Não é necessário ter diploma de jornalismo para obter o registro profissional junto ao Ministério do Trabalho. A decisão da juíza da 16ª Vara Cível de São Paulo, Carla Abrantkoski Rister, é válida para todo o país.
A sentença foi proferida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal e Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo.
Carla Rister afirma que o Decreto-Lei nº 972/69 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, no que tange à exigência do diploma de curso superior de jornalismo para o registro do profissional perante o Ministério do Trabalho. Segundo a juíza, a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei não atende aos requisitos necessários para perpetrar restrição legítima ao exercício da profissão.
Para Carla Rister, a profissão de jornalista não pode ser regulamentada sob o aspecto da capacidade técnica, eis que não pressupõe a existência de qualificação profissional específica, indispensável à proteção da coletividade. “O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional”, afirma.
Segundo a juíza, a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei 972/69 não visa ao interesse público, que consiste na garantia do direito à informação, a ser exercido sem qualquer restrição, através da livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, conforme previsto no inciso IX do art. 5º e caput do art. 220 da Constituição Federal.
“O argumento de que haveria requisitos de ordem ética ou moral como condições de capacidade que justificariam a regulamentação da profissão não se sustentam, eis que a comum honestidade não é requisito profissional específico para o exercício da profissão de jornalista, mas sim um pressuposto para o exercício de qualquer profissão, pelo que não pode ser considerado como legitimador da exigência do diploma para o caso em tela, até mesmo porque honestidade e ética não são atributos que se adquirem somente durante um curso universitário de quatro ou cinco anos, mas sim compõem o núcleo de personalidade e de caráter do indivíduo, formado durante toda a sua vida, seja pelo exercício de atividade acadêmica (cuja utilidade e benefício ao indivíduo são mais do que reconhecidos pelo presente juízo), seja pelo exercício profissional propriamente dito, seja pela convivência familiar e até mesmo pelas demais formas de convivência em sociedade”, diz a juíza.
Para Carla Rister, o aludido diploma legal de jornalista, a par do fato de ter sido editado sob a forma de Decreto-Lei e não de Lei em sentido formal, elaborado em época eminentemente diversa, em que inexistia liberdade de expressão, inclusive nos meios de comunicação, colide materialmente com os princípios consagrados pela Constituição de 1988, das liberdades públicas, donde se insere a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão intelectual, artística e científica.
“Tenho ainda que a estipulação do requisito de exigência de diploma, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem perpetrar ofensa aos princípios constitucionais, na medida em que impõe obstáculos ao acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por um revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pôde ter acesso a um curso de nível superior, pelo que estaria restringida à liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual”, diz.
Carla Rister afirma ainda que, caso a exigência do diploma prevalecesse, “o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão”.
Para a juíza, a atual regulamentação da matéria revela-se falha, na medida em que condiciona o exercício da profissão tão-somente com base na exigência do diploma de jornalista, sem prever qualquer outra exigência que aferisse o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional.
Leia a íntegra da sentença:
Processo N° 2001.61.00.025946-3
Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público Federal e Sindicato das Empresas de Radio e Televisão no Estado de São Paulo
Réu: União Federal, Federação Nacional dos Jornalistas e Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
16ª Vara Cível de São Paulo
Juíza Federal Substituta: Dra. Carla Abrantkoski Rister
Sentença
Vistos, etc.
Trata-se de Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada, em que o autor, Ministério Público Federal, requer, em caráter definitivo:
a) que seja determinado à Ré União Federal a não mais registrar ou fornecer qualquer número de inscrição no Ministério do Trabalho para os diplomados em jornalismo, informando aos interessados a desnecessidade do registro e inscrição para o exercício da profissão de jornalista;
b) que seja obrigada a União Federal a não mais executar fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau de curso universitário de jornalismo, bem como a não mais exarar os autos de infração correspondentes;
c) que sejam declarados nulos todos os autos de infração lavrados por Auditores-Fiscais do Trabalho, em fase de execução ou não, contra indivíduos em razão da prática do jornalismo sem o correspondente diploma;
d) que sejam remetidos ofícios aos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, de forma a que se aprecie a pertinência de trancamento de eventuais inquéritos policiais ou ações penais em trâmite, tendo por objeto a apuração de prática de delito de exercício ilegal da profissão de jornalista;
e) seja fixada multa de RS$ 10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Federal de Direitos Difusos (art. 13 da Lei n. 7347/85), para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas através da concessão do pedido;
f) seja a ré condenada a reparar os danos morais coletivos pela conduta impugnada.
Sustenta o autor que O Decreto-Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969, que estabelece a obrigatoriedade do registro do profissional perante o Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, registro este que somente é concedido mediante a apresentação do diploma de curso superior de jornalismo, nos termos do art. 4o, inciso V, do referido Decreto-Lei, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1.988. Segundo a argumentação exposta, a regra é a liberdade de profissão, nos termos do art. 5o, inciso XIII, da C.F., sendo vedado ao legislador infra-constitucional impor restrições indevidas ou irrazoáveis, como ocorreria no presente caso. Afirma ainda que o próprio E. Supremo Tribunal Federal tem posição formada nesse sentido em caso de regulamentação de profissão que não pressupõe ‘condições de capacidade’ (v. jurisprudência acostada à inicial). Ademais, estaria a haver ofensa ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, que garante a liberdade de pensamento e de expressão.
Propugna ainda o Ministério Público Federal pela sua legitimidade ativa para propositura da presente ação, pela legitimidade passiva da União (eis que o objeto da presente ação tenciona a suspensão de atos praticados pelo Ministério do Trabalho), pela reparação do dano moral coletivo, bem assim pelo alcance nacional da decisão judicial na presente ação civil pública.
Foi concedida a antecipação parcial dos efeitos da tutela (v. fls. 315/326).
A Federação Nacional dos Jornalistas e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo solicitaram ingresso na lide, na qualidade de assistentes simples da União Federal (v. fls. 340/348), o que foi deferido (v. fls. 747). Em despacho de fls. 744/747, foi indeferido o ingresso na lide, na qualidade de litisconsortes ou de assistentes do autor, dos cidadãos que formularam tal pleito. Foi deferido o ingresso na lide, no pólo ativo, na qualidade de assistente simples do Ministério Público Federal, o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (SERTESP).
Foram interpostos recursos de agravo de instrumento da decisão que deferiu parcialmente os efeitos da tutela (v. fls. 397/476 e 478/493). O E. Tribunal Regional Federal da 3a Região não concedeu o pretendido efeito suspensivo (v. fls. 695/699 e 701/704).
A União Federal apresentou contestação de fls. 567/590, onde propugna, preliminarmente, pela impossibilidade de concessão de medida antecipatória contra a Fazenda Pública, pela ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal, pela inadequação da via eleita, pela impossibilidade de concessão de tutela antecipada em âmbito nacional. No mérito, propugna a União Federal pela improcedência do pedido, fundada na tese de que o Decreto-Lei 972/1969 teria sido recepcionado pela Constituição de 1.988.
A Federação Nacional dos Jornalistas e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo apresentaram contestação de fls. 621/678, onde propugnam, preliminarmente, pela legitimidade dos ora assistentes para intervir no presente processo, pela ilegitimidade do Ministério Público Federal, pela inadequação da via eleita (em face do não cabimento da ação civil pública como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade), pela necessidade de formação do litisconsórcio passivo necessário. No mérito, propugnam pela improcedência do pedido.
Réplicas do Ministério Público Federal às fls. 756/774 e de seu assistente às fls. 785/796.
É o relatório do essencial. Decido.
PRELIMINARMENTE
Acerca da alegação ofertada em preliminar quanto à impossibilidade de concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, não merece acolhimento, eis que importaria em ofensa à isonomia das partes perante o processo. Cabe notar que tal questão foi submetida à apreciação pelo E. Tribunal Regional Federal, ainda que liminarmente, na decisão que indeferiu o efeito suspensivo pretendido pelos agravantes União Federal e seus assistentes FENAJ e Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo. Naquela ocasião, nos autos do Agravo de Instrumento n. 2001.03.00.034677-0 (AG 142898), o Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, Relator do Agravo, ressaltou, com propriedade: “não há que se falar, ainda, em liminar satisfativa ou irreversibilidade da medida, nos termos em que foi deferida, pois em caso de improcedência da ação todas as situações pessoais dos eventuais beneficiados poderão reverter ao estado anterior, com o cancelamento de registros, cobranças de multas etc.”
Quanto à pretensa impossibilidade de concessão de provimento em caráter nacional, é de se ressaltar que a questão da competência não se confunde com aquela atinente aos efeitos da sentença na ação civil pública, objeto de acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. E, nesse aspecto, compartilho do entendimento da eminente Desembargadora Federal Anna Maria Pimentel, exarado por conta de Agravo de Instrumento interposto nos autos da Ação Civil Pública nº96.0024327-1:
“Convém destacar que os efeitos que uma decisão ou sentença venham a produzir em todo território nacional, previstos e desejados pela nova ordem constitucional, não se confundem com a fatia de competência (jurisdição) do juízo que a proferiu, também haurida da Lei Fundamental”. Nesse aspecto, é de se mencionar ainda o ensinamento de Ada Pellegrini Grinover, estudiosa do tema, acerca da inoperância do acréscimo introduzido ao art. 16 da LACP pela Lei nº 9.494/97, resultante da conversão da Medida Provisória nº 1.570/97:
“Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses individuais difusos e coletivos, mas o acréscimo introduzido pela Medida Provisória é inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz.” (destaquei)(in “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto”, 6ª edição, Forense Universitária, pág. 821)
Não desconheço o teor da decisão proferida pelo E. STF na ADIN nº 1576-1, em que foi deferida, em parte, a medida liminar para suspender, até a decisão final da ação, a vigência do art. 2o da MP nº 1.570-97. Não obstante, em relação ao art. 3o da MP 1570-97, posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97, que modificou o art. 16 da LACP, indeferiu o STF a liminar, razão pela qual o Juízo de primeiro grau poderá, dentro do princípio do livre convencimento fundamentado que lhe é conferido pelo regramento constitucional (art. 93, IX da C.F.), adotar o entendimento que repute mais adequado aos princípios constitucionais e ao escopo das ações coletivas, de molde a conferir maior proteção aos interesses envolvidos. Assim, adoto o entendimento acima exposto em relação à questão atinente aos efeitos da sentença nas ações coletivas.
A respeito ainda da suposta impossibilidade de concessão de provimento judicial em caráter nacional, note-se, de novo, o que mencionou o Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares por ocasião do Agravo de Instrumento mencionado: “quanto à possibilidade, nas ações coletivas, de provimento judicial de âmbito nacional, a despeito do disposto no art. 16 da LACP, considerável parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que é da essência da ação coletiva a eficácia erga omnes da decisão, quando a União é parte no processo”.
Pelos fundamentos retro expostos, portanto, afasto a alegação de impossibilidade de concessão de provimento judicial em caráter nacional em sede de ação civil pública, especialmente no presente caso concreto, em que a União é parte no processo, pois não faz sentido que, num Estado da Federação, a União adote posição diversa da adotada em outro Estado em relação a uma mesma matéria, melhor dizendo, que o diploma em questão seja exigido em um Estado e não em outro, eis que tal situação atenta contra o bom senso.
Acerca da postulada legitimidade para a intervenção dos sindicatos como assistentes, tanto do autor quanto do réu, foi deferido pelo presente Juízo o ingresso na lide do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (SERTESP) como assistente do autor Ministério Público Federal, bem assim da FENAJ e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo como assistentes da ré União Federal (v. fls. 744/747). Naquela ocasião, ressaltei: “no que se refere ao ingresso dos sindicatos, na qualidade de assistentes simples das partes, penso que não existe empecilho de ordem legal, posto que há interesse jurídico dos mesmos, considerando que na defesa dos direitos difusos e coletivos os sindicatos têm legitimação autônoma para a condução do processo de ação civil pública, já que possuem natureza jurídica de associação civil, sendo facultado inclusive a sua habilitação como litisconsorte de qualquer das partes (art. 5o, “caput” e parágrafo segundo, da Lei n. 7347/85); sendo que a Carta Magna determina que ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (art. 8o, inciso III, da Constituição Federal)”.
Considerando-se o exposto acima, tenho que tal questão restou definitivamente esclarecida, não merecendo maiores considerações, pelo que afasto a alegação de qualquer vício no pólo passivo da demanda, bem assim da necessidade de litisconsórcio passivo necessário, eis que foi deferido o ingresso na lide do Sindicato dos Jornalistas e da Federação (FENAJ) na qualidade de assistentes da ré União Federal, não havendo qualquer prejuízo ao direito de defesa de tais entes, que puderam trazer suas razões ao processo, sob o crivo do contraditório.
