1. Introdução

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Entrou em vigor no dia 29 de março de 2007, data de sua publicação, a Lei n.º 11.464, de 28 de março de 2007, que dá nova redação ao art. 2.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5.º da Constituição Federal.

Com as modificações impostas, o art. 2.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, deixa de proibir expressamente a concessão de liberdade provisória em se tratando da prática de crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo (inc. II); acaba definitivamente com o regime integral fechado (art. 2.º, §1.º), e estabelece novos prazos para progressão de regime em se tratando dos crimes a que se refere (§ 2.º).

2. Sobre a liberdade provisória

O art. 2.º, II, da Lei n.º 8.072/90, vedava expressamente a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, em se tratando da prática de crime hediondo ou assemelhado. Doutrina e jurisprudência sempre foram divergentes a respeito da validade da referida regra. De um lado, havia entendimento no sentido de que a proibição estava expressa e por isso não se deveria conceder liberdade provisória, sendo dispensável a análise de outros requisitos, bastando, portanto, o enquadramento na Lei n.º 8.072/90 para ficar obstado o benefício. Para outros, dentre os quais nos incluímos, se ausentes os requisitos que autorizavam a decretação da prisão preventiva, era cabível a liberdade provisória, independentemente da gravidade do crime.

No sentido do descabimento da liberdade provisória, antes da mudança agora introduzida, confira-se:

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?Diante do disposto no art. 2.º, II, da Lei n.º 8.072/90, ao réu preso em flagrante e denunciado pela prática de tráfico de entorpecentes, crime considerado hediondo, inadmite-se a concessão de liberdade provisória? (STF, RE 240.782-3-MA, 2.ª T., j. 25/9/2001, rel. Min. Néri da Silveira, DJU de 26/10/2001, v.u., RT 797/532).

No mesmo sentido: STJ, HC 5.347-RJ (96.0078628-3), 5.ª T., j. 4/3/1997, rel. Min. José Arnaldo, DJ de 14/4/1997, JSTJ 97/330; STJ, HC 470-AM, 6.ª T., j. 6-11-1990, rel. Min. Willian Patterson, v.u., DJU de 26/11/1990, RT 671/373.

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Em sentido contrário, também se decidiu que o simples fato de estar listado na Lei dos Crimes Hediondos não era causa impeditiva da liberdade provisória, cumprindo ao magistrado a análise de cada caso concreto (STJ, HC 12.714-SP, 5.ª T., j. 15/6/2000, rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 21/8/2000, RT 784/573).

Reiteradas vezes os tribunais decidiram no sentido de que a gravidade do fato e a presumível periculosidade do agente não eram elidentes do princípio da presunção de inocência, e, inexistindo os requisitos autorizadores da custódia preventiva, deveria ser concedida a liberdade provisória (TJSP, HC 157.378-3, 3.ª Câm. Crim., j. 27/12/1993, rel. Des. Luiz Pantaleão, JTJ 155/320).

No mesmo sentido: TJBA, HC 12.935-8/2003, 1.ª Câm., j. 17/2/2004, rel. Des. Antônio Lima Farias, RT 829/613; TJRS, RSE 7000.88.22.298, 2.ª Câm. Crim., j. 2/12/2004, rel. Des. José Antônio Cidade Pitrez, Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n.º 3, p. 138.

A discussão agora perdeu o sentido.

A liberdade provisória não está mais proibida expressamente, e seu cabimento deverá ser analisado em cada caso concreto.

2.1. A liberdade provisória na Nova Lei de Tóxicos (Lei n.º 11.343/2006).

A Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006, Nova Lei de Tóxicos, entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2006, e seu art. 44, caput, veda expressamente a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, em se tratando da prática dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37.

A nova disciplina imposta pela Lei n.º 11.464, de 28 de março de 2007, derrogou o art. 44 da Nova Lei de Tóxicos e, portanto, não subsiste a regra proibitiva do benefício em questão.

Note-se que a Lei n.º 11.343/2007 é posterior à Nova Lei de Tóxicos e a redação do art. 2.º, caput, da Lei n.º 8.072/90, foi mantida, estando preservada sua aplicação aos crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo.

