O texto a seguir, ?Se tanto se semeia, porque tão pouco??, do professor Altair Pivovar, UFPR, busca estabelecer um diálogo com o professor sobre a problemática da Leitura na escola.

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Qual a sua reação diante das freqüentes declarações de que nossos alunos têm saído da escola sem saber ler e interpretar?

– Concorda e lamenta.

– Discorda, porque conhece um caso que refuta a existência do problema.

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– Sente uma onda indisfarçável de arrepios, já que esses alunos passam mais de dez anos nos bancos escolares. Aliás, você sabe por que as pessoas ficam arrepiadas?

Os motivos mais comuns, segundo a revista Superinteressante (ano 3, n.º 9), são o frio e o medo. ?A primeira sensação, transmitida pelas terminações nervosas da pele, caracteriza-se por contrações musculares em todo o corpo: os dentes batem e os pêlos ficam eriçados, aumentando a quantidade de ar entre eles. O objetivo é reter o calor. Já como reflexo a estímulos de medo, o arrepio é uma reação humana mais complexa, herança dos tempos primitivos: quando um animal se sente ameaçado, eriça os pêlos, aumentando de tamanho de modo a parecer ao seu oponente um inimigo mais poderoso do que é. Na iminência de ser atacado, o organismo também responde, entre outras maneiras, com uma melhora na acuidade visual, aceleração das batidas cardíacas e aumento do fluxo de sangue nos músculos para um fornecimento extra de oxigênio. O resultado é que o sangue que deixou de circular nos capilares da pele cessa de transferir o calor do corpo para a superfície; ocorre então o arrepio?.

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Para os que ainda estão se perguntando o que essa explicação tem a ver com o tema anunciado na abertura deste texto, justifico: entrevi nas reações acima descritas a perspectiva de um bom início de conversa sobre leitura. Tais reações são decorrentes de um recurso natural de que dispomos para determinar nossa posição relativa num dado ambiente, reconhecendo, nas relações que os elementos constitutivos desse ambiente estabelecem entre si, os indícios de qual deve ser a melhor forma de nos comportarmos, ou seja, como devemos interpretar um determinado contexto e como podemos instruir a melhor reação com base nessa interpretação.

Esse modo de ver a leitura encontra apoio nas palavras de Anísio Teixeira no prefácio da obra Educação e Vida, de Dewey (Ed. Melhoramentos, 1954):

?No mundo físico, (…) os corpos não fazem questão de conservar o seu caráter. O ferro não se esforça por continuar ferro: se entra em contato com a água, breve se transforma em bi-óxido de ferro.

No plano da vida, já há distintamente preferência, seleção e adaptação, buscando o corpo conservar seu ?organismo?. As experiências nesse nível vegetal e animal são psico-físicas. Os corpos agem e reagem, para a conquista de um equilíbrio de adaptação.

No plano humano esse agir e reagir ganha sua mais larga amplitude, chegando não só à escolha, à preferência, à seleção, possíveis no plano puramente biológico, como ainda à reflexão, ao conhecimento e à reconstrução da experiência?.

Tal perspectiva abre um viés que, de pronto, nos coloca diante do fato de que, sendo a leitura um impulso vital, se os alunos estão saindo da escola sem saber ler, forçosamente devemos concluir que não estaria só deixando de haver aprendizagem: estaria ocorrendo a atrofia de um recurso inato de que o aluno dispunha quando entrou na escola. Por isso, convém examinar com mais cuidado as declarações de que os jovens não sabem ler, reconhecendo a falsa premissa em que se fundam e o raciocínio falacioso a que ela induz. Tece-se, a partir daí, o véu que nos dificulta enxergar com mais clareza a trama de problemas que estão na raiz das dificuldades que a escola tem encontrado para tratar da leitura.

