1. Apresentação

O presente trabalho traz alguns apontamentos sobre o resgate das tópicas aristotélica e ciceroniana, promovido por Theodor Viehweg, em seu livro “Jurisprudência e Tópica”(1), de 1953, e as respectivas críticas tecidas por Manuel Atienza, em “As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica”(2).

2. O contextohistórico daobra de Viehweg

Por certo, seria negligente adentrar numa discussão sobre os estudos de Viehweg sem situá-los historicamente. A leitura desavisada desse filósofo do direito, professor da Universidade de München, na década de 50, pode ignorar a sua participação naquele que se nomina de grande teste da modernidade, como refere Zygmunt Bauman(3), e as marcas deixadas por este acontecimento em sua produção.

Isto é, somente a contextualização desse autor faz entender que a recuperação das referidas tópicas realizada em sua obra não foi despropositada ou fruto de um romanismo romântico, mas significou uma reação ao Terceiro Reich, ao regime nazista, à crise do imperalismo, os quais de certa maneira tiveram abrigo seguro no positivismo neokantiano por ele combatido.

Como se sabe, a Europa, da década de 50, passava por profundas mudanças sociais e buscava se reerguer da devastação provocada pela II Guerra. A consagração de uma ética material, inclusive pelos filósofos do direito, foi a saída encontrada para manter distante a ameaça dos ditadores e governos totalitários, como ressalta Franz Wiecker:

“Um autêntico sistema da ética material dos valores, ao qual a filosofia do direito alemã preferencialmente voltou depois da derrocada do Terceiro Reich, tinha sido, no entanto, elaborado nos anos vinte por Max Scheler e N. Hartmann. (…) Nestas duas formas, a ética material dos valores cedo adquiriu uma rápida influência sobre a filosofia alemã do direito posterior ao neokantismo. Ao ultrapassar o formalismo ético, ela manifesta a necessidade sentida por uma época saída do caos de obter por uma forma filosófica apropriada, conteúdos jurídicos suprapositivos.”(4)

A concretização dessa ética se percebia no compromisso do capitalismo constitucional ocidental, dos sistemas comunistas e do Terceiro Mundo com os direitos iguais para as raças e os sexos, a negação da supremacia do mercado, o planejamento da economia pelo Estado, como ressalta Eric Hobsbawm:

“O capitalismo constitucional ocidental, os sistemas comunistas e o Terceiro Mundo estavam igualmente comprometidos com iguais direitos para todas as raças e ambos os sexos, mas não de uma forma que distinguisse sistematicamente um grupo de outro, ou seja, todos ficavam aquém do objetivo comum. Eram todos Estados seculares. Mais precisamente, após 1945 eram quase todos estados que, deliberada e ativamente, rejeitaram a supremacia do mercado e acreditaram na administração e planejamento da economia pelo estado. Por mais difícil que seja lembrar, na era da teologia do neoliberalismo econômico, como entre o início da década de 1940 e a de 1970 os mais prestigiosos e até então influentes defensores da completa liberdade de mercado, como por exemplo Friedrich von Hayek, viram-se e a seus semelhantes como profetas no deserto, advertindo em vão um capitalismo ocidental que não lhes dava ouvidos, de que estava trilhando a “Estrada da Servidão”(5).

Aliás, foi visando ao cumprimento de tal compromisso é que Viehweg trouxe a lume o pensamento dialético aristotélico e investiu nas tópicas gregas para fomentar a discussão histórica dos problemas que surgiam na atuação prático-social do jurista e provocar o questionamento das verdades jurídicas tantas vezes procuradas num plano extra-histórico e utilizadas na clarificação dos limites da construção conceitual e sistêmica do direito(6).

Neste sentido ressalta Plauto Faraco de Azevedo, ao comentar a obra de Viehweg: “O ponto alto da contribuição da Tópica e Jurisprudência acha-se na ênfase atribuída à interpretação e aplicação do Direito, através do pensamento aporético conducente à invenção, centrado no problema.”(7)

3. O ressurgimentoda tópica deAristóteles e Cícero

Como se viu, Viehweg tratou de reacender a velha polêmica acerca da cientificidade do Direito, criticando o ideal positivista fundado nas ciências da natureza. Para ele, as teorias das ciências humanas não se deveriam limitar a descrever e explicar objetivamente o comportamento de seu objeto, de modo a criar meios capazes de prevê-lo, como assevera Tercio Ferraz, no prefácio de sua obra:

“As ciências constróem, assim, teorias, isto é, sistemas axiomáticos que constituem hipóteses genéricas que se confirmam pelos experimentos empíricos, podendo, então, servir de prognósticos para a ocorrência de fenômenos que obedecem às mesmas condições descritas teoricamente. Ora, diante da análise do comportamento humano, com sua enorme gama de possibilidades, de regularidade duvidosa, o estabelecimento de prognósticos alternativos, fundados cientificamente revela dificuldades.”(8)

Ademais, acreditava que as ciências humanas estavam inegavelmente presas a determinados momentos históricos, o que as impedia de realizar uma leitura do mundo nos termos da geometria euclidiana. Desta maneira, acrescentava que o conhecimento por elas estruturado se encontrava permeado por alto grau de variabilidade, contrariando o modelo das demais ciências.

