À vista do julgamento no Supremo Tribunal Federal em agosto próximo vindouro, a mídia nacional tem dado singular destaque a um movimento coordenado pelo Ministério Público, que se articula com vistas a impedir que os promotores “percam” a possibilidade jurídica de realizar investigações criminais, chamada por José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça, de inquéritos “caixa 2”.
Esbravejam alguns promotores de justiça e procuradores sobre o que consideram um “absurdo” e um “retrocesso” na história política do país. Sugerem ainda que “se o julgamento no STF for contrário à investigação que é feita pelos promotores, até o juiz Lalau será colocado em liberdade e poderá entrar com uma ação indenizatória contra o Ministério Público”. Nada mais teratológico juridicamente, e desprovido de fundamentos, especialmente porque foi dito em rede nacional de televisão por um promotor pelo qual tenho simpatia, afeição e apreço.
Admiro aquela instituição, e reconheço o valor de alguns de seus membros. Mas não posso calar-me diante da falta de sinceridade na divulgação ao público do tema em questão, e a ausência de representante da classe dos delegados de polícia nos debates que têm sido promovidos pelas emissoras de rádio e televisão.
Na verdade, o Ministério Público nunca pôde investigar delitos, pois esta não é sua função. Cabem a ele todas as funções previstas no artigo 129(1) da Constituição Federal, e não são poucas. Mas nelas não se inclui a previsão constitucional para investigar delitos, pessoalmente, missão conferida à polícia judiciária, representada pelas polícias civis e federal, consoante a regra do artigo 144, §§ 1.º e 4.º da Magna Carta.
Parece que o Ministério Público, a quem cabe fiscalizar a lei, finge ignorar o artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá ao princípio da legalidade”, o mais importante dos princípios e do qual decorrem os demais, essencial ao Estado Democrático de Direito.
Este princípio permite a ação do agente público apenas se o ato for permitido, não se admitindo qualquer atuação que não contenha prévia e expressa permissão legal. Isto significa que enquanto para a lei civil o administrador pode fazer tudo quanto não é proibido, em matéria administrativa só pode fazer o que é expressamente permitido.
É claro, então, que não tendo o legislador permitido que o Ministério Público fizesse investigações criminais, tudo quanto vier a realizar contrariamente aos dispositivos constitucionais estará eivado de vício insanável, e por conseqüência, os atos serão nulos de pleno direito, gerando, então, a impunidade do eventual autor do crime.
Sob esta ótica, o Ministro Nelson Jobim, Presidente do STF, ao decidir que “o MP não deve fazer investigação criminal” (e que por conta disto tem sido demonizado por setores do Ministério Público), nada mais fez do que decidir de acordo com a lei, pois já no ano de 1999 esta era a posição do Supremo, em memorável voto do Ministro Maurício Corrêa. Compartilha do mesmo entendimento o Ministro Marco Aurélio.
Também soa estranha a insistência de alguns promotores de justiça em afirmar que o Ministério Público só age onde a polícia não consegue chegar, isto é, nos crimes do “colarinho branco”, ou nos praticados por políticos e autoridades. Alega que a autoridade policial, por não ter como eles a garantia constitucional da inamovibilidade, sofre pressões ou influências do Executivo e do Legislativo, e por mais boa vontade que tenha o delegado de polícia, acaba não cumprindo o seu dever.
Discordo, novamente. A Constituição Federal assegura ao promotor de justiça o direito (e dever) de requisitar a abertura de inquérito policial e a realização de diligências no curso do inquérito policial, lhe sendo permitido, se assim desejar, acompanhar as diligências. No entanto, prefere o vôo solo, mesmo correndo o risco (quase certo) de ter sua investigação anulada.
Gostaria de entender o por quê da existência das Promotorias de Investigações Criminais instaladas nas mais importantes cidades do Paraná. O que justifica o fato de o Ministério Público ter sob seu comando homens das polícias civil e militar, inclusive delegados (cada vez mais escassos nas delegacias), armamento de qualidade, viaturas em excelente estado e com combustível cedido pela Polícia Civil? Qual a razão que impede a autoridade policial de ter equipamentos para escuta telefônica, possibilitando o “grampeamento”(2) de telefones de criminosos? Por quê estes equipamentos foram disponibilizados somente ao Ministério Público e à CISESP, no Paraná?
A quem interessa acabar com a Polícia Civil?
A situação no Paraná é inusitada, havendo quem afirme, jocosamente, que a “melhor delegacia” de Curitiba é a PIC, pela abundância de meios e recursos (os mesmos que as autoridades policiais esmolam no dia-a-dia e quase sempre não são atendidas).