Sobre a alegação de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal, tenho que não merece acolhida, eis que, conforme ressaltado às fls. 744, “observo, preambularmente, que o objeto da demanda é a tutela jurisdicional da liberdade de manifestação do pensamento, garantia assegurada constitucionalmente, sendo caracterizado, portanto, como interesse difuso, legitimando, assim, a propositura da ação pelo representante do “Parquet” Federal (art. 5o, “caput”, da Lei n. 7.347/85)”. A par da expressa previsão legal no diploma processual civil específico da ação civil pública a conferir legitimidade ao Ministério Público Federal para a propositura da presente ação, registre-se o entendimento do Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, por ocasião do Agravo de Instrumento em tela: “com efeito, por primeiro, a questão da ilegitimidade ativa argüida pelos agravantes, além de ainda não ter sido analisada e decidida em primeira instância, o que, certamente, será feito no momento processual oportuno, com possibilidade do recurso próprio, certo é que não se pode concluir, desde logo, que o Ministério Público não esteja exercendo seu direito de ação, nos limites da lei e da Constituição Federal”(destaquei).
Ainda acerca da legitimidade do parquet federal para o ajuizamento da presente ação, cumpre perquirir, em primeiro lugar, acerca da natureza dos interesses que ora se discute, questão intimamente ligada à da legitimidade. Sobre o tema, primeiramente, incumbe trazer as importantes lições do ilustre processualista Rodolfo de Camargo Mancuso:
“Verdade que certa vertente jurisprudencial tem se revelado reticente quanto a reconhecer legitimidade ativa ao Ministério Público quando se trata de interesse “individual homogêneo”, seja porque aí o interesse, em sua essência remanesce individual, seja porque a dicção do art. 129, III, da CF se restringe a “outros interesses difusos e coletivos”. Assim, o Superior Tribunal de Justiça já negou o uso da ação civil pública para o Ministério Público “porfiar na defesa de direitos individuais afetos a determinado grupo” (REsp 46.130-8-pr, rel. Min. Demócrito Delgado, DJ 20.06.1994); no mesmo sentido: REsp 47.019-6-MG, rel. Min. César Asfor Rocha, DJ 06.06.1994; REsp 35.644-0-MG, rel. Min. Garcia Vieira, DJ 4.10.93). Também se registram trabalhos doutrinários postados nessa linha mais restritiva.
Cremos que o logos de lo razonable nessa controvérsia depende de que seja devidamente valorizado o disposto no caput do art. 127 da CF, onde se diz que ao parquet compete a defesa dos “interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ou seja, quando for individual o interesse, ele há de vir qualificado pela nota da indisponibilidade, vale dizer, da prevalência do caráter de ordem pública em face do bem de vida direto e imediato perseguido pelo interessado. Até porque, de outro modo, a legitimação remanesceria ordinária, pessoalmente ou em cúmulo subjetivo. É nessa linha que se coloca Hugo Nigro Mazzilli: “A defesa de interesses de meros grupos determinados ou determináveis de pessoas só se pode fazer pelo Ministério Público quando isso convenha à coletividade como um todo, respeitada a destinação institucional do Ministério Público”. Conforme observado por Kazuo Watanabe: “Em linha de princípio somente os interesses individuais indisponíveis estão sob a proteção do parquet. Foi a relevância social da tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular, mesmo em se tratando de interesses e direitos disponíveis”.”(destaquei)(in “Ação Civil Pública”, 5a. edição, Ed. RT, 1.998, pp. 88-89)
Não há que se falar, no presente caso, de interesses meramente individuais, mas sim de interesses que extravasam o próprio interesse ao exercício da profissão de jornalista, adquirindo um cunho social, na medida em que, a par de aparentar ter como titular um grupo determinado de pessoas em condições de exercer tal profissão, vem a atingir o próprio direito constitucional de livre manifestação do pensamento, a ser exercido por um grupo indeterminado de pessoas. Dessa forma, além de sua caracterização como interesse difuso, conforme aduzido, noto que a relevância social do interesse é patente, apta a legitimar a atuação do Ministério Público, cuja atribuição constitucional, dentre outras, é de defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da C.F., in fine).
E, assim, por tais fundamentos, revela-se legítimo o Ministério Público Federal para propor a presente ação civil pública, uma vez que a própria Constituição Federal, em seu art. 129, III, consagra como função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção, dentre outros, dos interesses difusos e coletivos.
Assim, nos termos do art. 129, III, da C.F., em face da tutela dos interesses difusos no presente caso, bem como em razão da relevância social do interesse individual homogêneo em questão (art. 127 da C.F.), trata-se o Ministério Público Federal de ente legitimado à propositura da presente ação, estribado em suas funções institucionais, conferidas pelo Constituinte de 1.988, cuja grandeza não se pode amesquinhar, visto que estão em jogo os interesses da sociedade, da qual o parquet é um dos mais importantes mandatários.
Sobre a pretensa inadequação da via eleita, no caso, a presente ação civil pública, tal alegação não merece acolhimento, eis que, a prevalecer a tese exposta de que, por vias transversas, tencionar-se-ia a obtenção de tutela declaratória da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 972/69, à semelhança da ação direta de inconstitucionalidade, a ação civil pública restaria totalmente inviabilizada. No caso da presente ação civil pública, tem-se por objeto atacar os efeitos concretos no plano prático do ordenamento acoimado de inconstitucional, ou seja, afastar a inconstitucionalidade na aplicação da lei, e não a obtenção de tutela de cunho eminentemente declaratório, como na ação direta. Novamente, é de se mencionar o entendimento do ilustre Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, sobre o tema: “De outra parte, não há que se confundir ação direta de inconstitucionalidade, por meio da qual se faz o controle concentrado, com a ação civil pública, onde o controle de constitucionalidade é apenas incidental e difuso, vale dizer, a competência privativa do C. Supremo Tribunal Federal diz respeito à declaração de inconstitucionalidade de lei, ao passo que nas ações individuais ou coletivas pode-se pretender o reconhecimento de eventual inconstitucionalidade na aplicação da lei”(destaquei).
Afastadas as preliminares, passo a analisar o mérito da presente demanda.
MÉRITO
No Brasil, note-se que a Constituição Federal de 1988 assegurou a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, no inciso XIII do art. 5o, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Tenho que tal dispositivo deve ser interpretado de maneira consentânea com outros dispositivos constitucionais, consagradores de liberdades individuais, dentro de uma interpretação sistemática do texto constitucional. Antes, porém, necessário trazer o entendimento de José Afonso da Silva sobre o tema:
“O princípio é o da liberdade reconhecida. No entanto, a Constituição ressalva, quanto à escolha e exercício de ofício e profissão, que ela fica sujeita à observância das “qualificações profissionais que a lei exigir”. Há, de fato, ofícios e profissões que dependem de capacidade especial, de certa formação técnica, científica ou cultural. Compete privativamente à União legislar sobre condições para o exercício de profissões (art. 22, XVI). Só lei federal pode definir as qualificações profissionais requeridas para o exercício das profissões.
…
Como o princípio é o da liberdade, a eficácia e a aplicabilidade da norma é ampla, quando não exista lei que estatua condições ou qualificação especiais para o exercício do ofício ou profissão ou acessibilidade à função pública. Vale dizer, não são as leis mencionadas que dão eficácia e aplicabilidade à norma. Não se trata de direito legal, direito decorrente da lei mencionada, mas de direito constitucional, direito que deriva diretamente do dispositivo constitucional. A lei referida não cria o direito, nem atribui eficácia à norma. Ao contrário, ela importa em conter essa eficácia e aplicabilidade, trazendo normas de restrição destas.”(destaquei)(in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 16ª edição, Ed. Malheiros, pág. 261)
Diante dos ensinamentos acima, depreendo que a regra, no que tange ao exercício das profissões, consiste na liberdade, não criando a lei o direito em questão, eis que se trata de direito constitucional, mas tão-somente restringindo seu âmbito de eficácia e aplicabilidade, incumbindo-me analisar se o Decreto-Lei nº 972/69 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1.988, no que tange à exigência do diploma de nível superior.
Para tanto, é mister trazer à tona outros dispositivos constitucionais, que ora incumbe transcrever:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
…
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
…
IX – é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
…
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1o Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2o É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”(destaquei)
Tomando-se o texto constitucional de maneira sistemática, há que se interpretá-lo de molde a que os comandos consubstanciados nos dispositivos retro transcritos se harmonizem, ao invés de se colidirem, eis que o sistema jurídico é uno e incindível e assim deve ser considerado pelo intérprete.
Conforme aduzido acima, a regra, no que tange ao exercício das profissões, é a liberdade, incumbindo-me perquirir em que situações poderia haver restrições a tal exercício. Tal questão, longe de constituir matéria nova no mundo jurídico, já foi amplamente debatida pela jurisprudência e pela doutrina, pelo que é mister citar, de início, o entendimento esboçado pelo eminente Ministro Thompson Flores, em sede de Recurso Extraordinário, ao tratar da regulamentação do exercício das profissões:
“A Constituição de 1946, art. 141, § 14, reza:
“É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”.
A de 1967, com pequena alteração, dispõe de modo idêntico:
“Art. 150, § 23. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”.
A liberdade do exercício profissional se condiciona às condições de capacidade que a lei estabelecer. Mas, para que a liberdade não seja ilusória, impõe-se que a limitação, as condições de capacidade, não seja de natureza a desnaturar ou suprimir a própria liberdade. A limitação da liberdade pelas condições de capacidade supõe que estas se imponham como defesa social. Observa Sampaio Dória (Comentários à Constituição de 1946, 4o vol., página 637):
“A lei, para fixar as condições de capacidade, terá de inspirar-se em critério de defesa social e não em puro arbítrio. Nem tôdas as profissões exigem condições legais de exercício. Outras, ao contrário, o exigem. A defesa social decide. Profissões há que, mesmo exercidas por ineptos, jamais prejudicam diretamente direito de terceiro, como a de lavrador. Se carece de técnica, só a si mesmo se prejudica. Outras profissões há, porém, cujo exercício por quem não tenha capacidade técnica, como a de condutor de automóveis, pilotos de navios ou aviões prejudica diretamente direito alheio. Se mero carroceiro se arvora em médico operador, enganando o público, sua falta de assepsia matará o paciente. Se um pedreiro se mete a construir arranha-céus (sic), sua ignorância em resistência dos materiais pode preparar desabamento do prédio e morte dos inquilinos. Daí em defesa social, exigir a lei condições de capacidade técnica para profissões cujo exercício possa prejudicar diretamente direitos alheios, sem culpa das vítimas”.
Reconhece-se que as condições restritivas da liberdade profissional não sejam apenas de natureza técnica. Superiores interêsses da coletividade recomendam que aquela liberdade também tenha limitações respeitantes à capacidade moral, física e outras (Cf. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira, p. 798). Por outras palavras, as limitações podem ser de naturezas diversas, desde que solicitadas pelo interesse público, devidamente justificado (Cf. Pinto Falcão, Constituição Anotada, 1957, 2o v., p. 133; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, 5o v., página 507). Escreve este insigne publicista:
“O que é preciso é que toda política legislativa a respeito do trabalho se legitime com a probabilidade e a verificação do seu acerto. Toda limitação por lei à liberdade tem de ser justificada. Se, com ela, não cresce a felicidade de todos, ou se não houve proveito na limitação, a regra legal há de ser eliminada. Os mesmos elementos que tornam a dimensão das liberdades campo aberto para as suas legítimas explorações do povo estão sempre prontos a explorá-lo, mercê das limitações”.(destaquei)(RE Nº 70.563-SP, R.T.J. 58, pp. 279-283)
Diante do exposto acima, incumbe ao Judiciário apurar se a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei nº 972/69 atende aos requisitos necessários para perpetrar restrição legítima ao exercício das profissões, que deverá se pautar na estrita observância ao interesse público, ou seja, nas palavras do eminente Ministro, que se verifica pelo incremento do proveito a todos. Tenho que não. Vejamos.
