seguinte entendimento:

?Tratando-se de inovação benéfica para o réu, deve retroagir (incondicionalmente) para alcançar os fatos pretéritos, ainda que em fase de execução (art. 2.º, parágrafo único, do CP), minorando, nesses casos (pretéritos), a pena antiga (3 a 15 anos).?

O insigne promotor de Justiça e doutrinador RENATO MARCÃO(7), em artigo a respeito, leciona:

?As discussões que gravitam sobre o tema, como não poderia deixar de ser, buscam firmar posição a respeito da retroatividade ou não da causa de redução de pena, para efeito de alcançar penas impostas como decorrência de crimes praticados antes da vigência da Lei Nova.

De nossa parte, sem desconhecer todos os argumentos já expendidos em sentido contrário, afirmamos que a retroatividade é inevitável.

A nova regra deve ser aplicada mesmo aos casos ocorridos antes da vigência da Lei n.º 11.343/2006, por constituir novatio legis in melius (lex mitior).?

ROGÉRIO GRECO(8), destaca:

?Fala-se em combinação de leis quando, a fim de atender aos princípios da ultra-atividade e da retroatividade in mellius, ao julgador é conferida a possibilidade de extrair de dois diplomas os dispositivos que atendam aos interesses doa gente, desprezando aqueles outros que o prejudiquem.?

E mais à frente, completa:

?Entendemos que a combinação de leis levada a efeito pelo julgador, ao contrário de criar um terceiro gênero, atende aos princípios constitucionais da ultra-atividade e retroatividade benéficas. Se a lei anterior, já revogada, possui pontos que, de qualquer modo, beneficiam o agente, deverá ser ultra-ativa; se na lei posterior que revogou o diploma anterior também existem aspectos que o beneficiam, por respeito aos imperativos constitucionais, devem ser aplicados.?

Ao meu ver, este é o entendimento que deve ser adotado. O que no caso concreto representa que o Poder Jurisdicional deverá aplicar imediatamente a lei nova mais benéfica, resultando na diminuição das penas aplicadas a todos os condenados que cumprirem os requisitos disposto no par. 4.º do art. 33 da Lei 11.343/06, quais sejam, serem primários e de bons antecedentes e não se dediquem à atividade criminosa nem integrem organização criminosa.

Outra questão a ser analisada é descobrir quem é o juízo competente para efetuar a aplicação de dispositivo legal mais benéfico, como no caso presente.

O art. 66, I da Lei de Execução Penal, de forma cristalina informa que:

Art. 66. Compete ao juiz da execução:

I aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.

Como já houve dúvidas sobre a aplicação imediata desse dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal sumulou o entendimento de que é o Juízo da Execução o responsável para aplicar no caso concreto, a lei mais benigna:

Súmula 611. Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna.

Somente ante tais informações seriam o bastante para convencer àqueles que ainda duvidam em saber quem é o competente para aplicar o contido na novatio legis in mellius ora estudada. Porém, com a intenção de fundamentar ainda mais tal entendimento, traz-se a versão de juristas.

ROGÉRIO GRECO(9), ratifica:

?Uma vez transitada em julgado a sentença penal condenatória, como regra, a competência para aplicação da lex mitior é transferida para o juízo das execuções, conforme determina o art. 66, I da Lei de Execução Penal.?

RENATO MARCÃO(10), enfatiza:

?Também tem incidência sobre os casos julgados e sob execução, cumprindo ao juiz competente, nos termos do art. 66, I, da Lei de Execução Penal analisar caso a caso a incidência da regra, para fins de ajuste das penas, conforme também decorre do disposto no art. 5.º, XL, da Constituição Federal, e do art. 2.º do Código Penal.?

O Supremo Tribunal Federal já entendeu da mesma forma:

?Tendo em vista, porem, a abolição da reincidencia especifica posterior a prolação da sentença condenatória, impõe-se que a pena, em face da lei posterior mais benefica, seja adequada a esta pelo Juízo da execução.? (HC 68.691, relator o Sr. Ministro OCTAVIO GALLOTTI).

Finalizando, não há qualquer possibilidade do Juízo da Execução declarar-se incompetente para aplicar tal dispositivo, sendo ele, e somente ele o responsável pelo cálculo aritmético de diminuição de pena a ser efetuado, tendo como parâmetros a sentença condenatória que se encontra anexada na guia de recolhimento que, por sua vez encontra-se no processo de execução.

Enfim, diante de tudo o exposto, acredito que não se pode negar vigência e aplicabilidade à lei nova mais benéfica como é o caso do parágrafo 4.º do art. 33 da lei 11.343/06. E que, no que concerne a casos com sentença já transitada em julgado que se encontram em fase de execução, é o melhor entendimento que se aplique a parte mais benéfica da lei, retroagindo a fatos pretéritos à sua vigência, concluindo, por fim, que o Juízo da Execução Penal é o competente para aplicar tal causa especial de diminuição de pena.

Uma luz já apareceu no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, onde, na 5a Câmara Criminal, recentemente julgou caso análogo de forma unânime, enfatizando o entendimento aqui defendido, aplicando o par. 4.º do art. 33 da Lei 11.343/06, o que se deve esperar a sua aplicação em outros diversos casos que serão analisados em um futuro breve, seja de ofício pelo Juízo da Execução Penal, seja quando requerida pelo próprio condenado, e que no corpo da decisão o relator entendeu:

?Dessa forma, não se pode falar que houve omissão ou falta de fundamentação acerca da teoria adotada por este órgão julgador a respeito da combinação das leis penais, pois foi claramente mencionada na decisão embargada a corrente doutrinária que se adota sobre o tema, qual seja, a que permite a combinação de parte de uma lei que retroage para beneficiar o réu, com parte de outro diploma legal que já se aplicava ao caso, tudo com o fim de serem aplicadas as normas mais benéficas ao acusado.?(11) (grifo nosso)

Notas:

(1)  ROGÉRIO GRECO, Curso de Direito Penal Parte Geral, Niterói, Impetus, 2007, p 110.

(2)  CÉZAR ROBERTO BITENCOURT, Tratado de Direito Penal Parte Geral, Saraiva, São Paulo, 2007, pág. 163

(3)  Idem, p. 169.

(4)  TJPR. 1.ª Câm. Crim. Ap. Crim. 0375568-4/01, Rel. Oto Luiz Sponholz, j. em 21/06/2007. Acórdão n.º 21184.

(5)  MIRABETE, Júlio Fabrini, Manual de Direito Penal Parte Geral, Atlas, São Paulo, 2004, pág. 67.

(6)  GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA Rogério Sanches; e OLIVEIRA, Willian Terra de, Lei de Drogas Comentada, São Paulo, RT. 2007, pág. 197.

(7)  MARCÃO, Renato, A Nova Lei de Drogas e seus reflexos na execução penal? (http://www.jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id10199)

(8)  GRECO, Rogério, op. cit. Pág. 115.

(9)  Idem, p. 117.

(10)  MARCÃO, Renato, A Nova Lei de Drogas e seus reflexos na execução penal? (http://www.jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id10199)

(11)  TJPR 5.ª Câm.Crim. -EDC 0377659-8/01 – Guaíra -Rel. Des. Marcus Vinicius de Lacerda Costa – Unânime – J. 3/5/2007

Michael Hiromi Zampronio Miyazaki é advogado em Cascavel-Pr. Professor de Direito Penal e professor responsável do Estágio Simulado de Prática Processual Penal da Unipar – Campus Cascavel.

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