É indiscutível o cabimento, em tese, de liberdade provisória, sem fiança, em se tratando de crime de tráfico de drogas e delitos equiparados, previstos na Nova Lei de Tóxicos. A opção legislativa neste sentido restou clara.

2.1.2. A liberdade provisória no Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/2003)

A Lei n.º 11.464/2007 deu nova redação ao art. 2.º da Lei n.º 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), e retirou a vedação antes expressa no inc. II do art. 2.º, que proibia a concessão de liberdade provisória a réu processado pela prática de crime hediondo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo.

Agora, como já argumentamos, mesmo em se tratando da prática de crime hediondo ou assemelhado, não subsiste qualquer vedação expressa à liberdade provisória, cuja viabilidade deverá ser analisada em cada caso concreto.

Muito embora a mudança introduzida pelo art. 1.º da Lei n.º 11.464/2007 se refira expressamente ao art. 2.º da Lei n.º 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), sem qualquer alusão ao art. 21 da Lei n.º 10.826/2003, a revogação deste dispositivo é irrecusável, não obstante o princípio da especialidade.

Seguindo a melhor doutrina e abalizada orientação jurisprudencial, ficou clara a opção do legislador no sentido de não mais estabelecer vedação antecipada e genérica de liberdade provisória, tanto que assim o fez em relação aos crimes mais graves, como é o caso dos crimes hediondos e assemelhados.

Se mesmo em relação aos crimes mais graves a liberdade provisória deve ser analisada caso a caso, contraria o bom senso imaginar que em relação aos crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 do Estatuto do Desarmamento persiste a vedação genérica, cuja constitucionalidade vem sendo questionada desde o início da vigência da Lei n.º 10.826/2003.

Não são poucas as decisões baseadas no entendimento que segue apontado na ementa que abaixo transcrevemos:

?É inconstitucional o art. 21 da Lei n. 10.826/03, uma vez que inexiste, fora do âmbito da constituição federal, hipótese restritiva da supressão pura e simples do instituto da liberdade provisória, o princípio do devido processo legal prevê que somente poderá subsistir a prisão processual provisória, por flagrante ou preventiva se verificados os pressupostos legais para tanto, previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal: se ausentes, a concessão do benefício é de rigor, nos termos do artigo 310, parágrafo único, deste diploma? (TJSP, HC 511584/0, 7.ª CCrim, rel. Des. Cláudio Caldeira, j. 31/3/2005, v.u.).

No mesmo sentido: STJ, HC 61631/RJ, 5.ª T., j. 28/11/2006, rel. Mina. Laurita Vaz, DJ de 18/12/2006 p. 435; TJSP, HC 474.333.3/3-00, 1.ª CCrim, rel. Des. Péricles Piza, j. 7/3/2005, RT 836/537; TJMG, HC 1.0000.06.434731-3/000, 2.ª CCrim, rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, j. 16/3/2006.

O art. 21 da Lei n.º 10.826/2003 restou inaplicável.

É a voluntas legis, embora não expressa.

3. Regime integral fechado

Desde o advento da Lei dos Crimes Hediondos se estabeleceu aguda discussão sobre a (in)constitucionalidade do regime integral fechado, por ela imposto para o cumprimento de pena decorrente de condenação advinda da prática dos crimes a que ela se refere.

Foram vários e fortes os argumentos a favor e também contra a constitucionalidade do regime mais severo, e no dia 23 de fevereiro de 2006, invertendo orientação passada, por maioria de votos (6 contra 5), julgando o Habeas Corpus n.º 82.959-SP, de que foi relator o Min. Marco Aurélio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do regime integral fechado previsto no § 1.º do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90.

Depois desta decisão surgiram novas discussões, agora a respeito de seu alcance e efeito, pois alguns passaram a defender que a mesma não tem efeito erga omnes, pois foi proferida diante de caso concreto, e não ocorreu a suspensão de sua execução pelo Senado Federal (art. 52, X, da CF), ficando seus efeitos restritos ao caso concreto, inter pars.