Tal se deve à propalada irrazoabilidade do requisito exigido para o exercício da profissão, tendo em vista que a profissão de jornalista não pode ser regulamentada sob o aspecto da capacidade técnica, eis que não pressupõe a existência de qualificação profissional específica, indispensável à proteção da coletividade, diferentemente das profissões técnicas (a de Engenharia, por exemplo), em que o profissional que não tenha cumprido os requisitos do curso superior pode vir a colocar em risco a vida de pessoas, como também ocorre com os profissionais da área de saúde (por exemplo, de Medicina ou de Farmácia). O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional. Em segundo lugar, porque o exercício dessa atividade, mesmo que exercida por inepto, não prejudicará diretamente direito de terceiro. Quem não conseguir escrever um bom artigo ou escrevê-lo de maneira ininteligível não conseguirá leitores, porém, isso a ninguém prejudicará, a não ser ao próprio autor. Assim, a regulamentação, pelo que depreendo, não visa ao interesse público, que consiste na garantia do direito à informação, a ser exercido sem qualquer restrição, através da livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, conforme previsto no inciso IX do art. 5o e caput do art. 220, ambos da Constituição Federal.
Note-se ainda o trecho abaixo transcrito do voto do Ministro Thompson Flores, tratando do requisito de capacidade para o exercício de profissão regulamentada:
“Haverá, acaso, ditada pelo bem comum, algum outro requisito de capacidade exigível aos exercentes dessa profissão? Nenhum. A comum honestidade dos indivíduos não é requisito profissional e sequer exige, a natureza da atividade, especial idoneidade moral para que possa ser exercida sem risco. Conseqüentemente, o interesse público de forma alguma impõe seja regulamentada a profissão de “corretor de imóveis”, como não o impõe com relação a tantas e tantas atividades profissionais que, por dispensarem maiores conhecimentos técnicos ou aptidões especiais físicas ou morais, também não se regulamentam. 11. Como justificar-se, assim, a regulamentação? Note-se que não há, na verdade, interesse coletivo algum que a imponha. E o que se conseguiu, com a lei, foi criar uma disfarçada corporação de ofício, a favor dos exercentes da atividade, coisa que a regra constitucional e o regime democrático vigentes repelem”.(destaquei)
Assim, o argumento de que haveria requisitos de ordem ética ou moral como condições de capacidade que justificariam a regulamentação da profissão não se sustentam, eis que a comum honestidade não é requisito profissional específico para o exercício da profissão de jornalista, mas sim um pressuposto para o exercício de qualquer profissão, pelo que não pode ser considerado como legitimador da exigência do diploma para o caso em tela, até mesmo porque honestidade e ética não são atributos que se adquirem somente durante um curso universitário de quatro ou cinco anos, mas sim compõem o núcleo de personalidade e de caráter do indivíduo, formado durante toda a sua vida, seja pelo exercício de atividade acadêmica (cuja utilidade e benefício ao indivíduo são mais do que reconhecidos pelo presente Juízo), seja pelo exercício profissional propriamente dito, seja pela convivência familiar e até mesmo pelas demais formas de convivência em sociedade. Não é requisito apto a embasar a exigência do diploma para esse caso específico, portanto.
Segundo Geraldo Ataliba, em parecer que trata com acerto a questão (v. fls. 54/65), os pontos fulcrais estão no art. 200 (sic, entenda-se 220, conforme faz referência nas páginas anteriores) e no inciso XIII do art. 5o, a que, entre outros, faz referência o mandamento do parágrafo 1o do art. 220, ao vedar embaraços à informação jornalística – mandando, não obstante, observar a exigência de que o exercício das profissões atenda “às qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Surgiriam assim duas interpretações possíveis dessa conjunção de normas, quais sejam: a) só pode exercer o ofício de jornalista quem tenha diploma atestatório de qualificação profissional; b) ao exercer seus misteres, no transmitir informações específicas e próprias de uma profissão legalmente regulada, o jornalista deverá ouvir quem seja formalmente “qualificado”, de acordo com a lei.
A opção por uma ou outra interpretação não consiste em questão aberta, ao livre arbítrio do intérprete, sendo que, salvo melhor juízo, cabe afastar a primeira interpretação, eis que não vem ao encontro do interesse público, consubstanciado em se garantir o direito à informação, que não pode sofrer qualquer restrição, a teor do art. 220 da C.F., transcrito acima, uma vez que o leitor, o ouvinte ou o telespectador tem direito de ser informado de maneira plena, sem qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (v. § 2o do art. 200), pelos melhores profissionais, quer estes profissionais tenham cursado a Faculdade de Jornalismo, quer não, observadas as qualificações profissionais do informante. Trago à colação o entendimento do saudoso Geraldo Ataliba:
“Na hipótese a, fica parecendo que a Constituição quer que alguém seja “formado” profissionalmente, para profissionalmente colher, interpretar, comentar e transmitir informações variadas. O diploma atestaria tal “qualificação” do seu portador, habilitando-o, com exclusividade a esse mister. Consequentemente, seriam proibidos de colher, interpretar, comentar e transmitir informação, todos os não portadores de diploma, mesmo que tenham inteligência, cultura, habilidade e comunicabilidade para tanto.
– VI –
Esta interpretação – não explicita os valores constitucionais a que serve.
…
Pois, na hipótese a, supra sugerida, vê-se que o valor protegido não é a fidelidade à verdade, nem os dotes de observador, intérprete ou comunicador do profissional, dado que as virtudes e qualidades que levam a bom desempenho, quanto a isso, não se aprendem em bancos acadêmicos. O que transparece protegido por essa interpretação é o “valor” (?) corporativo, ao lado do prestígio compulsório dos estabelecimentos que, bem (o que é raro) ou mal (o que é o mais comum), têm o privilégio de expedir tais diplomas.
– VII –
A segunda interpretação (b) entende que a liberdade ampla da informação jornalística não pode prejudicar o leitor (ouvinte, telespectador) pela falta de informações idôneas, por falta de qualificação profissional das fontes, quando a matéria informada esteja inserida num universo de conhecimentos especializados cujo manejo dependa, legalmente, de qualificação profissional dos seus operadores. Assim, se a saúde é um valor, informação sobre remédios, instrumentos ou processos terapêuticos só pode provir de fonte qualificada formalmente segundo os critérios legais; a fonte, nesse caso, será necessariamente um médico, não um palpiteiro, um charlatão, um feiticeiro etc.
Se a matéria da notícia é a queda de uma ponte, as informações técnicas sobre suas causas, circunstâncias ou conseqüências terão por fonte um engenheiro e não qualquer do povo, ou um mero curioso.
Enfim, o direito à informação – direito do povo a ser informado, com fidelidade, pelos profissionais do jornalismo – há de ser atendido livremente por pessoas argutas, inteligentes, cultas e dotadas de qualidades comunicativas (escrita, fala, boa expressão), com a condição de que (ao transmitirem notícia sobre fatos e fenômenos objeto de conhecimento específico de profissões regulamentadas) sua interpretação e explicação provirão de profissionais formalmente qualificados (diplomados), a que deverão reportar-se os jornalistas. É desse modo que se obedece ao art. 5o, XIII da Constituição.
Assim, qualquer jornalista poderá informar que foi descoberto um remédio contra a AIDS, ou que caiu uma ponte na cidade de Caixa-Prego. Não poderá, porém – seja por opinião pessoal, seja por ouvir leigos – dizer que o remédio tem tais ou quais defeitos, nem que é elaborado com esmero (ou descuido). Nem poderá dizer que a ponte caiu, porque o concreto não tinha o teor de cimento requerido pela ciência. Evidentemente, poderá relatar que uma autoridade pública (delegado, prefeito, deputado etc.) ou profissional (engenheiro, contador etc.) afirmou “isto ou aquilo” (entre aspas). Porque, então, a responsabilidade por eventual má informação já será do declarante e não do jornalista.
– VIII –
Parece claro que tal interpretação respeita, concomitantemente, todos os valores constitucionalmente protegidos: (a) a liberdade de informação (do jornalista e do veículo), (b) o direito de informação correta (do povo), (c) a honra dos envolvidos pela notícia (só um especialista pode dizer das causas da queda da ponte e, implicitamente, da negligência de quem a projetou, executou ou fiscalizou sua execução), (d) a saúde pública (ninguém será levado a tomar ou evitar um medicamento, por indução – intencional ou não, não importa – do jornalista).
Esta interpretação – que deve prevalecer, porque exalta a harmonia do sistema jurídico – concilia comandos aparentemente contraditórios; serve aos valores concomitantemente; não agride (pelo contrário !) nenhum valor constitucional e, sobretudo, ampara e resguarda a liberdade de informar e o direito à informação, definindo claramente responsabilidades, de modo a também assegurar a realização dos desígnios expressos nos incisos IV, V, X, XIII e XIV do art. 5o da Constituição.
…
Em conseqüência, pode-se afirmar que a norma exigente de diploma de curso de jornalismo, para exercício da profissão de jornalista – por agressiva de princípios constitucionais básicos – não foi recebida pela Constituição de 1988 (dando de barato, ad argumentandum, que tenha sido compatível com a Carta de 67/69). Está, assim, perempta, revogada, sem eficácia. Pode (e deve) ser inobservada por todos, inclusive pelo Judiciário.
Nem se argumente com a vontade do legislador, que isso não é argumento jurídico e não merece atenção de jurista que se preza e respeita a cultura jurídica alheia.
…
A interpretação que propomos mostra que o Brasil é um estado de direito democrático, com responsabilidades definidas e proteção a valores sociais e individuais fundamentais, como se dá em todos os países civilizados, que adotam princípios semelhantes, e que jamais cogitaram de – como o fez, para nossa vergonha, a Junta Militar – exigir diploma para exercício da profissão de jornalista.”(destaques do original, grifei)
Assim, dentro do escopo conferido pela Constituição de 1.988, consagrador das liberdades públicas, donde se insere a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão intelectual, artística e científica, independentemente de censura prévia, tenho que o aludido diploma legal anterior à Constituição, a par do fato de ter sido editado sob a forma de Decreto-Lei e não de lei em sentido formal, que impõe a necessidade de formação superior para o exercício da profissão de jornalista, elaborado em época eminentemente diversa, em termos dos valores sociais vigentes, em que inexistia tal liberdade de expressão, inclusive nos meios de comunicação, à época fortemente controlados pela censura, não foi recepcionado pela Constituição atual, em função da colidência material com tais princípios nela consagrados.
A aludida incompatibilidade material da norma veiculada pelo Decreto-Lei nº 972/1969 com a atual Constituição já seria suficiente para afastá-la do mundo jurídico, em face de sua não recepção. Não obstante, é de se mencionar ainda, a título de argumentação, que, do ponto de vista formal, não pode ser aceita também a norma em tela, eis que, à época de sua edição, não houve fundamento de validade conferido por Constituição alguma, visto que os Ministros Militares que a editaram não poderiam tê-lo feito, pois não eram presidentes da República que, segundo as Constituições de 1967 e 1969, era a única autoridade que tinha a atribuição de legislar através de decreto-lei (v. art. 58 da Constituição, de 24 de janeiro de 1967). Sobre tal questão, é de se mencionar o entendimento do ilustre Dr. Saulo Ramos, ex-ministro da Justiça, publicado na Folha de São Paulo do dia 29/01/92, trazido à colação pela petição acostada aos autos às fls. 82/109, subscrita pelos Advogados Dr. Luís Francisco da S. Carvalho Filho, Dr. José Carlos Dias e Dr. Antônio Carlos Penteado de Morais, cujo posicionamento é necessário trazer à tona:
“E, do ponto de vista formal, a origem do regulamento dos jornalistas também é espúria. O texto foi outorgado por decreto-lei firmado pela Junta Militar, que se apoderou do governo do Brasil em outubro de 1969, em absoluto desrespeito ao processo legislativo em vigor. Não se trata de argumento ideológico e pueril – o de ser contra só porque o governo era militar. É que até mesmo os regimes de força estão obrigados a respeitar as regras do processo legislativo, a manter as aparências.
Saulo Ramos, ex-Ministro da Justiça, publicou recentemente artigo na Folha a respeito do vício formal:
“…
E o Decreto-Lei 972/69?
(…)
Vejam como foi editado o decreto-lei:
“Os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam…”.
“Como se vê, nenhuma referência à Constituição, sequer à Carta empolacada que editaram no mesmo dia, 17 de outubro de 1969, mas invocaram o ato institucional do golpe de Estado de dois dias antes, que lhes “deu poderes” para editar a nova Constituição, chamada Emenda Constitucional nº 1, aquela que durou até 1988.
