O Brasil, com seus métodos prisionais medievais, desumanos e cruéis e sua frouxidão punitiva frente aos corruptos e corruptores, continua firme na sua ?aguerrida batalha? pela conquista do título de campeão mundial da violência e da corrupção. No que diz respeito ao item violência, diante de tudo quanto foi noticiado sobre nossos presídios nos últimos tempos, pode-se prognosticar: ele vai chegar lá! Já são 507 anos de atrocidades (ou melhor: de ?investimento público? nas carreiras criminais dos excluídos e desdentados). Não se constrói um país violento e corrupto da noite para o dia. Nem a inércia (por si só, isoladamente) conta com força suficiente para isso.

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Em outras palavras: a conquista de um título (sobretudo quando mundial), ainda que nada honroso, exige muito esforço. É preciso agir e impor em todo momento a cultura da violência e da corrupção. O inimigo do sistema penal colonial e senzaleiro (cf. Carlos Guilherme Mota, em O Estado de S. Paulo de 9/12/07, p. J4) é um ser execrável e ?mortável? (pode ser executado em qualquer momento, porque não é uma pessoa que exerça direitos, sim, uma coisa). Aliás, quanto mais ?limpeza? se faz, mais pontos o Brasil conquista (em sua ?desenfreada corrida? no campeonato acima referido).

Em 1989, no 42.º DP em São Paulo, 18 presos foram barbaramente asfixiados por policiais. Em 1992, na Casa de Detenção em São Paulo, 111 foram brutalmente executados. No ano 2000, 13 foram assassinados no presídio Mata Grande em Rondonópolis (MT). Em 2002, no presídio Urso Branco (Porto Velho, RO) 27 foram mortos. Outros 30 foram mortos em 2004 na Casa de Custódia de Benfica (RJ). Em 2007, na Cadeia Pública de Ponte Nova (MG), mais 25 mortos. Em 2008 mais oito mortos na cadeia pública de Rio Piracicaba (MG) e assim por diante. Mulheres acham-se mescladas com homens. Menores estão amontoados com adultos. Uma menor pode ser estuprada seis vezes por dia, durante um mês (e nada acontece). Um menor pode receber choques da polícia até morrer. Ninguém é preso por isso. Onde não há vaga, acorrenta-se o preso (como se fez em Palhoça-SC) e já está!

Tanta carnificina e desumanidade não pode ser fruto de ?erros freqüentes? (como sublinhou Fernando Salla, em O Estado de S. Paulo de 9/12/07, p. J5). Essa violência ocorre dentro de um território que deveria ser administrado exclusivamente pelo Estado (mas não o é, porque agora conta com a concorrência dos grupos organizados), mas conta com a ação ou omissão das autoridades responsáveis pelo setor assim como com a conivência de grande parte da sociedade brasileira.

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Desde o descobrimento do Brasil tudo se faz, sobretudo nos estabelecimentos que recolhem pessoas privadas da liberdade, em favor da violência, das atrocidades e da crueldade. Falta lei? Não. Leis existem. O que não existe é consciência de que devem ser cumpridas, respeitadas. O horror dos presídios brasileiros historicamente só é denunciado (e gera certa sensibilidade) quando gente graúda neles é recolhida. Isso ocorreu, por exemplo, na Inconfidência Mineira, na Revolta dos Alfaiates, na Ditadura militar bem como nas recentes operações da Polícia Federal.

Num país de tradição hierarquizada (de capitanias hereditárias, atrasado) o presídio (que só recolhe gente das subclasses, os ?desqualificados?) é a última coisa com que sua camada dirigente ?estamental, escravagista, colonial, senzaleira e tendencialmente corrupta? vai se preocupar. Afinal, não estamos falando de gente (cidadãos com direitos), sim, de coisas, que ostentam hoje condições piores que no tempo da escravidão. Pelo menos naquela época havia preocupação com a mão-de-obra que o escravo prestava. No tempo do Estado Novo o jurista Sobral Pinto conseguiu a soltura de Harry Berger invocando perante Getúlio Vargas as normas da Sociedade Protetora dos Animais. Os presos brasileiros hoje nem sequer essa proteção vêm recebendo.

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?Governar é prender?, dizia Francisco Campos, que foi Ministro da Justiça durante o Estado Novo. Essa absurda ?lição? continua mais atual que nunca. Um terço dos presidiários brasileiros que se encontram recolhidos em presídios (120.000) não tem sentença definitiva (Folha de S. Paulo de 25/12/07, p. C1). São presos provisórios. O Brasil hoje já conta com 420 mil presos. Em cadeias públicas acham-se amontoados cerca de 60 mil (todos também provisórios). Isso significa que cerca de 40% dos presos ainda não foram condenados. Muitos são inocentes e serão absolvidos, mas já estão ?cursando? as ?faculdades do crime? (que são os cárceres brasileiros). Com todo esse ?esforço? prisional estratégico, de lotar nossos estabelecimentos penitenciários com gente desdentada, analfabeta etc., preparando-os para o futuro consistente em matar ou morrer, haveremos de conquistar o título tão cobiçado: campeão mundial da violência e da corrupção. Chegaremos lá!

Winston Churchill disse que os métodos penais de uma sociedade são o índice e medida do seu grau de civilização. Dostoievski, por seu turno, afirmou: os standards de civilização de uma nação podem ser aferidos quando abrimos as portas das suas prisões. Pelo critério que acaba de ser exposto, o Brasil (claro) não é nada civilizado. Os presídios, incluindo os brasileiros, não têm nada de falência ou de fracasso (Foucault). Em muitos países eles foram feitos para delimitar certa forma de delinqüência, ainda que mediante violência e corrupção. Logo, vêm cumprindo fielmente suas finalidades ocultas. É dessa forma que o Brasil vai se transformando num forte candidato ao título acima anunciado.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br)