O filósofo alemão, certamente, não negava a importância do cartesianismo e sua lógica dedutiva para o avanço do conhecimento jurídico, porém defendia que a interpretação do direito exigia um pensar tópico capaz de tirá-lo do formalismo que se mostrou ditatorial e lançá-lo no campo dos argumentos que partiam do provável ou do verossímil, daquilo que foi consensualmente aceito.

A tópica de Aristóteles(9) e Cícero(10) ressurgiu em seu livro como “um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles.”(11) Deste modo, pensar topicamente significava a manutenção do direito, de seus princípios, conceitos e postulados, em constante problematização, como se integrassem um sistema aberto que se preenchesse de aporias e tivesse a maior delas atrelada a idéia de justiça.

Neste sentido, Viehweg considerava a tópica, do ponto de vista de seu objeto, uma técnica do pensamento problemático; por outro lado, do ponto de vista do instrumento por ela operado, como organizadora dos topoi ou lugares-comuns, e do ponto de vista do tipo de atividades desenvolvidas, um exame de premissas.

Isto é, para ele a tópica era um procedimento que se colocava em marcha com intuito de resolução, em última instância, dos problemas relativos à justiça. Entretanto, salientava que esses jamais encontravam solução numa resposta imediata, pois o seu pensar inevitavelmente remetia para um repertório provisório e elástico de premissas, que apesar de fornecerem certa presunção de plausibilidade e carga argumentativa poderiam levar a respostas diferentes.

Afinal, Viehweg nada mais pretendia do que negar o método axiomático dedutivo no estudo do Direito, que consistia “em partir de uma série de princípios e axiomas que devem ter as propriedades de plenitude, compatibilidade e independência”(12), pregando para tanto a aplicação de uma dialética aristotélica como “arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas um diálogo, confrontando-as, no sentido de um procedimento crítico”(13).

4. As Críticasde Atienza

Manuel Atienza desde o início reconhece a importância da obra de Viehweg e não deixa de demonstrar quando ressalta expressamente o seu caráter fundador na exploração do raciocínio jurídico para além de uma perspectiva exclusivamente lógica ou de um sistema fechado:

“De qualquer maneira, e como observação final, é necessário reconhecer que na tradição do pensamento da tópica inaugurada por Viehweg pode-se encontrar sugestões e estímulos de inegável valor para quem deseja começar a estudar – e a praticar – o raciocínio jurídico; mas, por si mesma, ela não fornece uma base sólida sobre a qual se possa edificar uma teoria da argumentação jurídica. O mérito fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria, e sim ter descoberto um campo para a investigação. Algo, ao fim e ao cabo, que parece se encaixar perfeitamente no `espírito’ da tópica.”(14)

Todavia, Manuel Atienza não deixa de observar as imperfeições da teoria estruturada pelo professor alemão, primeiramente salientando o fato de que a palavra “tópica” ganha nela um significado bastante impreciso, que nos leva a três noções distintas: 1) técnica de busca de premissas; 2) teoria sobre a natureza das premissas, e 3) teoria sobre o uso dessas premissas na fundamentação jurídica.

Além disso, atenta para a vagueza de alguns de seus conceitos, tais como o de problema, de topos, e para o exagero da contraposição entre lógica e tópica ou entre sistema e tópica, como se os lógicos não reconhecessem a importância da tópica no raciocínio.

Entende, ainda, que Viehweg está equivocado ao considerar que a ciência moderna teria privilegiado a lógica em detrimento da tópica, para tanto alega que a lógica formal do modelo axiomático assim como a tópica foram afastadas em razão do surgimento da ciência calcada na analítica.

Finalmente, ressalta que o modelo tópico de funcionamento da jurisprudência (ciência do direito) sugerido por Viehweg é ingênuo, pois coloca os problemas da justiça como pontos de partida e de chegada de seus raciocínios e acaba por promover a busca de soluções justas a partir de conceitos e proposições extraídos da própria Justiça. Não por outro motivo, entende que tal construção teórica deve figurar apenas como uma concepção compatível com certas teorias da argumentação, contudo, jamais com uma autêntica ou suficiente teoria da argumentação.

Ora, a par da importância da crítica suscitada pelo autor espanhol, não se pode furtar a uma única observação: talvez seja igualmente ingênuo pensar que se pode ter uma teoria autêntica ou suficiente da argumentação, como ele mesmo afirma na página 76, da tradução brasileira de sua obra. Certamente, se tal fosse possível estaríamos retornando a um positivismo já tão superado, no sentido bachelardiano do termo. Para concluir, quem sabe seja preferível acreditar que a referida afirmação foi fruto de uma distração, ao menos até que se tenha um conhecimento mais profundo de sua obra.