“Logo, esse decreto-lei não foi editado sob a égide de Constituição alguma, nem mesmo das constituições ditatoriais, a de 1967 e a de 1969…
Não pode ser considerado como lei anterior à atual Constituição, para o exame da recepção pela nova ordem, porque não é lei editada com base em constituição vigente à época de sua publicação…
Recebidas são as leis formalmente elaboradas ou editadas de acordo com o processo legislativo constitucional vigente à época.”(destaquei)
E continuam os ilustres subscritores da petição retro mencionada (fls. 105 dos autos):
“A mácula formal do regulamento dos jornalistas reside num fato: os ministros militares, apesar da usurpação do poder, não eram Presidentes da República. Não foram eleitos de forma direta ou indireta; não possuíam um mandato. E só o Presidente da República tinha, segundo as Constituições de 1967 e 1969 a atribuição de legislar através de decreto-lei. Tanto que não invocaram uma das duas Cartas para a sua edição, nem a anterior nem a que foi outorgada naquele mesmo dia. Se isto não foi questionado antes, é porque as decisões da Junta Militar fundadas no AI-5 estavam “livres” da apreciação do Poder Judiciário – um escândalo jurídico que não merece comentário.”(destaquei)
A par dos aspectos de nossa história jurídica recente, que, de resto, tende a repetir-se de forma cíclica no tempo, pelo que não devem ser desconsiderados pelo intérprete, tenho ainda que a estipulação do requisito de exigência de diploma, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem a perpetrar ofensa aos princípios constitucionais mencionados, na medida em que impõe obstáculos ao acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por um revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pôde ter acesso a um curso de nível superior, pelo que estaria restringida a liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual. E nem se levante a objeção, ademais, de que tal pessoa poderia enviar uma carta ao jornal, expressando-se livremente, pois é certo que há enorme diferença em assinar uma matéria como jornalista, expressando suas idéias e fazendo-o de maneira habitual como exercício de uma profissão, e ter uma carta, sintetizada em duas linhas, publicada na seção de leitores, eis que a livre manifestação do pensamento importa em manifestar-se num veículo em que aquele que se expressa seja ouvido.
Ressalte-se que a consideração da realidade social do país é de rigor, tendo em vista que, ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, conforme dispõe o art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Ademais, a interpretação acima esposada revela-se consentânea com a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego, de resto, consagradas como princípios da ordem econômica, previstos nos incisos VII e VIII, respectivamente, do art. 170 da Constituição Federal.
Desta feita, afigura-se-me que o critério meritório é mais consentâneo com tais princípios, uma vez que não provoca o desperdício de talentos, tão comum em nosso país e, simultaneamente, consagra a igualdade de oportunidades. Nesse sentido, John Rawls, segundo Amartya Sen , argumenta contra igualar as capacidades das pessoas como um requisito para políticas públicas, e reafirma a eqüidade e a justiça de um sistema no qual os cargos e as posições de autoridade e responsabilidade são preenchidos por meio de uma competição aberta. Assim, embora as pessoas tenham a mesma oportunidade para competir por estes cargos e posições abertos a todos (e, portanto, desfrutam da mesma parcela de bens primários em termos de oportunidades), elas terminarão tendo capacidades diferentes, pelo entendimento do ilustre pensador.
Outra irrazoabilidade na exigência do diploma ao jornalista consiste na decorrência lógica que isso cria, levantada por um dos pareceristas a que se refere o autor na inicial: caso tal exigência prevalecesse, o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim, por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão. E nem se levante a objeção de que assim já ocorre na prática, dada a existência dos articulistas e comentaristas, uma vez que, se tais profissionais, por não terem o diploma de jornalista, devem submeter-se ao crivo ou censura de um jornalista, resta comprometida a liberdade de expressão, da mesma forma.
Outrossim, verifica-se também o problema de locais de escassa população, em que inexistem os profissionais com diploma, com o que a atividade jornalística restaria comprometida, em detrimento do público, que tem o direito à informação (art. 5o, inciso XIV, da C.F.).
Sobre o tema da liberdade de imprensa, trago as oportunas palavras de Jean Rivero, trazidas em sua obra “Les libertés publiques” (Tome 2, PUF, 6ª edição, 1997, pág. 233), cuja universalidade de suas premissas pode ser aplicada ao presente caso, em que pondera: “É necessário sublinhar que a profissão de jornalista é uma das raras profissões a cujo acesso não se exige diploma algum, nenhuma formação anterior, nenhuma qualificação particular. Há escolas de jornalismo, mas a passagem por uma delas não é requerida para se adentrar na profissão. Essa total liberdade de recrutamento tem os seus aspectos positivos, sendo que o aprendizado pela prática atende bem às peculiaridades da profissão. A despeito disso, é mesmo paradoxal que uma atividade que confere um poder excepcional sobre o conjunto da opinião pública seja subtraída da verificação de qualidade daqueles que a exercem”(destaquei).
Adoto posicionamento favorável ao caráter vinculante da Convenção Americana de Direitos Humanos, em face da sua ratificação pelo Brasil aos 25.09.92, conforme, aliás, já defendi na monografia: “A relação entre o ordenamento internacional e o ordenamento interno em matéria de direitos humanos”(in Boletim dos Procuradores da República, Ano II, nº 16, Agosto/99). Assim, verifico que o art. 13 da referida Convenção consagra a liberdade de expressão e a proibição de qualquer forma de obstáculos ou meios indiretos ao direito de informação, como se verifica com a exigência do diploma de nível superior específico para o exercício da profissão de jornalista.
Cumpre ainda trazer à colação parte do texto da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, extraído da obra “A afirmação histórica dos Direitos Humanos”, de autoria de Fábio Konder Comparato, Ed. Saraiva, 1999, págs. 138/140:
“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia nacional, considerando que a ignorância, o descuido ou o desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, possa lembrar-lhes sem cessar seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam por isso mais respeitados, a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante em princípios simples e incontestáveis, redundem sempre na manutenção da Constituição e na felicidade de todos.
Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.
(…)
Art.10. Ninguém deve ser inquietado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art.11.A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei.
(…). ” (grifei)
Concluo, assim, que não houve a recepção do art. 4o, inciso V, do Decreto-lei nº 972/69, pela CF/88, no que tange à exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista. Porém, não acredito que a existência do registro junto ao Ministério do Trabalho seja de todo despropositada, desde que não se faça a exigência do referido diploma, tendo em vista que, em todas as profissões, é salutar que exista uma entidade de controle e fiscalização daquelas pessoas que as exercem de modo profissional. Nesse sentido, trago novamente as palavras de Jean Rivero, na obra citada, pág. 232: “A qualidade de jornalista profissional supõe duas condições de fundo: – a profissão deve ser exercida a título principal, de forma regular e remunerada, em uma publicação periódica, uma agência de imprensa, ou em rádio e televisão; – o interessado deve ter esta como a principal de suas fontes de renda (Código do Trabalho, artigo L. 761-2). A reunião dessas condições é constatada pela Comissão da Carteira de Identidade Profissional. A carteira permite ao titular prevalecer-se de medidas tomadas pelas autoridades administrativas em favor dos representantes da imprensa”. Assim, tenho que a idéia subjacente ao trecho mencionado pode ser aproveitada no presente, ou seja, o registro em si mesmo não importa em qualquer cerceamento de direitos, diferentemente do que ocorre com a exigência do diploma de nível superior.
Portanto, a atual regulamentação da matéria revela-se falha, na medida em que condiciona o exercício da profissão tão-somente com base na exigência do diploma de jornalista, sem prever qualquer outra exigência que aferisse o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional.
Algumas palavras se fazem necessárias a respeito do papel do Poder Judiciário, por vezes incompreendido por uma parcela das pessoas, que é o de aferir a compatibilidade da legislação vigente atinente à matéria com os princípios constitucionais, e não o de regulamentá-la, que é papel do Poder Legislativo, se assim o entender cabível, a teor do artigo 22, XVI, da C.F., considerada ainda a participação do Executivo, no que tange à fiscalização do exercício das profissões, em conformidade com o disposto no artigo 21, XXIV, que prevê que compete à União “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”. Desta feita, não cabe ser atribuído responsabilidade ao Judiciário por eventuais desacertos no que tange à tal regulamentação, eis que não lhe deu causa e isso não lhe incumbe, pois suas atribuições consistem em solucionar o caso concreto que lhe é proposto, dentro das regras processuais conferidas pelo sistema e respeitadas as garantias constitucionais das partes dentro do processo. Portanto, ao juiz incumbe solucionar a lide que lhe foi proposta no âmbito do processo, eis que a ele não foi conferida a possibilidade do “non liquet”, razão pela qual é de rigor a solução do litígio, por mais tormentosa que seja a questão, e por maiores que sejam os ânimos e interesses envolvidos.
No que tange ao pedido de reparação dos danos morais coletivos causados pela conduta impugnada, tenho que, a despeito da conduta lesiva por parte da União à liberdade de expressão, não é de se acatar tal pedido. Isso decorre do fato de que, a despeito da eventual dor íntima e sofrimento verificado no âmbito individual por parte das pessoas que foram impedidas de exercer a profissão em virtude da não detenção do diploma de jornalista, ao longo dos anos, não considero ter sido caracterizado um dano moral coletivo indenizável, a ponto de a ré União Federal ser responsabilizada, uma vez o grau de desenvolvimento de um país e o aperfeiçoamento das instituições democráticas é atingido através de longo processo histórico em que se verificam os avanços e os recuos, não sendo cabível imputar-lhe a responsabilidade por todos os equívocos do passado. Tal posicionamento importaria o mesmo que sancionar a conduta de uma criança ou de uma pessoa que não detém o entendimento pleno das conseqüências de seus atos, eis que a tal pessoa não é dado vislumbrar todos os aspectos de uma questão naquele momento, ainda que no futuro possa vir a ter tal entendimento, pois se trata de uma questão de amadurecimento, no caso, da sociedade e do processo histórico por ela vivenciado.
Não obstante, a partir de então, é de rigor que a União dê cumprimento à presente decisão, pois não lhe cumpre invocar desconhecimento sobre o teor do “decisum”, razão pela qual é de rigor acatar o pedido de condenação ao pagamento de multa para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas através da concessão do pedido.
Assim, o pedido não merece atendimento em sua integralidade, em virtude do exposto acima e também em razão do fato de que a declaração de nulidade de todos os autos de infração já lavrados, inclusive os já findos, importaria em conferir efeitos retroativos ao provimento jurisdicional, o que me parece desaconselhável. Desta feita, é de rigor anular tão-somente os autos de infração atualmente em fase de execução em razão do exercício da profissão de jornalista por pessoas sem o diploma específico de jornalista, eis que o processamento dos mesmos colide com o presente “decisum”.
Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO formulado na inicial para:
a) determinar que a ré União Federal, em todo o país, não mais exija o diploma de curso superior em Jornalismo para o registro no Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, informando aos interessados a desnecessidade de apresentação de tal diploma para tanto, bem assim que não mais execute fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau universitário de Jornalismo, assim como deixe de exarar os autos de infração correspondentes;
b) declarar a nulidade de todos os autos de infração pendentes de execução lavrados por Auditores-Fiscais do Trabalho contra indivíduos em razão da prática do jornalismo sem o correspondente diploma;
c) que sejam remetidos ofícios aos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, de forma a que se aprecie a pertinência de trancamento de eventuais inquéritos policiais ou ações penais em trâmite, tendo por objeto a apuração de prática de delito de exercício ilegal da profissão de jornalista;
d) fixar multa de RS$ 10.000,00 (dez mil reais), a ser revertida em favor do Fundo Federal de Direitos Difusos, nos termos dos arts. 11 e 13 da Lei nº 7347/85, para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas neste decisum.
Custas e demais despesas “ex lege”.
Sem condenação em honorários advocatícios, tendo em vista que, no presente caso, não está o Ministério Público Federal a exercer a advocacia, mas sim o “munus” público decorrente de seu papel institucional, bem assim, à vista da sucumbência recíproca.
Oficie-se nos autos dos Agravos de Instrumento noticiados no presente, comunicando-se a prolação da presente sentença.
Oficie-se ao Ministério do Trabalho, a fim de que seja dada ciência a todas as Delegacias do Trabalho sob a sua jurisdição, para cumprimento imediato dos itens a), b) e d) do presente dispositivo.
Oficie-se aos Tribunais de Justiça dos Estados, nos termos do item c) do dispositivo.
Decisão sujeita ao reexame necessário. Oportunamente, remetam-se os autos ao E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
P. R. I.
São Paulo, 18 de Dezembro de 2002.
CARLA ABRANTKOSKI RISTER
JUÍZA FEDERAL SUBSTITUTA
na titularidade plena da 16ª Vara
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2003.
