A decisão do primeiro-ministro David Cameron de deixar o Reino Unido de fora da iniciativa conjunta da União Europeia (UE) para tentar pôr fim à crise, enfraquece o país e o distancia do restante de seus parceiros no bloco. A avaliação é de Luiz Alberto Moniz Bandeira, historiador, cientista político e cônsul honorário do Brasil em Heidelberg, Alemanha. “O Reino Unido não participará das decisões da zona do euro. Está isolado na Europa”, afirma. Ele usa um ditado para resumir a situação britânica depois do veto: “Quem não está na mesa, está no menu para ser comido”.

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Na avaliação de Moniz Bandeira, o posicionamento do chefe de governo britânico atende aos interesses da City londrina e corresponde à visão de setores influentes no Partido Conservador, financiados pelos bancos ingleses, que não querem a regulamentação do sistema financeiro. Esses setores “não admitem que suas operações financeiras manipuladas e especulativas sejam fiscalizadas”, explicou o historiador em entrevista concedida por e-mail à Agência Estado.

Segundo ele, a postura britânica deriva, em grande parte, do fato de o país ter deixado de ser uma potência manufatureira. “É, sobretudo, o sistema financeiro que sustenta a sua economia”, afirma Moniz Bandeira, de 75 anos.

Na entrevista à AE, ele fez duras críticas à atuação da sistema financeiro na crise da zona do euro e advertiu ainda que uma eventual desintegração do bloco poderia provocar o caos e agravar ainda mais a crise sistêmica, com consequências desastrosas e imprevisíveis para toda a economia mundial. Segue a íntegra da entrevista:

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Agência Estado – A decisão de David Cameron de deixar o Reino Unido de fora da iniciativa conjunta da UE para tentar pôr fim a uma crise que se desenrola já há quase dois anos na zona do euro de certa forma distancia o país do restante do bloco. O primeiro-ministro alegou que a decisão atende aos interesses econômicos britânicos. Mas ela atende aos interesses do Estado britânico no atual cenário europeu?

Luiz Alberto Moniz Bandeira – A decisão do primeiro-ministro David Cameron atende aos interesses da City de Londres e corresponde à visão de fortes áreas do Partido Conservador, financiadas pelos bancos ingleses, que não querem a regulamentação do sistema financeiro, não admitem que suas operações financeiras manipuladas e especulativas sejam fiscalizadas. Todo o sistema financeiro, inclusive na UE, faz essas transações. Por isso, a crise do euro continua após o acordo dos 26 países, exceto a Inglaterra. As agências de avaliação dizem que as medidas são insuficientes. Claro, outros passos devem ser dados, além da união fiscal. Mas a reação do mercado decorre, parece-me, da rejeição à regulamentação. As agências de avaliação de risco são controladas e associadas aos bancos de investimento dos Estados Unidos, cuja situação é tão ou mais grave do que a da UE.

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AE – Quais desdobramentos a posição de Cameron pode ter no futuro?

Moniz Bandeira – Como disse, ele defende os interesses da City de Londres e do mercado financeiro. Possivelmente, a Inglaterra continuará na UE apesar da oposição de grande parte da população inglesa e do Partido Conservador, cujo apoio aumentou depois da atitude de Cameron de não assinar o acordo de Bruxelas. O Reino Unido, porém, destinou cerca de 54% de suas exportações para o mercado da UE em 2010, mesmo estando fora da zona do euro, da moeda única. Então, é possível que a regulamentação afete suas operações obscuras no mercado financeiro da UE – que também as fazia, aliás, e continua a fazer.

AE– Pode-se dizer que a Grã-Bretanha ingressou em duas guerras mundiais tendo, entre seus objetivos, fazer frente à ascensão da Alemanha. Olhando a partir desta perspectiva, como o senhor qualificaria a posição de Cameron?

