?Novas? regras sobre confisco criminal

No Brasil, lamentavelmente, não é um hábito comum dos estudiosos do Direito a leitura dos tratados internacionais de que o Brasil faz parte. Isso talvez seja decorrente da dimensão continental de nosso país, o que leva, às vezes, a um sentimento ilusório de auto-suficiência ou talvez seja produto do ensino jurídico falho, muitas vezes preso a programas de ensino ultrapassados.

Qualquer que seja a causa, somente pode ser atribuída à aludida falta de hábito a quase inexistência de referência em estudos jurídicos ou mesmo de invocação em decisões judiciais de interessantes normas sobre confisco criminal previstas em vários tratados internacionais de que o Brasil faz parte e que já foram ratificados e promulgados no Brasil. E normas sobre confisco, diga-se, com um grande potencial para o incremento da eficiência da Justiça Criminal.

Uma delas, a de maior potencial, constitui objeto específico deste breve artigo. Diz respeito à possibilidade de confisco não só dos bens obtidos pelo crime, mas igualmente de bens de valor equivalente. Trata-se da ?value confiscation? em oposição à ?object confiscation?, distinção conhecida no Direito Internacional, apresentando a primeira vantagens em relação a segunda, cf. explicitado por Guy Stessens:

?Sem desconsiderar o fato de que a Convenção de Viena e a Convenção Européia de Lavagem de Dinheiro prevêem ambos os modelos de confisco, é claro que o confisco de valor deve ser preferido. Ela providencia um modelo legal melhor para expropriar criminosos de seus ganhos uma vez que não é restrita à propriedade que constitui produto do crime, mas antes parte de uma avaliação desses ganhos.? (STESSENS, Guy. Money Laundering: A New International Law Enforcement Model. Cambridge University, 2000, p. 38).

Não se trata de mera construção doutrinária ou distante no Direito Internacional, já encontrando a medida previsão na Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas que foi promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 154, de 26/06/1991, cf. artigo 5.º, 1, alínea ?a?:

?Artigo 5.º Confisco

1. Cada Parte deverá adotar as medidas necessárias para autorizar o confisco:

a) do produto derivado de delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3, ou de bens cujo valor seja equivalente ao desse produto;

(..)?

De forma semelhante, prevê o artigo 12, item 1, alínea ?a?, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que foi promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 5.015, de 12/03/2004:

?Artigo 12. Confisco e Apreensão

1. Os Estados Partes adotarão, na medida em que seu ordenamento jurídico interno o permita, as medidas necessárias para permitir o confisco:

a) do produto das infrações previstas na presente Convenção ou de bens cujo valor corresponda ao desse produto; (…)?

Norma de teor idêntico pode ser ainda encontrada no artigo 31 na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, e que foi promulgada no Brasil pelo Decreto 5.687, de 31/01/2006:

?Art. 31. Embargo preventivo, apreensão e confisco

1. Cada Estado Parte adotará, no maior grau permitido em seu ordenamento jurídico interno, as medidas que sejam necessárias para permitir o confisco:

a) do produto de delito qualificado de acordo com a presente Convenção ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto; (…)?

Normas previstas em tratado internacional, salvo a exceção do § 3.º do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988, têm força de lei ordinária após sua regular ratificação e promulgação. Doutro lado, os dispositivos citados têm suficiente densidade normativa para aplicação imediata aos fatos e independentemente de nova interposição de lei. Em outras palavras, não se faz necessário que os referidos tratados, no que diz respeito ao confisco de bens de valor equivalente ao produto do crime, sejam ?regulamentados? por lei.

A importância do confisco de bens de valor equivalente é óbvia. Não raramente, criminosos logram colocar a salvo das autoridades públicas o produto específico da atividade criminosa, seja através de complexos mecanismos de lavagem de dinheiro, seja através de sua remessa a contas em paraísos fiscais. Nessas hipóteses, ou seja, quando não for mais possível localizar o produto específico da atividade criminosa, o confisco, segundo as referidas normas, poderá recair em qualquer outro bem de valor equivalente, mesmo que não se possa provar que este bem em específico seja produto de ilícito ou mesmo que seja provado que ele seja produto de atividade lícita. Toda a propriedade do criminoso responde pelo crime até o valor equivalente ao do produto do crime. Assim, por exemplo, em caso concreto no qual o produto do crime tenha encontrado refúgio seguro em paraíso fiscal, o confisco poderá recair em qualquer outra propriedade do criminoso de valor equivalente e mantida no Brasil, ainda que não haja prova de que esta, aqui mantida, seja produto de crime.

Não deve ser esquecido que já é entendimento corrente que um dos modos mais eficientes para combater a criminalidade grave, especialmente o crime organizado, o tráfico de drogas e a corrupção, é o de privar o criminoso do fruto de sua atividade, impedindo que o crime compense e que tenha condições de se auto-financiar, multiplicando-se. É o confisco da propriedade criminosa, talvez o principal objetivo da criminalização da lavagem de dinheiro, que asfixia a criminalidade organizada e coíbe a continuidade da atividade criminal. Regras que incrementam as possibilidades e a eficiência do confisco criminal têm uma importância que não deve ser subestimada. O confisco de bem de valor equivalente ao produto do crime, quando este não puder ser especificamente confiscado, já é uma possibilidade jurídica em nosso sistema legal, pelo menos para crimes de tráfico de drogas, crimes praticados por organizações criminosas e para uma variedade de crimes contra a Administração Pública, inclusive corrupção, isso em virtude da promulgação dos referidos tratados internacionais. Existem outras normas a respeito de confisco nesses tratados que mereceriam igualmente uma abordagem. No entanto, nesse texto breve, optamos por ressaltar aquelas de maior potencial para o incremento da eficiência da lei criminal. Espera-se que os estudiosos do Direito no Brasil e especialmente as autoridades públicas despertem para o potencial e a importância dessas normas.

Sergio Fernando Moro é juiz Federal da 2.ª Vara Criminal Federal de Curitiba/PR, especializada em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro, organizador do livro ?Lavagem de dinheiro: Comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp?, Livraria do Advogado, 2007.

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