Sempre-viva

Em todo o bairro não havia um jardim como o de sua casa. Misturavam-se em desordem as cores, assim como se desordenavam tamanhos, espessuras e tons de verde. Num canto, comprimiam-se as espadas-de-são-jorge, num verde sarapintado de brancos e cremes, lembrando aquela linda e invejada camisa de seda de tia Joana. Ao lado, sorridentes, as margaridas abriam-se em redondas dentaduras da mais preciosa brancura num alegre canteiro. Quando o vento as balançava, pareciam cumprimentar os altivos girassóis, grávidos de amarelo e de sementes, tão compenetrados em sua função diária de vigiar e perseguir o sol.

Precisava, lembrou, pedir à mãe que lhe explicasse melhor por-que os girassóis daquele quadro, exposto no escritório do pai, eram ao mesmo tempo tão parecidos e tão diferentes daqueles de seu jardim. Gostava quando, secos, ela podia debulhar a flor e ver saltar das órbitas regulares os pequenos olhos recheados, que primo Artur gostava de comer torrados.Toda vez que se dedicava a recolher as sementes, espalhadas pelas pedras da calçada, Boneca não saía de seu lado, olhos atentos na cabeça apoiada sobre as patas dianteiras.

No jardim, o lugar preferido pela cachorra era a fileira de azaléias que acompanhava o muro, perfumado pela floração dos jasmins-do-cabo. Na época em que floresciam, Boneca metia-se entre os galhos rasteiros e vestia-se de rosa e branco. Assim enfeitada, esperava que a primavera dissesse sua alegria de acomodar-se entre a terra e a sombra colorida.

Em frente às azaléias, espalhavam-se as hortênsias. Em novelos generosos e roliços, cobriam os caules, escondendo as tímidas folhas verdes e exibindo sua coloração celeste. A menina gostava da opulenta simplicidade das hortênsias: velhas senhoras, cheias de curvas, aprumadas e solidárias.

Rosas, begônias, crisântemos, beijos-de-frade e bromélias, pequenas dálias de vermelho brilhante enfeitavam prazerosamente a terra e transformavam o espaço na mais viva paleta da natureza.

Entre tanta exuberância, o lugar preferido da menina não era coberto de flores, mas de folhas. A sombra da acácia imperial cobria a rede multicolorida de algodão resistente que, no calor das tardes sem compromisso, velava as leituras proveitosas e o sono relaxante.

O embalo da rede ritmava a leitura das aventuras da turma do Gordo, dos versos de Cecília, o deleite das ilustrações da Ângela, e a figuração metafórica dos reis, da moça e do labirinto. Entre os fios do tecido da rede passaram os risos incontidos, a surpresa e o suspense, a voz recitativa e os anseios de versos e personagens. Entre o sonho e o sono, o tempo escorria fagueiro.

Sim, a palavra é antiga, ?as tardes fagueiras? pertencem a um poema também antigo, mas as tardes na rede entre livros e leituras eram realmente fagueiras. Ou seriam fogueiras? Talvez fugazes. Festivas.

O silêncio dos homens nessas tardes era preenchido pelas vozes da natureza: os pássaros, o vento musicando as folhas, um latido ao longe, o ressonar de Boneca, insetos intrometidos com asas rumorejantes.

Hoje, a mulher relembra o menino Proust perdido voluntariamente na natureza e encontrando-se nos livros, como descreve o romancista no relato autobiográfico de Sobre a leitura. E o sentimento é de irmandade.

Entre o relógio insano, a agenda grávida de compromissos e a busca ansiosa de coisas e sentimentos, sempre localizados num amanhã, ela revê a menina enredada na leitura e na beleza, e lamenta. Vive a saudade do jardim que desapareceu, do tempo e da paz devorados pela implacável agenda adulta, da rede de leituras destecida, do riso e do medo experimentados na alegre confraria de personagens e leitora, agora camuflados pela maturidade ranzinza. Carinhosamente envolve a imagem da menina que lê sob a árvore protetora em tecidos perfumados, e a guarda num recanto reservado e secreto da memória.

Toda vez que a brutalidade do real a ameaça, ela abre os panos sedosos e aromáticos e a menina, sem-previva, renasce na terra do jardim mais lindo do bairro.

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