A sentença foi proferida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal e Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo.
Carla Rister afirma que o Decreto-Lei nº 972/69 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, no que tange à exigência do diploma de curso superior de jornalismo para o registro do profissional perante o Ministério do Trabalho. Segundo a juíza, a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei não atende aos requisitos necessários para perpetrar restrição legítima ao exercício da profissão.
Para Carla Rister, a profissão de jornalista não pode ser regulamentada sob o aspecto da capacidade técnica, eis que não pressupõe a existência de qualificação profissional específica, indispensável à proteção da coletividade. “O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional”, afirma.
Segundo a juíza, a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei 972/69 não visa ao interesse público, que consiste na garantia do direito à informação, a ser exercido sem qualquer restrição, através da livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, conforme previsto no inciso IX do art. 5º e caput do art. 220 da Constituição Federal.
“O argumento de que haveria requisitos de ordem ética ou moral como condições de capacidade que justificariam a regulamentação da profissão não se sustentam, eis que a comum honestidade não é requisito profissional específico para o exercício da profissão de jornalista, mas sim um pressuposto para o exercício de qualquer profissão, pelo que não pode ser considerado como legitimador da exigência do diploma para o caso em tela, até mesmo porque honestidade e ética não são atributos que se adquirem somente durante um curso universitário de quatro ou cinco anos, mas sim compõem o núcleo de personalidade e de caráter do indivíduo, formado durante toda a sua vida, seja pelo exercício de atividade acadêmica (cuja utilidade e benefício ao indivíduo são mais do que reconhecidos pelo presente juízo), seja pelo exercício profissional propriamente dito, seja pela convivência familiar e até mesmo pelas demais formas de convivência em sociedade”, diz a juíza.
Para Carla Rister, o aludido diploma legal de jornalista, a par do fato de ter sido editado sob a forma de Decreto-Lei e não de Lei em sentido formal, elaborado em época eminentemente diversa, em que inexistia liberdade de expressão, inclusive nos meios de comunicação, colide materialmente com os princípios consagrados pela Constituição de 1988, das liberdades públicas, donde se insere a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão intelectual, artística e científica.
“Tenho ainda que a estipulação do requisito de exigência de diploma, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem perpetrar ofensa aos princípios constitucionais, na medida em que impõe obstáculos ao acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por um revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pôde ter acesso a um curso de nível superior, pelo que estaria restringida à liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual”, diz.
Carla Rister afirma ainda que, caso a exigência do diploma prevalecesse, “o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão”.
Para a juíza, a atual regulamentação da matéria revela-se falha, na medida em que condiciona o exercício da profissão tão-somente com base na exigência do diploma de jornalista, sem prever qualquer outra exigência que aferisse o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional.
Leia a íntegra da sentença:
Processo N° 2001.61.00.025946-3
Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público Federal e Sindicato das Empresas de Radio e Televisão no Estado de São Paulo
Réu: União Federal, Federação Nacional dos Jornalistas e Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
16ª Vara Cível de São Paulo
Juíza Federal Substituta: Dra. Carla Abrantkoski Rister
Sentença
Vistos, etc.
Trata-se de Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada, em que o autor, Ministério Público Federal, requer, em caráter definitivo:
a) que seja determinado à Ré União Federal a não mais registrar ou fornecer qualquer número de inscrição no Ministério do Trabalho para os diplomados em jornalismo, informando aos interessados a desnecessidade do registro e inscrição para o exercício da profissão de jornalista;
b) que seja obrigada a União Federal a não mais executar fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau de curso universitário de jornalismo, bem como a não mais exarar os autos de infração correspondentes;
c) que sejam declarados nulos todos os autos de infração lavrados por Auditores-Fiscais do Trabalho, em fase de execução ou não, contra indivíduos em razão da prática do jornalismo sem o correspondente diploma;
d) que sejam remetidos ofícios aos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, de forma a que se aprecie a pertinência de trancamento de eventuais inquéritos policiais ou ações penais em trâmite, tendo por objeto a apuração de prática de delito de exercício ilegal da profissão de jornalista;
e) seja fixada multa de RS$ 10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Federal de Direitos Difusos (art. 13 da Lei n. 7347/85), para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas através da concessão do pedido;
f) seja a ré condenada a reparar os danos morais coletivos pela conduta impugnada.
Sustenta o autor que O Decreto-Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969, que estabelece a obrigatoriedade do registro do profissional perante o Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, registro este que somente é concedido mediante a apresentação do diploma de curso superior de jornalismo, nos termos do art. 4o, inciso V, do referido Decreto-Lei, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1.988. Segundo a argumentação exposta, a regra é a liberdade de profissão, nos termos do art. 5o, inciso XIII, da C.F., sendo vedado ao legislador infra-constitucional impor restrições indevidas ou irrazoáveis, como ocorreria no presente caso. Afirma ainda que o próprio E. Supremo Tribunal Federal tem posição formada nesse sentido em caso de regulamentação de profissão que não pressupõe ‘condições de capacidade’ (v. jurisprudência acostada à inicial). Ademais, estaria a haver ofensa ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, que garante a liberdade de pensamento e de expressão.
Propugna ainda o Ministério Público Federal pela sua legitimidade ativa para propositura da presente ação, pela legitimidade passiva da União (eis que o objeto da presente ação tenciona a suspensão de atos praticados pelo Ministério do Trabalho), pela reparação do dano moral coletivo, bem assim pelo alcance nacional da decisão judicial na presente ação civil pública.
Foi concedida a antecipação parcial dos efeitos da tutela (v. fls. 315/326).
A Federação Nacional dos Jornalistas e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo solicitaram ingresso na lide, na qualidade de assistentes simples da União Federal (v. fls. 340/348), o que foi deferido (v. fls. 747). Em despacho de fls. 744/747, foi indeferido o ingresso na lide, na qualidade de litisconsortes ou de assistentes do autor, dos cidadãos que formularam tal pleito. Foi deferido o ingresso na lide, no pólo ativo, na qualidade de assistente simples do Ministério Público Federal, o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (SERTESP).
Foram interpostos recursos de agravo de instrumento da decisão que deferiu parcialmente os efeitos da tutela (v. fls. 397/476 e 478/493). O E. Tribunal Regional Federal da 3a Região não concedeu o pretendido efeito suspensivo (v. fls. 695/699 e 701/704).
A União Federal apresentou contestação de fls. 567/590, onde propugna, preliminarmente, pela impossibilidade de concessão de medida antecipatória contra a Fazenda Pública, pela ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal, pela inadequação da via eleita, pela impossibilidade de concessão de tutela antecipada em âmbito nacional. No mérito, propugna a União Federal pela improcedência do pedido, fundada na tese de que o Decreto-Lei 972/1969 teria sido recepcionado pela Constituição de 1.988.
A Federação Nacional dos Jornalistas e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo apresentaram contestação de fls. 621/678, onde propugnam, preliminarmente, pela legitimidade dos ora assistentes para intervir no presente processo, pela ilegitimidade do Ministério Público Federal, pela inadequação da via eleita (em face do não cabimento da ação civil pública como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade), pela necessidade de formação do litisconsórcio passivo necessário. No mérito, propugnam pela improcedência do pedido.
Réplicas do Ministério Público Federal às fls. 756/774 e de seu assistente às fls. 785/796.
É o relatório do essencial. Decido.
PRELIMINARMENTE
Acerca da alegação ofertada em preliminar quanto à impossibilidade de concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, não merece acolhimento, eis que importaria em ofensa à isonomia das partes perante o processo. Cabe notar que tal questão foi submetida à apreciação pelo E. Tribunal Regional Federal, ainda que liminarmente, na decisão que indeferiu o efeito suspensivo pretendido pelos agravantes União Federal e seus assistentes FENAJ e Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo. Naquela ocasião, nos autos do Agravo de Instrumento n. 2001.03.00.034677-0 (AG 142898), o Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, Relator do Agravo, ressaltou, com propriedade: “não há que se falar, ainda, em liminar satisfativa ou irreversibilidade da medida, nos termos em que foi deferida, pois em caso de improcedência da ação todas as situações pessoais dos eventuais beneficiados poderão reverter ao estado anterior, com o cancelamento de registros, cobranças de multas etc.”
Quanto à pretensa impossibilidade de concessão de provimento em caráter nacional, é de se ressaltar que a questão da competência não se confunde com aquela atinente aos efeitos da sentença na ação civil pública, objeto de acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. E, nesse aspecto, compartilho do entendimento da eminente Desembargadora Federal Anna Maria Pimentel, exarado por conta de Agravo de Instrumento interposto nos autos da Ação Civil Pública nº96.0024327-1:
“Convém destacar que os efeitos que uma decisão ou sentença venham a produzir em todo território nacional, previstos e desejados pela nova ordem constitucional, não se confundem com a fatia de competência (jurisdição) do juízo que a proferiu, também haurida da Lei Fundamental”. Nesse aspecto, é de se mencionar ainda o ensinamento de Ada Pellegrini Grinover, estudiosa do tema, acerca da inoperância do acréscimo introduzido ao art. 16 da LACP pela Lei nº 9.494/97, resultante da conversão da Medida Provisória nº 1.570/97:
“Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses individuais difusos e coletivos, mas o acréscimo introduzido pela Medida Provisória é inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz.” (destaquei)(in “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto”, 6ª edição, Forense Universitária, pág. 821)
Não desconheço o teor da decisão proferida pelo E. STF na ADIN nº 1576-1, em que foi deferida, em parte, a medida liminar para suspender, até a decisão final da ação, a vigência do art. 2o da MP nº 1.570-97. Não obstante, em relação ao art. 3o da MP 1570-97, posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97, que modificou o art. 16 da LACP, indeferiu o STF a liminar, razão pela qual o Juízo de primeiro grau poderá, dentro do princípio do livre convencimento fundamentado que lhe é conferido pelo regramento constitucional (art. 93, IX da C.F.), adotar o entendimento que repute mais adequado aos princípios constitucionais e ao escopo das ações coletivas, de molde a conferir maior proteção aos interesses envolvidos. Assim, adoto o entendimento acima exposto em relação à questão atinente aos efeitos da sentença nas ações coletivas.
A respeito ainda da suposta impossibilidade de concessão de provimento judicial em caráter nacional, note-se, de novo, o que mencionou o Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares por ocasião do Agravo de Instrumento mencionado: “quanto à possibilidade, nas ações coletivas, de provimento judicial de âmbito nacional, a despeito do disposto no art. 16 da LACP, considerável parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que é da essência da ação coletiva a eficácia erga omnes da decisão, quando a União é parte no processo”.
Pelos fundamentos retro expostos, portanto, afasto a alegação de impossibilidade de concessão de provimento judicial em caráter nacional em sede de ação civil pública, especialmente no presente caso concreto, em que a União é parte no processo, pois não faz sentido que, num Estado da Federação, a União adote posição diversa da adotada em outro Estado em relação a uma mesma matéria, melhor dizendo, que o diploma em questão seja exigido em um Estado e não em outro, eis que tal situação atenta contra o bom senso.
Acerca da postulada legitimidade para a intervenção dos sindicatos como assistentes, tanto do autor quanto do réu, foi deferido pelo presente Juízo o ingresso na lide do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (SERTESP) como assistente do autor Ministério Público Federal, bem assim da FENAJ e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo como assistentes da ré União Federal (v. fls. 744/747). Naquela ocasião, ressaltei: “no que se refere ao ingresso dos sindicatos, na qualidade de assistentes simples das partes, penso que não existe empecilho de ordem legal, posto que há interesse jurídico dos mesmos, considerando que na defesa dos direitos difusos e coletivos os sindicatos têm legitimação autônoma para a condução do processo de ação civil pública, já que possuem natureza jurídica de associação civil, sendo facultado inclusive a sua habilitação como litisconsorte de qualquer das partes (art. 5o, “caput” e parágrafo segundo, da Lei n. 7347/85); sendo que a Carta Magna determina que ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (art. 8o, inciso III, da Constituição Federal)”.
Considerando-se o exposto acima, tenho que tal questão restou definitivamente esclarecida, não merecendo maiores considerações, pelo que afasto a alegação de qualquer vício no pólo passivo da demanda, bem assim da necessidade de litisconsórcio passivo necessário, eis que foi deferido o ingresso na lide do Sindicato dos Jornalistas e da Federação (FENAJ) na qualidade de assistentes da ré União Federal, não havendo qualquer prejuízo ao direito de defesa de tais entes, que puderam trazer suas razões ao processo, sob o crivo do contraditório.
