Sem esperar mais, salto da cama, abro a janela e atiro-me no pátio. Caio em cima das roseiras e minha camisa de dormir não me protege contra os espinhos.
Estraçalhado, ensangüentado, atravesso o pátio, cortando os pés nas pedras, pisando cardos e urtigas, escorregando sobre objetos desconhecidos; chego à porta da cozinha que dá para o apartamento do médico. Bato, nada de resposta! Só então descubro que está chovendo. Oh! miséria das misérias! Que fiz eu para merecer essas torturas? Não há dúvida que é o inferno!
Essas palavras carregadas de angústia foram escritas por alguém que poderia estar, por esses dias, na cidade de Bagdá, onde desabrocham as úlceras horripilantes do terror e da morte. Ou num ermo qualquer da África profunda, onde seres humanos morrem como moscas, vítimas de peste e inanição.
Mas, ao contrário, o autor estava em Paris, no final dos 800, vivendo numa espécie de auto-exílio agravado por constantes estados de aguda depressão, mania de perseguição e desejos de suicídio, que os médicos facilmente diagnosticaram como doença mental. Aliás, aquela mesma cidade culta, civilizada e esplendorosa que o filósofo alemão Walter Benjamin chamaria, mais tarde, de capital do século XIX.
Estou me referindo ao sueco August Strindberg, que aí chegara fugido de Estocolmo, tendo deixado para trás a mulher e uma filha recém-nascida, a quem fazia juras de amor eterno. Pelo que se percebe de seus escritos, vivia do auxílio financeiro dos amigos, embora tenha proclamado inúmeras vezes que tudo o que escrevia era imediatamente publicado, devendo dispor, se esse não for mais um de seus delírios, de boa fonte de recursos.
Depois de vários anos em Paris, sendo sua última residência o Hotel Orfila, que Henry Miller perpetuaria em seu Trópico de Câncer, o sueco passou também temporadas na Áustria e Suécia – na casa de parentes de sua mulher – e, ao que tudo indica, em clínicas de tratamento para esquizofrênicos.
Tudo isso pode ser lido em Inferno (Max Limonad, SP, 1985), creio que um dos raros livros de Strindberg traduzidos no Brasil. O tradutor, Ismael Cardim, na nota introdutória afirma que o sueco realizou quase toda a obra (peças, contos e romances), em íntima sintonia com aspectos autobiográficos ou fatos da vida real. “A crueldade das circunstâncias e o conseqüente desespero, que são o próprio espírito de suas obras, não existem apenas como ficção, constituem experiências vividas na própria carne e só então transfiguradas em expressão artística, veículo de reivindicações ou tumultuados paroxismos que ora exigem ora imploram uma explicação para o mundo ou uma justificativa para estar nele”.
Com a torturante impressão de estar sendo seguido por assassinos a soldo do marido de uma ex-amante, Strindberg incluía entre os perseguidores russos, devotos, católicos, jesuítas e teósofos. A razão invocada para justificar o pavor era, talvez, o fato de ser feiticeiro e dado à magia negra. O que chegava mais perto disso era que no período da Orfila, dedicara-se de corpo e alma à fabricação de ouro por meio da alquimia.
Quanto aos russos, o medo se explicava porque o tal marido era dessa nacionalidade, os católicos pela ojeriza declarada a essa religião e, os teósofos, porque verberava insolências contra madame Blavatski, autora da Doutrina secreta, síntese desse pensamento espiritualista. Sem rodeios, dizia que ela fizera uma “espécie de ensopado de todas as heresias científicas modernas e antigas”.
No entanto, sua maior descoberta foi o livro Arcana celeste, do também sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), a quem passou a prestar incontida devoção. A obra comportava doze volumes e sete mil páginas e Strindberg dizia que o livro era simplesmente miraculoso, embora só dispusesse de uma seleção de textos. Aliás, provavelmente esse mesmo resumo, acrescido de Apocalipse revelado, tenha sido publicado aqui pela Ícone, SP, 1989, com tradução de Roberto Mara. A Editora Universalista (Londrina) publicou em 1996 outro livro emblemático do pensamento de Swedenborg. O mundo dos espíritos, segundo o que lá foi visto e ouvido.
“A leitura de Swedenborg me ocupa o dia inteiro: sinto-me esmagado pelo realismo de duas descrições. Lá encontro todas as minhas observações, sensações e idéias, tão bem descritas que suas visões me parecem vividas, como verdadeiros documentos humanos”, exclamou seu novo discípulo. Certamente foi dessa fonte que Strindberg assimilou sua idéia pessoal do inferno: “O condenado às penas eternas, hóspede de um maravilhoso palácio, leva uma vida encantadora e crê que está no paraíso. Pouco a pouco as delícias começam a se evaporar, depois desaparecem, e o infeliz percebe que está preso num miserável cubículo, cercado de excrementos”.
