Bruno Hendler

Nem sólida nem líquida: os desafios da sociedade pós-moderna a partir da releitura dos clássicos da ficção futurista do século XX (Orwell e Huxley)

Uma sociedade líquida, instantânea, leve, fluida. Estes são os atributos conferidos por Zigmund Bauman ao mundo pós-moderno, apelidado, pelo próprio sociólogo, de “modernidade líquida”(1).

Na obra de mesmo nome, o autor traça uma linha de comparação entre a “sociedade de produtores”, referindo-se claramente aos séculos de predomínio da indústria pesada, com imensas linhas de produção e exércitos de trabalhadores, e a “sociedade de consumidores” que é instantânea, flexível, e tomou forma a partir da segunda metade do século XX.

Neste mundo do século XXI tudo é, segundo Bauman, mutável, adaptável às vontades particulares, e as necessidades reais da sociedade sólida se transformaram no desejo de consumo da sociedade líquida.

A vitória do capitalismo e o fim dos regimes de extrema esquerda e extrema direita do século XX nos levaram a um mundo em que não há um “fim do caminho”, um estado de perfeição a ser atingido, uma utopia.

A autonomia privada e a liberdade prezadas pelo modelo liberal exacerbaram-se a ponto de esvaziar – quase por completo – o sentido de comunidade buscado pelos totalitarismos.

Nestas trágicas experiências do século XX, a esfera pública invadiu a totalidade da vida privada, controlando ações e pensamentos individuais em nome de uma idéia de coletivo.

Hoje ocorre o oposto: a esfera pública esvaziou-se. A Ágora grega e o poço das histórias da Bíblia eram lugares onde as pessoas se encontravam para debater as questões da “coisa pública”, e esta prática – de encontro com a comunidade – está deixando de existir.

Mais do que isso, ela subsiste de forma diferente: a simbologia de poder da esfera pública é usada para atender interesses particulares, ou seja, hoje é o privado que invade o público e o papel do Estado, em oposição aos totalitarismos, tende a diminuir.

A literatura é um excelente retrato dos temores de uma época. Aldous Huxley e George Orwell viveram os tempos sombrios da primeira metade do século XX e suas obras – Admirável Mundo Novo e 1984, respectivamente – refletem o medo da modernidade sólida: o controle absoluto da autonomia individual por uma organização estatal praticamente onipresente.

Nas palavras de Bauman, era o temor de um “mundo estritamente controlado, da liberdade individual não apenas reduzida a nada ou quase nada, mas agudamente rejeitada por pessoas treinadas a obedecer a ordens e seguir rotinas estabelecidas” por uma pequena elite que manejava todos os cordões(2).

Estes temores foram gradualmente amenizados nas sociedades do 1º mundo, conforme a modernidade líquida, encabeçada pelo capitalismo norte-americano, substituía os anos de privação e paranóia dos totalitarismos.

Assim, a Inglaterra de Huxley e Orwell não vivenciou o pesadelo que se abateu sobre muitos países de 2.º e 3.º mundo. A América Latina, por exemplo, foi pródiga em gerar regimes políticos “orwellianos”, tanto de esquerda quanto de direita, dentre estes a ditadura militar brasileira, compreendida entre 1964 e 1985.

Poucos livros retratam de forma tão realista os danos sociais e psicológicos dos “anos de chumbo” como a obra de Ignácio de Loyola Brandão chamada “Não verás país nenhum”, na qual o Brasil é governado por um “Esquema” onipresente, vigilante e punitivo. Brandão escreve em 1982, os últimos anos da ditadura e, assim como os escritores ingleses, prevê um futuro sombrio para seu país.

Sendo uma versão do então 3.º mundo sobre os temores do totalitarismo, até mesmo o Estado controlador é descrito como falho e contraditório, inventando sempre novas explicações para justificar as mentiras anteriores.

Situações absurdas e ao mesmo tempo plausíveis, como as Bocas de Distrito que controlam o movimento e exigem fichas de circulação das pessoas, e as prisões onde se encontra a frase “produza, o trabalho liberta”, dão o tom do Brasil retratado por Brandão.

O livro traz, também, uma crítica violenta às degradações ambientais e a inviabilidade do desenvolvimento baseado em métodos da modernidade sólida. As imponentes “free ways” de São Paulo tornam-se cemitério a céu aberto de carros abandonados, cujos motoristas, cansados do engarrafamento eterno, simplesmente abandonam seus veículos e continuam seu caminho a pé.

O clima de calor sufocante é constante, devido às mudanças climáticas decorrentes da transformação da Floresta Amazônica em um imenso deserto devido ao desmatamento.

A cidade de São Paulo é cercada por muros e torres de vigilância, obrigando os retirantes nordestinos a se amontoarem nos “Acampamentos Paupérrimos”, onde agonizam em meio ao lixo, calor e falta de comida.

Água em abundância no Brasil? Apenas no museu, onde é apresentada a história dos (extintos) rios, e alguns litros de suas águas podem ser vistos dentro de pequenos frascos.

E hoje? Parece que estamos livres de um mundo “orwelliano”. Vivemos num mundo onde predomina a autonomia da vontade dos indivíduos, mas quem é indivíduo nos dias de hoje?

Para Bauman, os medos contemporâneos brotam não do Estado totalitário, mas, ao contrário, do abismo entre os indivíduos de facto – aqueles que têm controle sobre seus destinos e tomam as decisões que em verdade desejam – e os indivíduos de jure – os que não têm como escapar de um destino imposto(3).

Com o enfraquecimento do espaço público, o medo decorre dos monstros que surgem desse abismo e não da opressão do Estado. Talvez este seja o pesadelo da sociedade pós-moderna.

Não o medo de uma guerra nuclear protagonizada por Estados, mas o medo de um ataque terrorista perpetrado por um grupo de indivíduos; não o medo da vigilância do Estado, mas da vigilância de uns sobre outros e todos sobre todos.

O problema da análise de Bauman é o foco exagerado nos países mais desenvolvidos e democrático-liberais, onde, de fato, é possível identificar um alto grau de “liquidez” na sociedade e o enfraquecimento do Estado.

Porém, é preciso lembrar que ainda há países cujos governos, verdadeiros “museus” da modernidade sólida, resistem cambaleantes e fazendo seguidores pseudo-totalitários que bradam armas em nome de utopias sociais ou religiosas, oprimindo seus cidadãos e gerando instabilidade internacional.

Ora, nem tanto nem tão pouco: o desafio está em reduzir o abismo entre indivíduos de facto e de jure, fruto da sociedade líquida, sem retornar à velha receita da sociedade sólida tão bem ilustrada por Huxley, Orwell e Brandão.

Notas:

(1) Bauman, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

(2) Ibidem, p. 64.

(3) Ibidem, p. 48.

Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do Unicuritiba: Livre Iniciativa e Dignidade Humana (Ano II), liderado pelo advogado e Prof. Dr. Carlyle Popp e pela advogada e Profa. M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com.

Esta coluna tem compromisso com os Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio.

Bruno Hendler é bacharel em Relações Internacionais (UniCuritiba), graduando em História (UFPR) e membro do projeto de pesquisa “Livre iniciativa e dignidade da pessoa humana – ano II”, vinculado ao projeto de iniciação científica “Relações Internacionais, Artes e Direito”, sob orientação da Prof.a M. Sc. Ana Cecília Parodi.

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