Sobre a alegação de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal, tenho que não merece acolhida, eis que, conforme ressaltado às fls. 744, “observo, preambularmente, que o objeto da demanda é a tutela jurisdicional da liberdade de manifestação do pensamento, garantia assegurada constitucionalmente, sendo caracterizado, portanto, como interesse difuso, legitimando, assim, a propositura da ação pelo representante do “Parquet” Federal (art. 5o, “caput”, da Lei n. 7.347/85)”. A par da expressa previsão legal no diploma processual civil específico da ação civil pública a conferir legitimidade ao Ministério Público Federal para a propositura da presente ação, registre-se o entendimento do Exmo. Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, por ocasião do Agravo de Instrumento em tela: “com efeito, por primeiro, a questão da ilegitimidade ativa argüida pelos agravantes, além de ainda não ter sido analisada e decidida em primeira instância, o que, certamente, será feito no momento processual oportuno, com possibilidade do recurso próprio, certo é que não se pode concluir, desde logo, que o Ministério Público não esteja exercendo seu direito de ação, nos limites da lei e da Constituição Federal”(destaquei).
Ainda acerca da legitimidade do parquet federal para o ajuizamento da presente ação, cumpre perquirir, em primeiro lugar, acerca da natureza dos interesses que ora se discute, questão intimamente ligada à da legitimidade. Sobre o tema, primeiramente, incumbe trazer as importantes lições do ilustre processualista Rodolfo de Camargo Mancuso:
“Verdade que certa vertente jurisprudencial tem se revelado reticente quanto a reconhecer legitimidade ativa ao Ministério Público quando se trata de interesse “individual homogêneo”, seja porque aí o interesse, em sua essência remanesce individual, seja porque a dicção do art. 129, III, da CF se restringe a “outros interesses difusos e coletivos”. Assim, o Superior Tribunal de Justiça já negou o uso da ação civil pública para o Ministério Público “porfiar na defesa de direitos individuais afetos a determinado grupo” (REsp 46.130-8-pr, rel. Min. Demócrito Delgado, DJ 20.06.1994); no mesmo sentido: REsp 47.019-6-MG, rel. Min. César Asfor Rocha, DJ 06.06.1994; REsp 35.644-0-MG, rel. Min. Garcia Vieira, DJ 4.10.93). Também se registram trabalhos doutrinários postados nessa linha mais restritiva.
Cremos que o logos de lo razonable nessa controvérsia depende de que seja devidamente valorizado o disposto no caput do art. 127 da CF, onde se diz que ao parquet compete a defesa dos “interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ou seja, quando for individual o interesse, ele há de vir qualificado pela nota da indisponibilidade, vale dizer, da prevalência do caráter de ordem pública em face do bem de vida direto e imediato perseguido pelo interessado. Até porque, de outro modo, a legitimação remanesceria ordinária, pessoalmente ou em cúmulo subjetivo. É nessa linha que se coloca Hugo Nigro Mazzilli: “A defesa de interesses de meros grupos determinados ou determináveis de pessoas só se pode fazer pelo Ministério Público quando isso convenha à coletividade como um todo, respeitada a destinação institucional do Ministério Público”. Conforme observado por Kazuo Watanabe: “Em linha de princípio somente os interesses individuais indisponíveis estão sob a proteção do parquet. Foi a relevância social da tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular, mesmo em se tratando de interesses e direitos disponíveis”.”(destaquei)(in “Ação Civil Pública”, 5a. edição, Ed. RT, 1.998, pp. 88-89)
Não há que se falar, no presente caso, de interesses meramente individuais, mas sim de interesses que extravasam o próprio interesse ao exercício da profissão de jornalista, adquirindo um cunho social, na medida em que, a par de aparentar ter como titular um grupo determinado de pessoas em condições de exercer tal profissão, vem a atingir o próprio direito constitucional de livre manifestação do pensamento, a ser exercido por um grupo indeterminado de pessoas. Dessa forma, além de sua caracterização como interesse difuso, conforme aduzido, noto que a relevância social do interesse é patente, apta a legitimar a atuação do Ministério Público, cuja atribuição constitucional, dentre outras, é de defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da C.F., in fine).
E, assim, por tais fundamentos, revela-se legítimo o Ministério Público Federal para propor a presente ação civil pública, uma vez que a própria Constituição Federal, em seu art. 129, III, consagra como função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção, dentre outros, dos interesses difusos e coletivos.
Assim, nos termos do art. 129, III, da C.F., em face da tutela dos interesses difusos no presente caso, bem como em razão da relevância social do interesse individual homogêneo em questão (art. 127 da C.F.), trata-se o Ministério Público Federal de ente legitimado à propositura da presente ação, estribado em suas funções institucionais, conferidas pelo Constituinte de 1.988, cuja grandeza não se pode amesquinhar, visto que estão em jogo os interesses da sociedade, da qual o parquet é um dos mais importantes mandatários.
Sobre a pretensa inadequação da via eleita, no caso, a presente ação civil pública, tal alegação não merece acolhimento, eis que, a prevalecer a tese exposta de que, por vias transversas, tencionar-se-ia a obtenção de tutela declaratória da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 972/69, à semelhança da ação direta de inconstitucionalidade, a ação civil pública restaria totalmente inviabilizada. No caso da presente ação civil pública, tem-se por objeto atacar os efeitos concretos no plano prático do ordenamento acoimado de inconstitucional, ou seja, afastar a inconstitucionalidade na aplicação da lei, e não a obtenção de tutela de cunho eminentemente declaratório, como na ação direta. Novamente, é de se mencionar o entendimento do ilustre Juiz Federal Convocado Manoel Álvares, sobre o tema: “De outra parte, não há que se confundir ação direta de inconstitucionalidade, por meio da qual se faz o controle concentrado, com a ação civil pública, onde o controle de constitucionalidade é apenas incidental e difuso, vale dizer, a competência privativa do C. Supremo Tribunal Federal diz respeito à declaração de inconstitucionalidade de lei, ao passo que nas ações individuais ou coletivas pode-se pretender o reconhecimento de eventual inconstitucionalidade na aplicação da lei”(destaquei).
Afastadas as preliminares, passo a analisar o mérito da presente demanda.
MÉRITO
No Brasil, note-se que a Constituição Federal de 1988 assegurou a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, no inciso XIII do art. 5o, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Tenho que tal dispositivo deve ser interpretado de maneira consentânea com outros dispositivos constitucionais, consagradores de liberdades individuais, dentro de uma interpretação sistemática do texto constitucional. Antes, porém, necessário trazer o entendimento de José Afonso da Silva sobre o tema:
“O princípio é o da liberdade reconhecida. No entanto, a Constituição ressalva, quanto à escolha e exercício de ofício e profissão, que ela fica sujeita à observância das “qualificações profissionais que a lei exigir”. Há, de fato, ofícios e profissões que dependem de capacidade especial, de certa formação técnica, científica ou cultural. Compete privativamente à União legislar sobre condições para o exercício de profissões (art. 22, XVI). Só lei federal pode definir as qualificações profissionais requeridas para o exercício das profissões.
…
Como o princípio é o da liberdade, a eficácia e a aplicabilidade da norma é ampla, quando não exista lei que estatua condições ou qualificação especiais para o exercício do ofício ou profissão ou acessibilidade à função pública. Vale dizer, não são as leis mencionadas que dão eficácia e aplicabilidade à norma. Não se trata de direito legal, direito decorrente da lei mencionada, mas de direito constitucional, direito que deriva diretamente do dispositivo constitucional. A lei referida não cria o direito, nem atribui eficácia à norma. Ao contrário, ela importa em conter essa eficácia e aplicabilidade, trazendo normas de restrição destas.”(destaquei)(in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 16ª edição, Ed. Malheiros, pág. 261)
Diante dos ensinamentos acima, depreendo que a regra, no que tange ao exercício das profissões, consiste na liberdade, não criando a lei o direito em questão, eis que se trata de direito constitucional, mas tão-somente restringindo seu âmbito de eficácia e aplicabilidade, incumbindo-me analisar se o Decreto-Lei nº 972/69 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1.988, no que tange à exigência do diploma de nível superior.
Para tanto, é mister trazer à tona outros dispositivos constitucionais, que ora incumbe transcrever:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
…
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
…
IX – é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
…
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1o Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2o É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”(destaquei)
Tomando-se o texto constitucional de maneira sistemática, há que se interpretá-lo de molde a que os comandos consubstanciados nos dispositivos retro transcritos se harmonizem, ao invés de se colidirem, eis que o sistema jurídico é uno e incindível e assim deve ser considerado pelo intérprete.
Conforme aduzido acima, a regra, no que tange ao exercício das profissões, é a liberdade, incumbindo-me perquirir em que situações poderia haver restrições a tal exercício. Tal questão, longe de constituir matéria nova no mundo jurídico, já foi amplamente debatida pela jurisprudência e pela doutrina, pelo que é mister citar, de início, o entendimento esboçado pelo eminente Ministro Thompson Flores, em sede de Recurso Extraordinário, ao tratar da regulamentação do exercício das profissões:
“A Constituição de 1946, art. 141, § 14, reza:
“É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”.
A de 1967, com pequena alteração, dispõe de modo idêntico:
“Art. 150, § 23. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”.
A liberdade do exercício profissional se condiciona às condições de capacidade que a lei estabelecer. Mas, para que a liberdade não seja ilusória, impõe-se que a limitação, as condições de capacidade, não seja de natureza a desnaturar ou suprimir a própria liberdade. A limitação da liberdade pelas condições de capacidade supõe que estas se imponham como defesa social. Observa Sampaio Dória (Comentários à Constituição de 1946, 4o vol., página 637):
“A lei, para fixar as condições de capacidade, terá de inspirar-se em critério de defesa social e não em puro arbítrio. Nem tôdas as profissões exigem condições legais de exercício. Outras, ao contrário, o exigem. A defesa social decide. Profissões há que, mesmo exercidas por ineptos, jamais prejudicam diretamente direito de terceiro, como a de lavrador. Se carece de técnica, só a si mesmo se prejudica. Outras profissões há, porém, cujo exercício por quem não tenha capacidade técnica, como a de condutor de automóveis, pilotos de navios ou aviões prejudica diretamente direito alheio. Se mero carroceiro se arvora em médico operador, enganando o público, sua falta de assepsia matará o paciente. Se um pedreiro se mete a construir arranha-céus (sic), sua ignorância em resistência dos materiais pode preparar desabamento do prédio e morte dos inquilinos. Daí em defesa social, exigir a lei condições de capacidade técnica para profissões cujo exercício possa prejudicar diretamente direitos alheios, sem culpa das vítimas”.
Reconhece-se que as condições restritivas da liberdade profissional não sejam apenas de natureza técnica. Superiores interêsses da coletividade recomendam que aquela liberdade também tenha limitações respeitantes à capacidade moral, física e outras (Cf. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira, p. 798). Por outras palavras, as limitações podem ser de naturezas diversas, desde que solicitadas pelo interesse público, devidamente justificado (Cf. Pinto Falcão, Constituição Anotada, 1957, 2o v., p. 133; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, 5o v., página 507). Escreve este insigne publicista:
“O que é preciso é que toda política legislativa a respeito do trabalho se legitime com a probabilidade e a verificação do seu acerto. Toda limitação por lei à liberdade tem de ser justificada. Se, com ela, não cresce a felicidade de todos, ou se não houve proveito na limitação, a regra legal há de ser eliminada. Os mesmos elementos que tornam a dimensão das liberdades campo aberto para as suas legítimas explorações do povo estão sempre prontos a explorá-lo, mercê das limitações”.(destaquei)(RE Nº 70.563-SP, R.T.J. 58, pp. 279-283)
Diante do exposto acima, incumbe ao Judiciário apurar se a regulamentação trazida pelo Decreto-Lei nº 972/69 atende aos requisitos necessários para perpetrar restrição legítima ao exercício das profissões, que deverá se pautar na estrita observância ao interesse público, ou seja, nas palavras do eminente Ministro, que se verifica pelo incremento do proveito a todos. Tenho que não. Vejamos.