A falsa premissa: a leitura se restringe à interpretação de textos escritos. O raciocínio falacioso: quem não sabe interpretar a escrita não sabe ler (nada!). Essa conclusão, na simplicidade com que vem formulada, soa sem maiores implicações, mas se levarmos em conta que é a partir do nosso conceito de leitura e texto que vamos elaborar atividades de ensino, restringindo-as aos limites das concepções que as norteiam, essa assunção pode estar nos desviando dos verdadeiros problemas com a leitura. Nesse desvio, podemos estar confundindo e no limite sufocando a predisposição natural para a leitura, deixando de considerar um potencial já instalado, por conta de ensinar algo novo a escrita , que não teria (por essa via de entendimento) nenhum correlato na experiência dos alunos, em termos de modos de processamento da interpretação, de dar sentido aos objetos do mundo físico. Nesse sentido, há que se trazer à discussão uma segunda (falsa) premissa: a de que a escola ?ensina? a ler. A escola, de fato, ensina a ler, ou seu papel deveria ser o de ampliar a propensão natural à leitura para dar conta de linguagens que, pela pouca freqüência com que ocorrem no dia a dia das pessoas, são-lhes mais avessas? Lembremo-nos de que as respostas a essas indagações não são inofensivas declarações teóricas: revelam a concepção que orienta o tratamento do assunto na prática.

Se acreditarmos que a leitura se restringe à interpretação de textos escritos, vamos restringir nosso foco exclusivamente sobre esse material, esquecendo-nos de que ele é sempre parte de um conjunto maior de elementos que singularizam um dado momento da realidade. O primeiro passo, então, é demarcar os devidos limites: quando afirmamos que nossos alunos não sabem ler, estamos significando que não sabem ler uma especificidade assumida pelo texto e materializada pela escrita. Isso implica, de saída, reconhecermos que a leitura não é um procedimento que se restringe exclusivamente ao material escrito, mas que abarca a tomada de posição num ambiente concreto do qual um texto escrito é/pode ser um dos elementos constituintes, ainda que, em certos casos, o principal. Num sentido mais amplo, ler é buscar referenciais para definir uma posição no confronto de intenções que se dá a cada momento, determinando a função sígnica de cada elemento presente nas situações com que vamos nos deparando. É no processo da necessidade de compreensão da situação como um todo que desvendamos os modos específicos de organização dos textos verbais escritos presentes nessa situação.

Partindo disso, não poderíamos conceituar a leitura, operacionalmente, como uma reação? Assim, ler seria uma questão de sobrevivência, uma ação durante a qual todos os nossos sentidos são agenciados para nos permitir escolher a melhor forma de garantir a nossa coerência com a realidade circunstante. A leitura de um texto escrito não começa no título ou no primeiro parágrafo: começa fora, impulsionada pelo que motivou uma reação e orientada pela intenção que essa motivação cria no leitor. Um texto, portanto, não pode ser interpretado em si mesmo, mas no resultado projetado por sua leitura.

Traçadas essas bases de reflexão, podemos dirigir nossa atenção para o trabalho com a leitura tal como tem sido levado a efeito na escola, destacando algumas indagações: esse movimento natural para a leitura tem encontrado oportunidade de se manifestar na escola, no enfrentamento de situações-texto e elaboração dos respectivos textos-resposta cada vez mais complexos (o termo ?complexo? é tomado aqui como aquilo que até então é pouco usual no cotidiano dos alunos), até chegar na escrita? Ou se começa diretamente por esta, como realidade em si mesma, negligenciando-se a interferência dos elementos externos na atribuição de sentidos às palavras, frases etc., de modo a convertê-las em enunciados?

As condições materiais postas para este caderno não permitem nos estendermos sobre a questão neste momento, de modo que vamos ficando por aqui, o que não significa que este texto vai ficar por isso mesmo a finalidade desta seção, não esqueçamos, é abrir (e manter) um espaço de diálogo.

Assim, para as próximas edições, que tal ir pensando se não seria um bom caminho refletir sobre uma possível diferença entre dizer e expressar, e, admitindo-se tal diferença, aventar que impactos ela teria nos modos de encaminhamento do trabalho escolar com a leitura? Pensarmos, a partir dessa diferença, se em nossas aulas os alunos são obrigados a dizer ou estimulados a expressar… Pode estar aí um profícuo caminho para definirmos metodologias de trabalho com a leitura em sala de aula.

E já que a intenção é descortinar novos ângulos pelos quais a leitura possa ser abordada, para, longe de ?explicar? tema tão complexo, fermentar a reflexão, você já se perguntou por que a mente ignora quem faz cócegas em si mesmo? Não haveria nessa explicação algo que nos ajudasse a refletir sobre o ato de ler?