Ademais, ainda que se considere ingênuo o modelo de Viehweg, porque centra sua preocupação na idéia de justiça, não se pode negar a ele um caráter libertador capaz de flexibilizar o pensar sistemático (lógico-formal-conceitual) que impera no mundo jurídico, como ressalta o próprio Plauto Faraco de Azevedo:

“O pensamento tópico, tendo tido o mérito de recolocar em evidência o problema – o caso concreto – e os pontos de vista destinados à sua discussão e solução, ajuda o jurista a resguardar-se da tentação de proceder de modo lógico-dedutivo, mas não o põe ao abrigo da incidência da ideologia no pensamento jurídico. Para que a Ciência do Direito não se converta em reprodução obstinada do statu quo, só lhe resta ser crítica construtiva, conjugando o pensamento sistemático e o tópico, utilizando-os complementarmente, à vista dos dados sociais reais, em função de que se desdobra sua atividade. “(15)

Aliás, cabe por último lembrar que se a tópica fosse um pouco mais utilizada por aqueles que trabalham com o Direito, não existiriam tantas reformas legislativas despropositadas, tais como aquela que se ensaia em relação ao Código de Processo Penal, as quais simplesmente reproduzem o sistema anterior e não atingem seu objetivo inovador. Veja-se que o CPP vai ser literalmente modificado, mas sem dúvida alguma as alterações nele inseridas vão deixar intacto o sistema inquisitório estruturado, em 1941, para servir aos interesses do regime ditatorial. Isso tudo soa no mínimo como um absurdo, se não fosse incompatível com o Estado Democrático.

Notas

(1) VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. (Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr.) Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.

(2) ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica (Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros). (Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino) São Paulo: Landy, 2000.

(3) “O Holocausto expôs e examinou em condições `não laboratoriais’ atributos não revelados de nossa sociedade e portanto não-acessíveis empiricamente. Em outras palavras, proponho tratar o Holocausto como um teste raro, mas importante e confiável das possibilidades ocultas da sociedade moderna.” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. (Trad. Marcus Penchel) Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 31).

(4) WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. (Trad. A. M. Botelho Hespanha) Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 684-685.

(5) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). (Trad. Marcos Santarrita) São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 176.

(6) WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. (Trad. A. M. Botelho Hespanha) Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 690. Cf. VIEHWEG, Theodor. Algumas considerações acerca do raciocínio jurídico. (Trad. Carolina de Campos Melo), site: http://sphere.rdc.puc-rio.br/direito/pet_jur/c2viehwe.html, em 17.11.2002, às 15h, do original inglês VIEHWEG, Theodor. Law, Reason and Justice: Essays in Legal Philosophy. (org. Graham Hughes) New York: New York University Press e Londres: University of London Preess, 1969.

(7) AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e Hermenêutica Material no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 94.

(8) FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefácio à obra VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. (Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr.) Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 2.

(9) “A Tópica de Aristóteles era uma das seis obras que compunham o Organon. Nela, Aristóteles parte de uma caracterização dos argumentos dialéticos (dos quais se ocupam os retóricos e os sofistas) com relação aos argumentos apodíticos ou demonstrativos (dos quais se ocupam os filósofos), aos argumentos erísticos e às pseudoconclusões ou paralogismos. Os argumentos dialéticos (os da tópica) se diferenciam dos apodíticos ou demonstrativos porque partem do simplesmente provável ou verossímil, e não de proposições primeiras ou verdadeiras.” (ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica (Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros). (Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino) São Paulo: Landy, 2000, p. 630).

(10) “Em Cícero desaparece a distinção entre o apodítico e o dialético, mas em seu lugar surge uma distinção que tem uma origem estóica (e que lembra até certo ponto a distinção vista no tema anterior entre contexto de descoberta e contexto de justificação), entre a invenção e a formação do juízo. A tópica surge precisamente no campo a invenção, da obtenção de argumentos; e um argumento é, para Cícero, uma razão que serve para convencer de uma coisa duvidosa (…) a tópica seria a arte de achar os argumentos.” (ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica (Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros). (Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino) São Paulo: Landy, 2000, p. 64-65).

(11) FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefácio à obra VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. (Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr.) Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 3.

(12) ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica (Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros). (Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino) São Paulo: Landy, 2000, p. 68.

(13) FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Prefácio à obra VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. (Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr.) Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 5.

(14) ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica (Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros). (Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino) São Paulo: Landy, 2000, p. 78. (15) AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e Hermenêutica Material no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 103.

Clara Maria Roman Borges – Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento, na Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, Espanha. Doutoranda em Direito das Relações Sociais no Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Professora de Direito Processual Penal na Unibrasil-PR.

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