Tal se deve à propalada irrazoabilidade do requisito exigido para o exercício da profissão, tendo em vista que a profissão de jornalista não pode ser regulamentada sob o aspecto da capacidade técnica, eis que não pressupõe a existência de qualificação profissional específica, indispensável à proteção da coletividade, diferentemente das profissões técnicas (a de Engenharia, por exemplo), em que o profissional que não tenha cumprido os requisitos do curso superior pode vir a colocar em risco a vida de pessoas, como também ocorre com os profissionais da área de saúde (por exemplo, de Medicina ou de Farmácia). O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional. Em segundo lugar, porque o exercício dessa atividade, mesmo que exercida por inepto, não prejudicará diretamente direito de terceiro. Quem não conseguir escrever um bom artigo ou escrevê-lo de maneira ininteligível não conseguirá leitores, porém, isso a ninguém prejudicará, a não ser ao próprio autor. Assim, a regulamentação, pelo que depreendo, não visa ao interesse público, que consiste na garantia do direito à informação, a ser exercido sem qualquer restrição, através da livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, conforme previsto no inciso IX do art. 5o e caput do art. 220, ambos da Constituição Federal.
Note-se ainda o trecho abaixo transcrito do voto do Ministro Thompson Flores, tratando do requisito de capacidade para o exercício de profissão regulamentada:
“Haverá, acaso, ditada pelo bem comum, algum outro requisito de capacidade exigível aos exercentes dessa profissão? Nenhum. A comum honestidade dos indivíduos não é requisito profissional e sequer exige, a natureza da atividade, especial idoneidade moral para que possa ser exercida sem risco. Conseqüentemente, o interesse público de forma alguma impõe seja regulamentada a profissão de “corretor de imóveis”, como não o impõe com relação a tantas e tantas atividades profissionais que, por dispensarem maiores conhecimentos técnicos ou aptidões especiais físicas ou morais, também não se regulamentam. 11. Como justificar-se, assim, a regulamentação? Note-se que não há, na verdade, interesse coletivo algum que a imponha. E o que se conseguiu, com a lei, foi criar uma disfarçada corporação de ofício, a favor dos exercentes da atividade, coisa que a regra constitucional e o regime democrático vigentes repelem”.(destaquei)
Assim, o argumento de que haveria requisitos de ordem ética ou moral como condições de capacidade que justificariam a regulamentação da profissão não se sustentam, eis que a comum honestidade não é requisito profissional específico para o exercício da profissão de jornalista, mas sim um pressuposto para o exercício de qualquer profissão, pelo que não pode ser considerado como legitimador da exigência do diploma para o caso em tela, até mesmo porque honestidade e ética não são atributos que se adquirem somente durante um curso universitário de quatro ou cinco anos, mas sim compõem o núcleo de personalidade e de caráter do indivíduo, formado durante toda a sua vida, seja pelo exercício de atividade acadêmica (cuja utilidade e benefício ao indivíduo são mais do que reconhecidos pelo presente Juízo), seja pelo exercício profissional propriamente dito, seja pela convivência familiar e até mesmo pelas demais formas de convivência em sociedade. Não é requisito apto a embasar a exigência do diploma para esse caso específico, portanto.
Segundo Geraldo Ataliba, em parecer que trata com acerto a questão (v. fls. 54/65), os pontos fulcrais estão no art. 200 (sic, entenda-se 220, conforme faz referência nas páginas anteriores) e no inciso XIII do art. 5o, a que, entre outros, faz referência o mandamento do parágrafo 1o do art. 220, ao vedar embaraços à informação jornalística – mandando, não obstante, observar a exigência de que o exercício das profissões atenda “às qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Surgiriam assim duas interpretações possíveis dessa conjunção de normas, quais sejam: a) só pode exercer o ofício de jornalista quem tenha diploma atestatório de qualificação profissional; b) ao exercer seus misteres, no transmitir informações específicas e próprias de uma profissão legalmente regulada, o jornalista deverá ouvir quem seja formalmente “qualificado”, de acordo com a lei.
A opção por uma ou outra interpretação não consiste em questão aberta, ao livre arbítrio do intérprete, sendo que, salvo melhor juízo, cabe afastar a primeira interpretação, eis que não vem ao encontro do interesse público, consubstanciado em se garantir o direito à informação, que não pode sofrer qualquer restrição, a teor do art. 220 da C.F., transcrito acima, uma vez que o leitor, o ouvinte ou o telespectador tem direito de ser informado de maneira plena, sem qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (v. § 2o do art. 200), pelos melhores profissionais, quer estes profissionais tenham cursado a Faculdade de Jornalismo, quer não, observadas as qualificações profissionais do informante. Trago à colação o entendimento do saudoso Geraldo Ataliba:
“Na hipótese a, fica parecendo que a Constituição quer que alguém seja “formado” profissionalmente, para profissionalmente colher, interpretar, comentar e transmitir informações variadas. O diploma atestaria tal “qualificação” do seu portador, habilitando-o, com exclusividade a esse mister. Consequentemente, seriam proibidos de colher, interpretar, comentar e transmitir informação, todos os não portadores de diploma, mesmo que tenham inteligência, cultura, habilidade e comunicabilidade para tanto.
– VI –
Esta interpretação – não explicita os valores constitucionais a que serve.
…
Pois, na hipótese a, supra sugerida, vê-se que o valor protegido não é a fidelidade à verdade, nem os dotes de observador, intérprete ou comunicador do profissional, dado que as virtudes e qualidades que levam a bom desempenho, quanto a isso, não se aprendem em bancos acadêmicos. O que transparece protegido por essa interpretação é o “valor” (?) corporativo, ao lado do prestígio compulsório dos estabelecimentos que, bem (o que é raro) ou mal (o que é o mais comum), têm o privilégio de expedir tais diplomas.
– VII –
A segunda interpretação (b) entende que a liberdade ampla da informação jornalística não pode prejudicar o leitor (ouvinte, telespectador) pela falta de informações idôneas, por falta de qualificação profissional das fontes, quando a matéria informada esteja inserida num universo de conhecimentos especializados cujo manejo dependa, legalmente, de qualificação profissional dos seus operadores. Assim, se a saúde é um valor, informação sobre remédios, instrumentos ou processos terapêuticos só pode provir de fonte qualificada formalmente segundo os critérios legais; a fonte, nesse caso, será necessariamente um médico, não um palpiteiro, um charlatão, um feiticeiro etc.
Se a matéria da notícia é a queda de uma ponte, as informações técnicas sobre suas causas, circunstâncias ou conseqüências terão por fonte um engenheiro e não qualquer do povo, ou um mero curioso.
Enfim, o direito à informação – direito do povo a ser informado, com fidelidade, pelos profissionais do jornalismo – há de ser atendido livremente por pessoas argutas, inteligentes, cultas e dotadas de qualidades comunicativas (escrita, fala, boa expressão), com a condição de que (ao transmitirem notícia sobre fatos e fenômenos objeto de conhecimento específico de profissões regulamentadas) sua interpretação e explicação provirão de profissionais formalmente qualificados (diplomados), a que deverão reportar-se os jornalistas. É desse modo que se obedece ao art. 5o, XIII da Constituição.
Assim, qualquer jornalista poderá informar que foi descoberto um remédio contra a AIDS, ou que caiu uma ponte na cidade de Caixa-Prego. Não poderá, porém – seja por opinião pessoal, seja por ouvir leigos – dizer que o remédio tem tais ou quais defeitos, nem que é elaborado com esmero (ou descuido). Nem poderá dizer que a ponte caiu, porque o concreto não tinha o teor de cimento requerido pela ciência. Evidentemente, poderá relatar que uma autoridade pública (delegado, prefeito, deputado etc.) ou profissional (engenheiro, contador etc.) afirmou “isto ou aquilo” (entre aspas). Porque, então, a responsabilidade por eventual má informação já será do declarante e não do jornalista.
– VIII –
Parece claro que tal interpretação respeita, concomitantemente, todos os valores constitucionalmente protegidos: (a) a liberdade de informação (do jornalista e do veículo), (b) o direito de informação correta (do povo), (c) a honra dos envolvidos pela notícia (só um especialista pode dizer das causas da queda da ponte e, implicitamente, da negligência de quem a projetou, executou ou fiscalizou sua execução), (d) a saúde pública (ninguém será levado a tomar ou evitar um medicamento, por indução – intencional ou não, não importa – do jornalista).
Esta interpretação – que deve prevalecer, porque exalta a harmonia do sistema jurídico – concilia comandos aparentemente contraditórios; serve aos valores concomitantemente; não agride (pelo contrário !) nenhum valor constitucional e, sobretudo, ampara e resguarda a liberdade de informar e o direito à informação, definindo claramente responsabilidades, de modo a também assegurar a realização dos desígnios expressos nos incisos IV, V, X, XIII e XIV do art. 5o da Constituição.
…
Em conseqüência, pode-se afirmar que a norma exigente de diploma de curso de jornalismo, para exercício da profissão de jornalista – por agressiva de princípios constitucionais básicos – não foi recebida pela Constituição de 1988 (dando de barato, ad argumentandum, que tenha sido compatível com a Carta de 67/69). Está, assim, perempta, revogada, sem eficácia. Pode (e deve) ser inobservada por todos, inclusive pelo Judiciário.
Nem se argumente com a vontade do legislador, que isso não é argumento jurídico e não merece atenção de jurista que se preza e respeita a cultura jurídica alheia.
…
A interpretação que propomos mostra que o Brasil é um estado de direito democrático, com responsabilidades definidas e proteção a valores sociais e individuais fundamentais, como se dá em todos os países civilizados, que adotam princípios semelhantes, e que jamais cogitaram de – como o fez, para nossa vergonha, a Junta Militar – exigir diploma para exercício da profissão de jornalista.”(destaques do original, grifei)
Assim, dentro do escopo conferido pela Constituição de 1.988, consagrador das liberdades públicas, donde se insere a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão intelectual, artística e científica, independentemente de censura prévia, tenho que o aludido diploma legal anterior à Constituição, a par do fato de ter sido editado sob a forma de Decreto-Lei e não de lei em sentido formal, que impõe a necessidade de formação superior para o exercício da profissão de jornalista, elaborado em época eminentemente diversa, em termos dos valores sociais vigentes, em que inexistia tal liberdade de expressão, inclusive nos meios de comunicação, à época fortemente controlados pela censura, não foi recepcionado pela Constituição atual, em função da colidência material com tais princípios nela consagrados.
A aludida incompatibilidade material da norma veiculada pelo Decreto-Lei nº 972/1969 com a atual Constituição já seria suficiente para afastá-la do mundo jurídico, em face de sua não recepção. Não obstante, é de se mencionar ainda, a título de argumentação, que, do ponto de vista formal, não pode ser aceita também a norma em tela, eis que, à época de sua edição, não houve fundamento de validade conferido por Constituição alguma, visto que os Ministros Militares que a editaram não poderiam tê-lo feito, pois não eram presidentes da República que, segundo as Constituições de 1967 e 1969, era a única autoridade que tinha a atribuição de legislar através de decreto-lei (v. art. 58 da Constituição, de 24 de janeiro de 1967). Sobre tal questão, é de se mencionar o entendimento do ilustre Dr. Saulo Ramos, ex-ministro da Justiça, publicado na Folha de São Paulo do dia 29/01/92, trazido à colação pela petição acostada aos autos às fls. 82/109, subscrita pelos Advogados Dr. Luís Francisco da S. Carvalho Filho, Dr. José Carlos Dias e Dr. Antônio Carlos Penteado de Morais, cujo posicionamento é necessário trazer à tona:
“E, do ponto de vista formal, a origem do regulamento dos jornalistas também é espúria. O texto foi outorgado por decreto-lei firmado pela Junta Militar, que se apoderou do governo do Brasil em outubro de 1969, em absoluto desrespeito ao processo legislativo em vigor. Não se trata de argumento ideológico e pueril – o de ser contra só porque o governo era militar. É que até mesmo os regimes de força estão obrigados a respeitar as regras do processo legislativo, a manter as aparências.
Saulo Ramos, ex-Ministro da Justiça, publicou recentemente artigo na Folha a respeito do vício formal:
“…
E o Decreto-Lei 972/69?
(…)
Vejam como foi editado o decreto-lei:
“Os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam…”.
“Como se vê, nenhuma referência à Constituição, sequer à Carta empolacada que editaram no mesmo dia, 17 de outubro de 1969, mas invocaram o ato institucional do golpe de Estado de dois dias antes, que lhes “deu poderes” para editar a nova Constituição, chamada Emenda Constitucional nº 1, aquela que durou até 1988.