Moniz Bandeira – Sim, a Inglaterra e os Estados Unidos, em larga medida, foram às duas guerras com o objetivo de deter a Alemanha, que desde o fim do século 19 se tornara a segunda potência industrial de mercado e, não tendo espaço econômico para a expansão de suas forças produtivas, necessitava abrir novos mercados. A Inglaterra deixou de ser uma potência manufatureira. É, sobretudo, o sistema financeiro que sustenta a sua economia.

AE– Há o risco de que o Reino Unido comece a ser isolado pelos demais membros da União Europeia?

Moniz Bandeira – Na Inglaterra, há um ditado que diz ‘quem não está na mesa, está no menu para ser comido’, contou-me o professor Paulo Farias da Universidade de Birmingham.

AE– A recusa britânica em aderir ao pacto de estabilidade da UE ocorre em um momento no qual a França encontra-se numa situação econômica e fiscal delicada. De que forma a decisão de Cameron afeta o equilíbrio de poder entre Alemanha, França e Reino Unido?

Moniz Bandeira– O Reino Unido também atravessa grave crise fiscal. A dívida do setor público até setembro de 2011, alcançou £ 966,8 bilhões, o equivalente a 62,6% do PIB, que atualmente está abaixo do PIB do Brasil. E com o setor financeiro sob intervenção, como o Royal Bank of Scotland e o Lloyds, a atual dívida pública é de £ 2,266 trilhões, o equivalente a 148% do PIB. Diante disso, a decisão de Cameron só enfraquece o Reino Unido, que não participará das decisões da zona do euro. Ele está isolado na Europa.

AE– Os membros da UE necessariamente terão de caminhar para a perda parcial de mais soberania em favor das autoridades do bloco? Como a opinião dos eleitores ficaria representada em um cenário como esse?

Moniz Bandeira– Obviamente deve ocorrer certo grau de perda da soberania. Mas onde está a representação dos eleitores diante do mercado financeiro, uma entidade abstrata, que não foi eleita, que ninguém conhece e representa principalmente os interesses de Wall Street, da City e outros mais? Os governos da Grécia e da Itália foram virtualmente destituídos e substituídos por homens ligados ao Lehman Brothers: os Estados nacionais já perderam muita soberania como reféns do sistema financeiro internacional e têm de impor sacrifícios do bem-estar social, para poupar dinheiro e salvar os bancos, sobretudo depois das transações obscuras que fizeram. Mas uma eventual desintegração da zona do euro poderia provocar o caos e agravar ainda mais a crise sistêmica, com consequências desastrosas e imprevisíveis para toda a economia mundial, devido à promiscuidade dos bancos alemães, franceses e, também, norte-americanos com os Estados nacionais e outros bancos, mediante dívidas cruzadas. Se a Grécia, Portugal e/ou Espanha deixassem de pagar aos bancos, cresceria como bola de neve. Os números do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) mostravam, em 2010, que os bancos portugueses deviam US$ 86 bilhões aos bancos espanhóis, que, por sua vez, deviam US$ 238 bilhões a instituições alemãs, US$ 200 bilhões aos bancos franceses e cerca de US$ 200 bilhões aos bancos norte-americanos. Atualmente, devido às taxas de juros que são cobradas, as dívidas devem ser bem maiores. A concessão de cerca de US$ 1 trilhão à Grécia, prometida pela União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, não tinha o objetivo de ajudá-la, mas sim salvar os bancos alemães, franceses e os investidores norte-americanos, que proviam mais de US$ 500 bilhões de empréstimos de curto prazo aos bancos europeus, sobretudo aos bancos das nações mais débeis, para financiar diariamente suas operações. Esse endividamento dos Estados com os bancos e dos bancos com outros bancos evidencia que, não obstante os fatores nacionais, domésticos, como irresponsabilidade fiscal, gastos desmedidos e corrupção, a crise que eclodiu na Grécia e se expande a outros países da zona do euro também é, em outra dimensão, uma consequência direta da crise dos Estados Unidos, cuja dívida pública, em dezembro de 2011, já ultrapassa US$ 15 trilhões, ou cerca de 100% do PIB, e deve crescer ainda mais.