Outro entusiasta daquele que Balzac chamou de Buda do norte foi Jorge Luis Borges. No prólogo de Obras místicas, conta que em certa noite de abril de 1745, depois de longo período de sonhos, preces, incerteza e jejum, mas também intenso trabalho científico e filosófico, deu-se a guinada definitiva na vida de Swedenborg. “Um desconhecido, que silenciosamente o seguira pelas ruas de Londres e de cujo aspecto nada sabemos, apareceu de súbito em seu quarto e disse-lhe que era o Senhor. Encomendou-lhe pessoalmente a missão de revelar aos homens, agora engolfados no ateísmo, no erro e no pecado, a verdadeira e perdida fé em Jesus. Anunciou-lhe que seu espírito percorreria céus e infernos e que poderia conversar com os mortos, com os demônios e com os anjos.”
Borges diz também que os incrédulos podem afastar, em definitivo, as conjeturas sempre alegadas da impostura ou da demência. A primeira não se admite, pois se Swedenborg quisesse enganar não teria, inicialmente, publicado sua obra como anônimo. “A hipótese da loucura não é menos vã”, adverte, pois se tivesse enlouquecido “não ficaríamos devendo à sua pena a posterior redação de milhares de metódicas páginas que equivalem a um trabalho de quase trinta anos e que nada têm a ver com o delírio”.
Aliás, Borges vale-se de um argumento digno de reflexão. Ele diz que emprestamos docilmente nossa fé às visões dos antigos e tendemos a rechaçar as dos modernos ou zombamos delas. “Acreditamos em Ezequiel porque o enaltece o remoto no tempo e no espaço, acreditamos em São João da Cruz porque é parte integral da literatura espanhola, mas não em William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg, como tampouco em seu ainda próximo mestre”, que também teve como leitores fiéis Baudelaire, De Quincey, Kant, Puchkin e, possivelmente, Allan Kardec.
Entre os muitos intelectuais influenciados pelas idéias místicas de Swedenborg, Strindberg (que não é lembrado por Borges), refugiou-se na alquimia e transformou a obsessiva intenção de fabricar ouro, quem sabe, no sonho para ele primacial de reviver a experiência do iluminado que não apenas falava, mas vivia rodeado de anjos. Todo o espaço cênico dessa autêntica descida aos infernos, como nos informa Ismael Cardim, está “contido no Quartier Latin e, principalmente, em Montparnasse (o crasso Montparnasse de Huysmans) com o jardim de Luxembourg e o cemitério erigidos em altar-mor onde o escritor oficia culto à alienação, interpretando os sinais que o além diariamente lhe mandava”. Mais tarde, a ação será transferida para o sul da Áustria e, de novo, para a terra natal.
Um dos mais caros amigos de Strindberg em sua estada parisiense foi o pintor norueguês Edvard Munch, que aparece no livro como “o dinamarquês”. Também de acordo com a opinião médica, esse artista genial era igualmente vítima da esquizofrenia. Eles foram parceiros desde as noitadas de absinto da vida boêmia em Berlim até a temporada parisiense, “que afinal veio a ser artisticamente vitoriosa para os dois `dementes’ escandinavos aos quais tanto deve o movimento expressionista”.
Talvez, o reconhecimento maior e mais sério, tributado ao homem que conheceu a aniquilação do Hades, tenha partido de outra personalidade não menos atribulada e sofredora, Franz Kafka. No dia 4 de maio de 1915 ele anotou no diário: “Sinto-me melhor depois de ler Strindberg (Separados). Não o leio só por ler mas para me aninhar em seu peito. Ele me leva ao colo como uma criança. Estou sentado em seu braço esquerdo como um homem numa estátua. Por dez vezes corro o perigo de cair, mas na décima primeira tentativa consigo manter o equilíbrio. Sinto-me seguro e tenho diante de mim uma grande perspectiva”.
Strindberg não era dado a aspirar reconhecimento social e honrarias e, mais de uma vez declarou não estar em busca de lucros ou dinheiro. “Se fiz ouro ou terminarei por fazê-lo, jurei aos poderes que o lucro, se houver, será destinado a fins humanitários, científicos e religiosos.” O mais legítimo ouro de que era merecedor, o do Prêmio Nobel, segundo Cardim, recusou-lhe a academia sueca: “Quanto ao ouro da alquimia, ele talvez o tenha recebido; como redenação da realidade que lhe foi sempre adversa. Mas só a morte o libertou dos tormentos, das visões e da ânsia de encontrar a fé, a glória e o amor”.
Os céticos e apressados, decerto, dirão que não vale a pena perder tempo com loucos. Cardim responde com admirável picardia: “Mas naqueles bons tempos (a belle époque da loucura) os loucos se chamavam Nietzsche e Van Gogh: perdiam a cabeça e ganhavam a eternidade”. Que diremos nós, aturdidos pela estupidez, ganância e banalidade dos loucos de agora, que se chamam Bush, Hussein ou Osama Bin Laden?
Ivan Schmidt
é jornalista e escritor.![Grupos de WhatsApp da Tribuna](/resources/images/blocks/whatsapp-groups/logo-whatsapp.png)