“Logo, esse decreto-lei não foi editado sob a égide de Constituição alguma, nem mesmo das constituições ditatoriais, a de 1967 e a de 1969…
Não pode ser considerado como lei anterior à atual Constituição, para o exame da recepção pela nova ordem, porque não é lei editada com base em constituição vigente à época de sua publicação…
Recebidas são as leis formalmente elaboradas ou editadas de acordo com o processo legislativo constitucional vigente à época.”(destaquei)
E continuam os ilustres subscritores da petição retro mencionada (fls. 105 dos autos):
“A mácula formal do regulamento dos jornalistas reside num fato: os ministros militares, apesar da usurpação do poder, não eram Presidentes da República. Não foram eleitos de forma direta ou indireta; não possuíam um mandato. E só o Presidente da República tinha, segundo as Constituições de 1967 e 1969 a atribuição de legislar através de decreto-lei. Tanto que não invocaram uma das duas Cartas para a sua edição, nem a anterior nem a que foi outorgada naquele mesmo dia. Se isto não foi questionado antes, é porque as decisões da Junta Militar fundadas no AI-5 estavam “livres” da apreciação do Poder Judiciário – um escândalo jurídico que não merece comentário.”(destaquei)
A par dos aspectos de nossa história jurídica recente, que, de resto, tende a repetir-se de forma cíclica no tempo, pelo que não devem ser desconsiderados pelo intérprete, tenho ainda que a estipulação do requisito de exigência de diploma, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem a perpetrar ofensa aos princípios constitucionais mencionados, na medida em que impõe obstáculos ao acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por um revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pôde ter acesso a um curso de nível superior, pelo que estaria restringida a liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual. E nem se levante a objeção, ademais, de que tal pessoa poderia enviar uma carta ao jornal, expressando-se livremente, pois é certo que há enorme diferença em assinar uma matéria como jornalista, expressando suas idéias e fazendo-o de maneira habitual como exercício de uma profissão, e ter uma carta, sintetizada em duas linhas, publicada na seção de leitores, eis que a livre manifestação do pensamento importa em manifestar-se num veículo em que aquele que se expressa seja ouvido.
Ressalte-se que a consideração da realidade social do país é de rigor, tendo em vista que, ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, conforme dispõe o art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Ademais, a interpretação acima esposada revela-se consentânea com a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego, de resto, consagradas como princípios da ordem econômica, previstos nos incisos VII e VIII, respectivamente, do art. 170 da Constituição Federal.
Desta feita, afigura-se-me que o critério meritório é mais consentâneo com tais princípios, uma vez que não provoca o desperdício de talentos, tão comum em nosso país e, simultaneamente, consagra a igualdade de oportunidades. Nesse sentido, John Rawls, segundo Amartya Sen , argumenta contra igualar as capacidades das pessoas como um requisito para políticas públicas, e reafirma a eqüidade e a justiça de um sistema no qual os cargos e as posições de autoridade e responsabilidade são preenchidos por meio de uma competição aberta. Assim, embora as pessoas tenham a mesma oportunidade para competir por estes cargos e posições abertos a todos (e, portanto, desfrutam da mesma parcela de bens primários em termos de oportunidades), elas terminarão tendo capacidades diferentes, pelo entendimento do ilustre pensador.
Outra irrazoabilidade na exigência do diploma ao jornalista consiste na decorrência lógica que isso cria, levantada por um dos pareceristas a que se refere o autor na inicial: caso tal exigência prevalecesse, o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim, por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão. E nem se levante a objeção de que assim já ocorre na prática, dada a existência dos articulistas e comentaristas, uma vez que, se tais profissionais, por não terem o diploma de jornalista, devem submeter-se ao crivo ou censura de um jornalista, resta comprometida a liberdade de expressão, da mesma forma.
Outrossim, verifica-se também o problema de locais de escassa população, em que inexistem os profissionais com diploma, com o que a atividade jornalística restaria comprometida, em detrimento do público, que tem o direito à informação (art. 5o, inciso XIV, da C.F.).
Sobre o tema da liberdade de imprensa, trago as oportunas palavras de Jean Rivero, trazidas em sua obra “Les libertés publiques” (Tome 2, PUF, 6ª edição, 1997, pág. 233), cuja universalidade de suas premissas pode ser aplicada ao presente caso, em que pondera: “É necessário sublinhar que a profissão de jornalista é uma das raras profissões a cujo acesso não se exige diploma algum, nenhuma formação anterior, nenhuma qualificação particular. Há escolas de jornalismo, mas a passagem por uma delas não é requerida para se adentrar na profissão. Essa total liberdade de recrutamento tem os seus aspectos positivos, sendo que o aprendizado pela prática atende bem às peculiaridades da profissão. A despeito disso, é mesmo paradoxal que uma atividade que confere um poder excepcional sobre o conjunto da opinião pública seja subtraída da verificação de qualidade daqueles que a exercem”(destaquei).
Adoto posicionamento favorável ao caráter vinculante da Convenção Americana de Direitos Humanos, em face da sua ratificação pelo Brasil aos 25.09.92, conforme, aliás, já defendi na monografia: “A relação entre o ordenamento internacional e o ordenamento interno em matéria de direitos humanos”(in Boletim dos Procuradores da República, Ano II, nº 16, Agosto/99). Assim, verifico que o art. 13 da referida Convenção consagra a liberdade de expressão e a proibição de qualquer forma de obstáculos ou meios indiretos ao direito de informação, como se verifica com a exigência do diploma de nível superior específico para o exercício da profissão de jornalista.
Cumpre ainda trazer à colação parte do texto da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, extraído da obra “A afirmação histórica dos Direitos Humanos”, de autoria de Fábio Konder Comparato, Ed. Saraiva, 1999, págs. 138/140:
“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia nacional, considerando que a ignorância, o descuido ou o desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, possa lembrar-lhes sem cessar seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam por isso mais respeitados, a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante em princípios simples e incontestáveis, redundem sempre na manutenção da Constituição e na felicidade de todos.
Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.
(…)
Art.10. Ninguém deve ser inquietado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art.11.A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei.
(…). ” (grifei)
Concluo, assim, que não houve a recepção do art. 4o, inciso V, do Decreto-lei nº 972/69, pela CF/88, no que tange à exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista. Porém, não acredito que a existência do registro junto ao Ministério do Trabalho seja de todo despropositada, desde que não se faça a exigência do referido diploma, tendo em vista que, em todas as profissões, é salutar que exista uma entidade de controle e fiscalização daquelas pessoas que as exercem de modo profissional. Nesse sentido, trago novamente as palavras de Jean Rivero, na obra citada, pág. 232: “A qualidade de jornalista profissional supõe duas condições de fundo: – a profissão deve ser exercida a título principal, de forma regular e remunerada, em uma publicação periódica, uma agência de imprensa, ou em rádio e televisão; – o interessado deve ter esta como a principal de suas fontes de renda (Código do Trabalho, artigo L. 761-2). A reunião dessas condições é constatada pela Comissão da Carteira de Identidade Profissional. A carteira permite ao titular prevalecer-se de medidas tomadas pelas autoridades administrativas em favor dos representantes da imprensa”. Assim, tenho que a idéia subjacente ao trecho mencionado pode ser aproveitada no presente, ou seja, o registro em si mesmo não importa em qualquer cerceamento de direitos, diferentemente do que ocorre com a exigência do diploma de nível superior.
Portanto, a atual regulamentação da matéria revela-se falha, na medida em que condiciona o exercício da profissão tão-somente com base na exigência do diploma de jornalista, sem prever qualquer outra exigência que aferisse o mérito ou a posse dos atributos de qualificação profissional.
Algumas palavras se fazem necessárias a respeito do papel do Poder Judiciário, por vezes incompreendido por uma parcela das pessoas, que é o de aferir a compatibilidade da legislação vigente atinente à matéria com os princípios constitucionais, e não o de regulamentá-la, que é papel do Poder Legislativo, se assim o entender cabível, a teor do artigo 22, XVI, da C.F., considerada ainda a participação do Executivo, no que tange à fiscalização do exercício das profissões, em conformidade com o disposto no artigo 21, XXIV, que prevê que compete à União “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”. Desta feita, não cabe ser atribuído responsabilidade ao Judiciário por eventuais desacertos no que tange à tal regulamentação, eis que não lhe deu causa e isso não lhe incumbe, pois suas atribuições consistem em solucionar o caso concreto que lhe é proposto, dentro das regras processuais conferidas pelo sistema e respeitadas as garantias constitucionais das partes dentro do processo. Portanto, ao juiz incumbe solucionar a lide que lhe foi proposta no âmbito do processo, eis que a ele não foi conferida a possibilidade do “non liquet”, razão pela qual é de rigor a solução do litígio, por mais tormentosa que seja a questão, e por maiores que sejam os ânimos e interesses envolvidos.
No que tange ao pedido de reparação dos danos morais coletivos causados pela conduta impugnada, tenho que, a despeito da conduta lesiva por parte da União à liberdade de expressão, não é de se acatar tal pedido. Isso decorre do fato de que, a despeito da eventual dor íntima e sofrimento verificado no âmbito individual por parte das pessoas que foram impedidas de exercer a profissão em virtude da não detenção do diploma de jornalista, ao longo dos anos, não considero ter sido caracterizado um dano moral coletivo indenizável, a ponto de a ré União Federal ser responsabilizada, uma vez o grau de desenvolvimento de um país e o aperfeiçoamento das instituições democráticas é atingido através de longo processo histórico em que se verificam os avanços e os recuos, não sendo cabível imputar-lhe a responsabilidade por todos os equívocos do passado. Tal posicionamento importaria o mesmo que sancionar a conduta de uma criança ou de uma pessoa que não detém o entendimento pleno das conseqüências de seus atos, eis que a tal pessoa não é dado vislumbrar todos os aspectos de uma questão naquele momento, ainda que no futuro possa vir a ter tal entendimento, pois se trata de uma questão de amadurecimento, no caso, da sociedade e do processo histórico por ela vivenciado.
Não obstante, a partir de então, é de rigor que a União dê cumprimento à presente decisão, pois não lhe cumpre invocar desconhecimento sobre o teor do “decisum”, razão pela qual é de rigor acatar o pedido de condenação ao pagamento de multa para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas através da concessão do pedido.
Assim, o pedido não merece atendimento em sua integralidade, em virtude do exposto acima e também em razão do fato de que a declaração de nulidade de todos os autos de infração já lavrados, inclusive os já findos, importaria em conferir efeitos retroativos ao provimento jurisdicional, o que me parece desaconselhável. Desta feita, é de rigor anular tão-somente os autos de infração atualmente em fase de execução em razão do exercício da profissão de jornalista por pessoas sem o diploma específico de jornalista, eis que o processamento dos mesmos colide com o presente “decisum”.
Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO formulado na inicial para:
a) determinar que a ré União Federal, em todo o país, não mais exija o diploma de curso superior em Jornalismo para o registro no Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, informando aos interessados a desnecessidade de apresentação de tal diploma para tanto, bem assim que não mais execute fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau universitário de Jornalismo, assim como deixe de exarar os autos de infração correspondentes;
b) declarar a nulidade de todos os autos de infração pendentes de execução lavrados por Auditores-Fiscais do Trabalho contra indivíduos em razão da prática do jornalismo sem o correspondente diploma;
c) que sejam remetidos ofícios aos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, de forma a que se aprecie a pertinência de trancamento de eventuais inquéritos policiais ou ações penais em trâmite, tendo por objeto a apuração de prática de delito de exercício ilegal da profissão de jornalista;
d) fixar multa de RS$ 10.000,00 (dez mil reais), a ser revertida em favor do Fundo Federal de Direitos Difusos, nos termos dos arts. 11 e 13 da Lei nº 7347/85, para cada auto de infração lavrado em descumprimento das obrigações impostas neste decisum.
Custas e demais despesas “ex lege”.
Sem condenação em honorários advocatícios, tendo em vista que, no presente caso, não está o Ministério Público Federal a exercer a advocacia, mas sim o “munus” público decorrente de seu papel institucional, bem assim, à vista da sucumbência recíproca.
Oficie-se nos autos dos Agravos de Instrumento noticiados no presente, comunicando-se a prolação da presente sentença.
Oficie-se ao Ministério do Trabalho, a fim de que seja dada ciência a todas as Delegacias do Trabalho sob a sua jurisdição, para cumprimento imediato dos itens a), b) e d) do presente dispositivo.
Oficie-se aos Tribunais de Justiça dos Estados, nos termos do item c) do dispositivo.
Decisão sujeita ao reexame necessário. Oportunamente, remetam-se os autos ao E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
P. R. I.
São Paulo, 18 de Dezembro de 2002.
CARLA ABRANTKOSKI RISTER
JUÍZA FEDERAL SUBSTITUTA
na titularidade plena da 16ª Vara
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2003.
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