Foto: Arquivo/O Estado
Logo está a postos na livraria, disposta a ser mais solícita do que de costume e mais paciente com os habituais equívocos da clientela.

Vai para o trabalho com a sensação de que aquele será um dia de sorte. Nem poderia ser diferente: após seis anos de namoro, Ricardo e ela haviam decidido, no dia anterior, que o casamento acontecerá no final do ano. Onze meses mais e, tem certeza, iniciará nova vida, mais feliz. Ricardo é mesmo sua alma gêmea, agora sabe disso.

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A felicidade de ontem parece prolongar-se na manhã de hoje: brisa, sol e esperança. Além disso, dera uma caprichada no visual: unhas, cabelo, a sandália nova, batom nos lábios, tudo para externar o que lhe vai no coração. Sente que o dia só pode ?nascer feliz?. Nem o ônibus lotado, nem a deseducação dos transeuntes na rua, nem a topada que a sandália dá no calçamento irregular compromete sua alegria.

Chega cedo, com tempo para contar à amiga a grande novidade e receber o carinho do abraço. Mesmo o enfezado Orlando, o da contabilidade, esboça um sorriso e a cumprimenta. Logo está a postos na livraria, disposta a ser mais solícita do que de costume, mais incisiva nas ofertas e mais paciente com os habituais equívocos da clientela.

Aliás, a primeira mãe que entra com a lista de materiais para a escola na mão confunde livro didático com livro de leitura, reclama do preço, diz que com tão poucas páginas e palavras a tal leitura sai cara demais. Pede desconto, troca vários artigos por outros mais baratos e, ainda por cima, quer saber qual é o brinde que a livraria oferece pelo montante da compra. A moça casadoira anda de um lado para o outro, desce mercadorias, sobe as desprezadas para a prateleira mais alta, fala com a gerente – duas, três, muitas vezes. Fica a imaginar: ?quando eu for comprar material para meu filho, não vou ser como essa cliente aí. Ah, não vou mesmo!?. Sorri, atenciosa. Respira fundo quando tudo termina. Apesar do contratempo, o dia ainda promete ser feliz.

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O senhor de jeans e camisa impecável (?quando casarmos, vou fazer de tudo para Ricardo andar elegante assim; vou fazer ele abandonar as camisetas de malha, principalmente aquela Puma que ele não tira do corpo!?) lhe pede o lançamento recente de um tal Jobim. Imediatamente ela baixa no computador todos os autores de livros com esse sobrenome: Anchyses, Nelson,. Solange, Teresa… Mas não são recentes! Pergunta: como é mesmo o primeiro nome? Tom, responde o cavalheiro. Ela volta a ler na tela. ?Não temos nenhum. Sinto muito?. ?Você está procurando no catálogo dos livros? Mas Tom Jobim é compositor de músicas!. Eu quero a caixa de CDs dele!?

Sente a pele do rosto queimar. O coração bate forte. Vê o emprego a perigo e o enxoval a desaparecer no ar. ?Desculpe, desculpe. É que estou um tanto distraída. Vou me casar e estou nas nuvens. Temos, temos, sim o que o senhor procura?. Na tela, aparecera a indicação do produto. ?Vai levar??. O pior é descobrir no rosto do homem um olhar de deboche, de zombaria. Sente mais aguda ainda a dificuldade de acompanhar a variedade de mercadorias que a livraria passou a vender nos últimos meses. Se ainda fossem aqueles artistas que aparecem na TV ou que às vezes ouve nas rádios…

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Logo depois, ela descobre entre as estantes um rapaz meio intranqüilo, com o olhar a disparar miradas para várias direções, com movimentos rápidos e sem objetivo. ?Posso ajudar??, pergunta. ?Pode, sim. Procuro um livro para dar de presente para minha namorada?. ?Que tal Roberto Carlos em detalhes? Acabou de chegar e está vendendo bastante!?, arrisca a vendedora romântica. ?E você acha que minha namorada se interessa por esse tipo de livro??, veio a resposta indignada. ?Procuro por Travessuras da menina má ou Memória de minhas putas tristes. Os olhos da moça fitam o vazio. Qual seria sua reação se Ricardo lhe trouxesse um desses volumes? Sai em busca dos exemplares, pensando no enxoval, em Ricardo, na diversidade dos amores… O rapaz levou o livro de Vargas Llosa (?menos mal?, pensou ela) e escolheu para ele Histórias de além-túmulo. ?Adoro mortos-vivos e muito sangue?, sentiu-se na obrigação de justificar ao sair.

A vendedora olha o relógio: nem são onze horas e seu trabalho está muito longe de receber a luz da felicidade. No intervalo do almoço, corre para o jornal sobre a mesa do refeitório. Lá está em seu horóscopo: ?Sensação do dia é de sensualidade e de amor próprio, satisfação com tudo que você já conseguiu alcançar e realizar até agora. O lado profissional seguirá bem durante todo o dia. Apareça bela e atraente, cuide do visual. Vênus saindo de Aquário sinaliza urgência no amor?. Fecha o jornal, sorri e pensa: ?Eu tinha certeza de que hoje era meu dia!?. Senta-se à mesa, põe-se a comer o pedaço da pizza de ontem, acompanhado de croquete de carne. As cenas da noite anterior repassam em sua memória. A linha de um sorriso desenha-se na face e ela promete: ?Vou ser feliz sempre, como hoje!?.

Do interior da livraria, chegam os sons do trabalho que a chamam. As três Parcas, divindades gregas que fiam a vida dos humanos, também continuam seu trabalho. Com que fio está sendo tecida sua sorte?