Nova Lei de Tóxicos (10.409/02) – Nulidade do processo por inobservância da defesa preliminar

O Tribunal de Alçada do Paraná, no HC 206.389-4, impetrado por Sandra Regina Rangel Silveira, pela sua Quarta Câmara Criminal, rel. juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo, em 5.9.02 (cf. DJ de 13.9.02), acaba de confirmar a anulação de um processo criminal onde o juiz não observou o novo procedimento contemplado na Lei 10.409/02 (art. 38), que diz: “Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro do 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso”.

A ementa da correta decisão diz: “Habeas corpus -Entorpecente – Denúncia recebida – Inobservância do disposto no artigo 38, caput, da lei 10.409/2002 – Nulidade – Infringência ao princípio da ampla defesa – Ordem parcialmente concedida, para anular o processo criminal ab initio, impondo-se observar o rito especial da lei em vigência. A inobservância da regra prevista no art. 38, da Lei n.º 10.409/2002, que alterou disposições da Lei n.º 6.368/76, impõe seja declarado nulo ex radice o procedimento, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa”.

Na fundamentação do acórdão invocou-se a doutrina de Renato de Oliveira Furtado, que comentando referido dispositivo legal, assinalou: “… vale registrar a verdadeira evolução que este artigo imprime no procedimento criminal que balizará a nova Lei de Tóxicos, em sentido claramente garantístico. Ao instituir a resposta escrita à acusação, antes do recebimento da denúncia, está-se, em última análise, a criar garantias de refutação, de possibilidades de enfrentamento do articulado na peça acusatória antes que esta deságüe, inquestionada e em vôo solo, em tormentosa ação penal que, em alguns casos, desde o início se mostra desarrazoada, por ausente o fumus commissi delicti, transformando-se em verdadeiras matrizes de erros judiciários.

Portanto, gera-se, assim, eficácia garantística ao processo penal, conforme defende o Professor uruguaio DIEGO CAMANO VIEIRA: ‘Em líneas generales, podría decirse que um proceso penal es eficaz cuando comete los menores errores respecto de los inocentes, lo que solo se logra dentro de um modelo de proceso penal cognoscitivo, que posibilite la reputación de lãs hipótesis acusatórias…’.

Este novo momento processual, se não for mitigado e dilacerado pelos Tribunais como aconteceu com o antigo despacho saneador, irá transformar-se em instante de verdadeira salvaguarda da sociedade, atuando como um verdadeiro filtro às acusações temerárias. Imprescindível, portanto, a observância da ‘citação’ do acusado, sendo que, a nosso ver, nulo ex radice o procedimento que não a considere, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa. Esta diligência é tão imprescindível que a própria lei condiciona o recebimento da denúncia à resposta escrita do acusado, uma vez que esta poderá, inclusive, afastar todo o processo”. (Revista Jurídica 295 – Maio/2002, pág. 85).

Invocou-se também o pensamento de Renato Flávio Marcão, em artigo inserto na Revista dos Tribunais, no sentido de que “se a denúncia for recebida, a decisão poderá ser atacada pela via do habeas corpus, quando, do recebimento, evidenciar-se flagrante constrangimento ilegal” (RT 797/493).

No caso sub judice, agrega a decisão colegiada, “realmente não foi observado o rito previsto na Lei n.º 10.490/2002, estando, portanto, nulos todos os atos processuais, desde o recebimento da denúncia, consoante, aliás, reconhecido pela r. decisão de fls. 30/31 – TA, do em. Presidente desta Corte, Juiz Clayton Camargo, ao conceder, parcialmente a liminar, para o fim de se declarar à nulidade da ação penal ab initio”.

O acórdão conclui: “Por tais razões, concedo parcialmente a ordem, apenas e tão somente para, em confirmando a liminar, anular o processo criminal ab initio, com observância do rito estabelecido pela Lei n.º 10.409/2002. EX POSITIS, ACORDAM os Juízes integrantes da Quarta Câmara Criminal, por unanimidade de votos, em conceder parcialmente a ordem, consoante enunciado. Participaram do julgamento os Senhores Juízes Eraclés Messias, Presidente, com voto, e Tufi Maron Filho. Curitiba, 5 de setembro de 2002. LAURO AUGUSTO FABRÍCIO DE MELO, Relator”.

A decisão retro foi muito acertada. Toda lei vigente e válida deve ser observada estritamente. Não pode o juiz negar vigência a uma lei adequadamente aprovada pelo Parlamento e válida. Havia polêmica em torno da Lei 10.409/02 no que diz respeito à sua eficácia jurídica. Mas ocorre que ela entrou em vigor no dia 28.2.02 e tem compatibilidade vertical com a Constituição (é válida, portanto, como diz Ferrajoli).

Discutia-se, entretanto, sua eficácia jurídica em virtude do que dispõe o seu art. 27 (“Nos crimes previstos nesta lei, será observado o procedimento…”). Pergunta-se: quais crimes, se todos os que estavam previstos na Lei 10.409/02 foram vetados pelo Presidente da República?

Apesar disso, como não existe a menor dúvida sobre a quais crimes refere-se o art. 27 da Lei 10.409/02 (é evidente, óbvio e ululante que esse dispositivo legal diz respeito aos crimes previstos na Lei 6.368/76), segundo nosso ponto de vista – já externado no nosso curso pela internet sobre a nova lei de tóxicos: cf. www.ielf.com.br -, parece muito claro que o novo procedimento tem que ser observado em todos os seus termos, sob pena de nulidade total do processo (por inobservância do devido processo legal).

Impõe-se tão somente atentar para o seguinte: a Lei 6.368/76 prevê seis crimes (arts. 12, 13, 14, 15, 16 e 17). Os três últimos não contam com pena superior a dois anos, logo, hoje, são de menor potencial ofensivo (cf. RHC 12.033,STJ, rel. Felix Fischer – cf. nesse sentido artigo de minha autoria publicado no www.ielf.com.br). Já os três primeiros estão fora dos juizados: quanto a eles é que deve ser observado rigorosamente o novo procedimento legal (sob pena de nulidade) (cf. Silva, Jorge Vicente, Tóxicos: Manual prático, 2.ª ed., Curitiba: Juruá Editora, 2002, p. 123-128).

Luiz Flávio Gomes

(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela Faculdade de Direito da USP e diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (
www.ielf.com.br).

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