Um outro argumento (não menos infundado) tem sido apresentado pelos Promotores de Justiça, é o de que “quem pode o mais, pode o menos”. Querem com isto dizer que se podem denunciar alguém na qualidade de titulares da ação penal, também podem investigar, produzir e coletar provas. Não é assim. O sistema jurídico nacional exige que quem apura, não acuse, e que quem acusa, não julgue. Seria lícito, também, que o juiz oferecesse denúncia, já que “pode o mais”, que é julgar?
Também há que se considerar que os promotores/investigadores também são suscetíveis do cometimento de erros, por ação ou omissão, já que a falibilidade é inerente ao ser humano. Se assim não fosse, como explicar que somente depois da vinda da CPI Nacional do Narcotráfico ao Paraná o Ministério Público ficou sabendo do envolvimento de autoridades com o crime organizado? Como é possível acreditar que a PIC, com todos os recursos técnicos que dispõe, desconhecia o esquema dos “desmanches de veículos”.
Vamos, ainda, analisar: na prática (não no discurso), qual o poderoso vilão que o Ministério Público conseguiu manter preso? O ex-prefeito Antonio Belinatti? Está solto! O Paulo Mandelli? Evadiu-se! O juiz Lalau? Está em prisão domiciliar, dando risada da nossa cara! O promotor Igor, que covardemente matou a esposa grávida no Estado de São Paulo (e que não foi investigado pelo MP, mas sim, pela Polícia Civil)? Fugiu! Quem? Me respondam, por Deus, quem neste país está preso por conta da ação do Ministério Público?
Pior, ainda, é o fato de que a própria Polícia Civil é forçada a “esquentar” a investigação do MP por intermédio dos delegados e policiais lotados na PIC.
O Ministério Público tem afirmado insistentemente que não pretende ocupar o espaço das polícias civis. Mas deveria. Sim, deveria assumir as carceragens abarrotadas de presos condenados, onde, para uns dormirem, outros têm que ficar em pé (e que para alimentá-los o Estado paga a diária de R$ 2,00, destinados ao café da manhã, almoço e jantar); deveria assumir igualmente a presidência indistintamente de milhares de inquéritos que envolvem os simples “mortais”, pessoas que de longe lembram os “figurões”, os delinqüentes “classe A”, perfumados e abastados financeiramente que transitam desenvoltos pela PIC, acompanhados de afamados advogados; bem que podia, também, permanecer no plantão de uma delegacia de polícia durante 24 horas, suportando a chegada incessante de “bebuns”, drogados e tantos outros, e, pior, tendo que achar soluções tupiniquins para os mais variados problemas dos quais a PIC está imune, e cujas mazelas parece não saber existir.
É muito fácil fazer moral em cima do “filé mignon” e apresentar-se à sociedade como paladino da justiça e da moralidade.
Por derradeiro, vale ressaltar que o Ministério Público, sem usurpar função alheia, tem a oportunidade de prestar relevantes serviços à sociedade que representa, bastando apenas que cumpra com seu dever, fazendo uso dos meios legais previstos no ordenamento jurídico. Fique sabendo o leitor que são dos promotores de justiça o inquérito civil e a ação civil pública, procedimentos pelos quais pode (e deve) investigar os casos de improbidade administrativa, e, sobretudo, fazer judicialmente com que governantes saiam do palanque eleitoral e passem efetivamente a cuidar da Segurança Pública, dotando as delegacias de polícia dos meios e recursos que garantam o mínimo de dignidade para o exercício da função.
Insisto que os promotores de justiça devem deixar a investigação de crimes para as polícias civil e federal, pois, caso contrário, os seus atos continuarão sendo invalidados pelo Judiciário. Recomendo que façam a sua parte e deixem à polícia judiciária as atribuições pertinentes. O combate ao crime seria mais efetivo, caso se aliassem às autoridades policiais, num grande movimento nacional para o combate ao crime, deixando em segundo plano os sentimentos de superioridade e perfeição.
Oxalá a sociedade possa um dia ver de um só lado, delegados, promotores e juízes, unidos contra os bandidos … contra os bandidos!!!
E, quanto às investigações de crimes, que pare o Ministério Público de chorar pela perda de algo que nunca teve.
Leges habemus ???
Notas
(1) I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV- promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
(2) No Estado do Paraná somente a PIC e CISESP têm possibilidade técnica para fazer escutas telefônicas. Nenhuma delegacia de polícia, por mais importante que seja, é aparelhada para realizar esta importante forma de produção de prova de ilícitos penais. Quando um delegado necessita fazer uma escuta autorizada judicialmente, ou pede socorro à PIC ou o faz por intermédio da CISESP.
Luiz Antonio Zavataro
é delegado de polícia, atualmente lotado na Corregedoria Geral da Polícia Civil do Paraná.