A mentira é uma das poucas coisas que diferem o homem do resto dos animais, com exceção dos macacos, que são ainda mais mentirosos. Não se sabe de animal, além do homem e de seus parentes macacos, que minta. Há homens que mentem pouco e os que mentem muito, mas não os que não mentem. A mentira é um subproduto de nossa condição racional. O homem gosta da verdade, mas não a suporta, principalmente a verdade absoluta, seja lá o que for essa verdade absoluta. Essa contradição o faz sofrer. Os animais são corajosos, mas não contam como vivem sem mentir. Nem pensam nisso.
Há casos de dinossauros de Steven Spielberg astutos e mentirosos. Mas são apenas outra mentira do homem. O jacaré, por exemplo, até onde se sabe, não é mentiroso. Os tigres e os leões estão entre os mais verdadeiros; não escondem suas intenções. E quando não o fazem, não têm interesse por outras coisas que não a fome e o sossego. Mas de todas as mentiras abjetas do homem, poucas superam as que diz na hora da morte de outro homem. É raro alguém morrer e arrancar um comentário do tipo, “o mundo ficou livre de mais um salafrário”. Ou o simples e tão informal “já vai tarde”. Pode se tratar do mais infame infante que diante dele morto há contenção. Ao morrer, o sujeito deixa a humanidade, entra no reino do sobrenatural. Talvez por precaução, há esse respeito pouco sincero, uma convenção não escrita: ninguém ofende o defunto. Vá saber os superpoderes que ganhou no reino do além! Chegar de noite, como o fantasma do pai de Hamlet e cobrar coisas difíceis de serem pagas.
Toda essa onda de mentir na hora da morte começou com os romanos. Eles tinham um provérbio: “Dos mortos só se fala bem”. E quando alguém morria, e o corpo era queimado fora da cidade, os romanos desandavam a falar bem do sujeito, enaltecer méritos que muitas vezes nem tinham. No maior descaramento. A prática tinha um objetivo: para o morto ficar em paz, não se sentir ofendido e atormentado e não atanazar os vivos.
E o costume ficou. O futebolista, extraordinário quando jovem, fica o resto da vida na miséria e, quando morre, é elevado à condição de mito. Para o artista, então, morrer é um negócio estranho. Valoriza a obra, mas o artista não fica com os dividendos. Às vezes, nem seus herdeiros. Por isso é que já houve caso de artista que pensou seriamente em forjar a própria morte, para, na surdida, aproveitar-se dela. Mas, até onde se sabe, não apareceu ninguém bem sucedido na tentativa. E o ego! A vaidade! Essa madrasta, que arruina tudo! Que artista suportaria a fama sem dar entrevistas, ser paparicado? Só mesmo o Dalton Trevisan e o Rubem Fonseca.
Mas a verdade é que herdamos esse costume pagão da mentira, dos romanos, de exagerar as qualidades dos mortos e esquecer os seus defeitos. Alguns obituários são lindos de morrer, digo, de serem apreciados pelos mortos se estivessem vivos. Mas a maioria é de matar. Na ânsia de honrar os mortos, honrados senhores pinçam palavras ao relento, e criam conjunções cômicas, como “foi homem da mais alta insalubridade”. E o que se diz do finado, em vez de soar falso, soa cômico. Tudo na mais boa vontade de agradar o defunto. E só não sai confusão porque o morto já está morto. E nessa condição, sabendo da intenção, ele também não quer confusão.
Edilson Pereira é editor em O Estado