Para outros, os efeitos do julgado eram (são) extensivos aos demais casos em andamento (erga omnes), não se restringindo àquele caso concreto.

A Lei n.º 11.464/2007, nesse particular, resolve definitivamente a discussão e enterra o regime integral fechado.

Tratando-se, nesse ponto, de lei penal mais benéfica, aplica-se também aos casos passados, em relação aos quais não se pode mais negar progressão de regime prisional, por força do disposto no inciso XL, do art. 5.º, da Constituição Federal, e do parágrafo único do art. 2.º do Código Penal.

4. Progressão de regime prisional

A Lei n.º 11.464/2007 também estabeleceu novos prazos para progressão de regime (§ 2.º) em se tratando dos crimes a que se refere o art. 2.º, caput, da Lei n.º 8.072/90.

A progressão de regime, no caso de condenado em razão da prática de crime hediondo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Não há qualquer referência à reincidência específica.

Após a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a inconstitucionalidade do regime integral fechado era imprescindível dar nova regulamentação normativa à matéria, visto que estava ocorrendo desigualdade de tratamento quando da concessão de progressão de regime prisional, na exata medida em que o prazo de cumprimento de pena, requisito objetivo, era o mesmo em se tratando da prática de crime comum ou hediondo e assemelhado. Sempre 1/6 (um sexto), por força do art. 112 da LEP.

Tanto isso era exato que um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal chegou a consignar em seu voto, quando daquela decisão, que do resultado do julgamento passaria a decorrer tratamento desigual quando da concessão de progressão de regime, pois crimes e criminosos desiguais passariam a receber tratamento idêntico quanto ao requisito temporal.

Algumas observações, entretanto, precisam ser feitas a respeito da nova realidade normativa em termos de progressão de regime, pois não é acertado dizer que o novo regramento é mais benéfico e retroage para alcançar todos os fatos passados.

4.1. Com relação aos crimes de tortura

O § 1.º do art. 7.º da Lei n.º 9.455/97 previa apenas o cumprimento da pena no regime inicial fechado (O condenado por crime previsto nesta lei, salvo hipótese do § 2.º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado), e não se aplicava, portanto, para tais casos, o regime integralmente fechado.

Era cabível, de conseqüência, e indiscutivelmente, progressão de regime prisional, bastando para tanto a satisfação do requisito subjetivo e o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena privativa de liberdade.

Em relação aos crimes de tortura, por força da redação contida no caput do art. 2.º da Lei dos Crimes Hediondos, que a eles se refere expressamente e não teve sua redação modificada, a mudança impõe situação mais gravosa, e por isso o novo regramento só se aplica aos casos ocorridos após a vigência da Lei n.º 11.464/2007; não retroage.

Com a Lei n.º 11.464/2007 a Súmula 698 do Supremo Tribunal Federal, que não permitia que a progressão de regime prisional admitida para os crimes de tortura se estendesse para os demais crimes hediondos, perdeu sua eficácia.

4.2. Com relação aos demais crimes hediondos

Três hipóteses, ao menos, passam a ser identificadas.

1.ª hipótese: retroatividade.

Diz respeito àqueles que entendiam que o regime integral fechado era constitucional, mesmo depois da decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Conforme anotamos acima, para alguns o regime integral fechado era constitucional e sempre deveria ser aplicado em caso de condenação decorrente da prática de crime hediondo ou assemelhado, mesmo depois da decisão proferida pelo Plenário da Suprema Corte no julgamento do Habeas Corpus n.º 82.959-SP, em 23 de fevereiro de 2006.

Para aqueles convencidos de tal posicionamento o novo regramento que decorre da Lei 11.464/2007 é mais benéfico, pois ao contrário do que antes ocorria, quando o executado deveria cumprir 2/3 (dois terços) da pena para obter livramento condicional, agora será possível progressão de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Sendo mais benéfico o regramento novo, sustentarão, deverá retroagir para alcançar todos os casos passados.

