Na livraria – episódio II

?Posso ajudar??. Lá estava o funcionário solícito e bem treinado.

?Obrigado, obrigado. Mas só quero dar uma olhadinha nas novidades?. Respondo, despistando e descartando a invasão. De verdade, só quero estar entre os livros, os lápis, os papéis, os objetos todos que fazem com que uma livraria seja especificamente diversa de outra loja qualquer. O silêncio e as cores. Talvez as duas qualidades mais apreciáveis nessa espécie de ambiente.

Após a semana de contínuo vozerio, do enfrentamento com pessoas e seus problemas de relacionamento e sobrevivência, depois das rotineiras tarefas do emprego, e da preocupação com as dívidas em atraso e acumuladas, é bom deixar-se estar entre a leitura e uma possível, diferente e outra existência. Talvez seja essa vida o que mais o atrai nos livros. A possibilidade de infinitas vidas vicárias, de histórias sem fim, de babélicas bibliotecas a explorar, de eus e outros tão diversos para conhecer e analisar.

?Pois não! Em que posso ajudar??. Outro funcionário, mais magro, mais desconfiado. ?Em nada. Obrigado?. A resposta sai rápida e um tanto ríspida. Caminho lentamente entre as gôndolas e prateleiras. Nomes e títulos desfilam sua variedade. Ah, a certeza de minha absoluta precariedade de tempo para ler todos. Embora sorrio internamente e satisfeito consigo atualmente descartar um maior número de volumes, porque já os li. Essa progressão, verificável ano após ano, ajuda a superar minimamente a sensação de impotência diante do tempo.

?O senhor procura algum livro em especial??. Desta vez é uma mulher miúda, baixinha, com óculos exageradamente grandes e de armação vermelha. Sinto-me o lobo invadido em sua floresta e disposto a devorar aquela Oclinhos Vermelhos. Seria tão raro aparecer na livraria uma pessoa cujo único interesse seja ficar à vontade entre livros? Reconheço que a missão de todos os funcionários de cada livraria é vender livros. E eu não pareço disposto a comprar nenhum. Sorrio amarelo, disfarço a rubra indignação que me sobe no peito, uso uma fala macia como a bandeira branca do armistício, olho discretamente para a vasta extensão vermelha e refratária à minha frente e respondo com voz acinzentada: ?Não. Especial para mim são todos. Como já li a maior parte, estou só verificando as novidades?. Os olhos azuis-turquesa da funcionária me atingem com a força violeta do espanto! Como? Eu já havia lido a maior parte? Que ser estranho era eu! Talvez pertencente à galáxia dos verdes entes aprisionados em salas escuras, debruçados dias e noites sobre páginas insalubres. Minha palidez seria decorrente da perda progressiva do senso e do esverdeado extra-terráqueo. Era como se eu tivesse emprestado a luneta mágica de Joaquim Manuel de Macedo e conseguisse invadir o pensamento daquela pequena figura. ?Fique à vontade!?. Rapidamente, de um jato, lançou o espanto nas palavras decoradas, antes que a surpresa a consumisse numa espiral de fogo. Em nenhum treinamento a haviam prevenido a respeito da existência de seres tão bizarros! Ele sente descer dos céus uma auréola branca que se reflete nas lentes da vendedora. Em sinal de respeito, ela inclina a cabeça e desaparece.

Novamente sozinho, dá-se ao prazer da busca solitária, os dedos musicalizando os volumes. Às vezes, notas dissonantes de volumes comprovadamente secundários. Outras, os acordes fortes de um clássico. De nota em nota, vai compondo a melodia daquela visita. Dos livros passa às revistas de arte, aos novos dicionários, aos CDs com gravações de poetas e prosadores, aos filmes baseados em obras literárias. Somente pára ao manusear marcadores com frases de escritores e imagens de livros.

Terminada a vistoria, volta a olhar o início do percurso. Pode divisar o mapa da trajetória pelos exemplares e volumes destacados. Como instrumentista competente, cada objeto desejado ganhara relevo ante seus vizinhos. Seu olhar especializado consegue vê-los todos. Um leve e sutil toque de dedos fez com que os volumes ganhassem destaque minimamente, criando ondulações mais ou menos evidentes. O olhar aciona, neste momento, a música dos livros que quer ler. Ainda são muitos! Ainda são tantos!

Numa pausa imprevista, dá-se conta de que, sem os comprar, como poderá ter acesso a novas descobertas? Para esta segunda etapa, grita do fundo da lembrança o vermelho das dívidas. Suspira e geme: por que um leitor contumaz como ele não pode ter crédito irrestrito em uma livraria? Talvez propusesse trocar parte do que aprendera nos livros com funcionários, o gerente, o dono da livraria? Eles pagariam com livros. Reconhece a dimensão do sonho irrealizável e o abandona.

Escolhe um marcador de páginas com uma frase de Edouard Rouveyre: ?Talvez o maior mérito dos livros decorra de sempre haverem atraído a afeição dos maiores homens de todas as épocas?. Revive a sensação da branca auréola. Compra o marcador e sai da livraria, ouvindo às costas a melodia dos livros a dizer-lhe até breve. 

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