Para combater a violência, mais educação. A receita está na mídia, na voz dos mais diferentes membros da comunidade pensante e informada deste País. Professores (como seria de esperar), sociólogos (também), políticos (até), jornalistas… Essa receita é nova, mas o remédio, em meu entender, é um fármaco (no grego, pharmakon significava remédio e veneno). Na farmácia das soluções simplistas, a educação virou panacéia universal. Entendo que todas essas vozes abalizadas querem fazer acreditar que, diante da tragédia cotidiana, do caos generalizado, da criminalidade e da anestesia da população, basta colocar crianças e adolescentes dentro de salas de aula, frente a um professor, na companhia de outros alunos descrentes e sem apetite para o conhecimento, que o milagre se fará.
Num dia a matrícula, no outro a lição, num terceiro (em ritmo de videoclipe) o ex-futuro delinqüente sai repaginado: cidadão honesto, trabalhador e com salário para despejar no mercado e consumir, consumir, consumir…
Para que essa mudança ocorra, conforme sugestões, basta confinar essas crianças e jovens na meia escola brasileira (os índices de avaliação Saeb-Enem registram, na média, notas inferiores a 50% de aproveitamento da aprendizagem), que se encarregará, em espaço de tempo regular de 9 a 12 anos, em períodos de três a quatro horas diárias (o dia tem 24 horas, convém lembrar) de corrigir o que a família não consegue (quer ou tenta) fazer da agressividade inata do ser humano. Ah, sim, sem levar em conta a mentalidade acobertadora da sociedade, que perdoa e esquece com facilidade comportamentos ?de criança?, ?de adolescente?, porque são idades ou de inocência ou de característica rebeldia (até preparada, neste último caso, por falas e temores dos adultos). São perdoáveis as brincadeiras sádicas, são perdoáveis as brigas entre gangues, são perdoáveis o vandalismo e a pichação. Coisas de adolescente, diz a pachorrenta visão acomodada e francamente permissiva de boa parte da população brasileira. Desde, é claro, que tais ações não agridam seu patrimônio, nem sua integridade física.
Para que os leitores, poucos e seletos, não pensem que estou me contradizendo, ao descrer cinicamente do poder da educação, me apresso em apresentar e/ou voltar a já apresentados índices de textos anteriores nesta página.
Em primeiro lugar, após uma fase de intensa entrada de crianças e jovens na escola (a fase da democratização), em 2006, algumas pesquisas vieram demonstrar o alto índice de evasão, principalmente entre estudantes de Ensino Médio, a tal juventude que alguns querem trazer de volta à escola. Abandonaram por quê? Para trabalhar, podem imediatamente responder os leitores. É parcialmente verdade: na sociedade em constante crise econômica, como a brasileira, de salário mínimo aviltante, de desigualdades sociais até aqui insanáveis, de paternalismo de bolsas de toda espécie (míseros reais para famílias e milhões para acionistas), de distorções trabalhistas (ganha mais quem está em emprego ilegalmente, garante aposentadoria mínima quem nunca contribuiu com a Previdência Social, igualando-se ao empregado contribuinte com carteira assinada), deixar a escola pelo trabalho pode significar a sobrevivência. Mas estão realmente empregados os que estão fora da escola? Estão, sim. Muitos no tráfico de drogas, na bandidagem. Entrevistas com esses jovens deram conta que muitos deles abandonam a escola muito cedo. E trocam a caneta pelo revólver.
Recentemente, o psiquiatra Jairo Bouer entrevistou cerca de 6.500 jovens de 54 escolas particulares em 17 estados brasileiros. Uma das perguntas era ?sou ou não violento??: 86% dos entrevistados responderam não. O dado seria animador e acenderia as esperanças de futuro melhor se outra pergunta sobre o comportamento social deles não implicasse o seguinte resultado: ?50% já haviam batido em alguém, 94% haviam xingado alguma pessoa e 30% sofreram alguma agressão física?. Acredito que uma pesquisa semelhante com adultos não obteria percentagens muito diferentes. Ser contra a violência é, muitas vezes, pura retórica, discurso vazio, máscara. Praticar a não-violência é outra conversa.
Projetos educacionais institucionais ou de ONGs têm demonstrado que é possível, sim (a esperança é a última que morre), resgatar a dignidade humana, salvar preventivamente esses jovens do crime, mostrar saídas para a sociedade, acreditar em mudanças. Quantos são esses projetos? Qual a sua visibilidade? Como sobrevivem nos mares do crime e da desobediência civil dos pequenos delitos? Quais são os parceiros dessa empreitada? Porque, seguramente, não são os professores isolados e desmotivados que irão produzir a metamorfose, numa escola desacreditada e largada à ação dos vândalos e do tempo, num sistema de ensino imobilizado e imobilizador, numa comunidade que vê a escola como ?depósito de crianças? ou como substituta da família que se desintegrou ou enquanto instituição assistencialista (pão, agasalho e saúde).
Continuo acreditando que a educação pode redimir feridas sociais, mas não acredito que ela o faça com as condições de trabalho e de credibilidade que tem hoje. Não podemos aceitar, agora que o trem da violência descarrilou, esse discurso inconseqüente (embora bem intencionado), essa carga de responsabilidade (novamente) que, sabemos de antemão, pode tornar-se um novo fracasso, se não mudarmos a nós mesmos, se a sociedade não chamar a si a responsabilidade que lhe cabe, e se não mudarmos um sistema comprovadamente ineficaz. Essa concepção salvacionista de educação precisa ser depurada de resquícios de hipocrisia, para que possa efetivamente combater o estágio de putrefação a que chegou a vida social.
Cláudio Moura e Castro sugere uma educação limpa: formar corretamente os professores e criar um ambiente adequado e atraente para o estudo, dispensando as ?tecnologias mirabolantes?. Saint-Exupéry exortou: ?Precisamos lançar pontes através da noite?. Na noite civil que nos envolve, cabe aos educadores de decisão e fé promover a reengenharia da educação. Sem salvacionismo.