Diante de tal realidade, muitos serão os casos em que ainda se sustentará que o regime integralmente fechado era constitucional; que a decisão do Supremo Tribunal Federal não teve efeito erga omnes, e que os novos percentuais de cumprimento de pena, como requisitos objetivos para progressão de regime, se aplicam a todos os casos passados (e é claro, também para o futuro, o que, no particular, não se discute).

2.ª hipótese: irretroatividade.

Diz respeito àqueles que entendiam que o regime integral fechado era inconstitucional, e desde o advento da Lei dos Crimes Hediondos sempre se levantaram vozes abalizadas sustentando a inconstitucionalidade do regime integral fechado.

Evidente que estes mesmos doutos passarão a sustentar, inclusive por coerência de raciocínio, que se antes do regramento novo o correto era conceder progressão de regime após o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena, os parâmetros agora estabelecidos como requisitos objetivos pela Lei n.º 11.464/2007 são mais gravosos ao apenado e, portanto, inaplicáveis aos fatos passados.

Vale dizer: os novos prazos não se aplicam em relação às penas decorrentes de crimes praticados antes da vigência da Lei n.º 11.464/2007, por força do disposto no inc. XL, do art. 5.º, da Constituição Federal, e do parágrafo único do art. 2.º do Código Penal.

3.ª hipótese: retroatividade, com limites.

Há quem entenda, como nós (v. Renato Marcão, Curso de Execução Penal, 4.ª ed., Saraiva, 2007, p. 130; Lei de Execução Penal anotada e interpretada, 2.ª ed., Lumen Juris, p. 300), que o regime integral fechado era constitucional, e que após a decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n.º 82.959-SP, em 23 de fevereiro de 2006, deixou de ser, em relação a todos os casos, reconhecendo efeito erga omnes àquela decisão.

Para estes, as novas regras relativas aos prazos de cumprimento de pena para progressão de regime só retroagem para alcançar os crimes cometidos antes de 23 de fevereiro de 2006.

É que, segundo tal entendimento, antes de 23 de fevereiro de 2006 não era permitida a progressão de regime, que passou a ser após tal data, sendo necessária, diante do caso concreto, a presença do requisito objetivo, limitado ao cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena (além do requisito subjetivo).

Se antes de 23 de fevereiro de 2006 não se admitia progressão, sendo possível, agora, aqui a lei é mais benéfica e, portanto, deve retroagir para alcançar os fatos praticados antes de tal data.

Se, conforme tal entendimento, após 23 de fevereiro de 2006 passou a ser permitida a progressão, sendo necessário o requisito objetivo correspondente ao cumprimento de apenas 1/6 (um sexto) da pena (além do requisito subjetivo), para os crimes cometidos entre a data acima apontada e o início da vigência da Lei Nova, o requisito objetivo para progressão continuará sendo 1/6 (um sexto), pois o regramento novo, sendo mais severo, não poderá retroagir para alcançar os crimes cometidos após 23 de fevereiro de 2006 (até o início da vigência da Nova Lei).

Em outras palavras:

a) em relação aos crimes cometidos antes de 23 de fevereiro de 2006, a Lei n.º 11.464/2007 retroage para regular os novos prazos de progressão de regime;

b) para os crimes cometidos entre 23 de fevereiro de 2006 e 28 de março de 2007 ela não retroage, aplicando-se a fração percentual de 1/6 (um sexto) do cumprimento da pena, como requisito objetivo.

É a posição que adotamos.

5. Conclusão

Como se vê, algumas discussões ainda surgirão.

As modificações já eram esperadas e, na verdade, estão vindo tardiamente.

Antes tarde que nunca!

Renato Marcão é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico. Professor no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito Damásio E. de Jesus; no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Unama/UVB/Rede Luiz Flávio Gomes; no curso de pós-graduação da Escola Superior de Advocacia ESA (OAB-SP), e no curso de pós-graduação do Instituto Busato de Ensino. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada e Interpretada (Lumen Juris); Tóxicos (Saraiva), e Curso de Execução Penal (Saraiva). Co-autor dos livros: Notáveis do Direito Penal (Consulex) e Comentários à Lei de Imprensa (RT).