Sem comida ou trabalho, e a rua como moradia

Depois de ir e vir durante muito tempo, encontrou a máquina, mantida com a ajuda de pessoas que a conhecem após tanto tempo na rua. Mesmo com pouco tempo de estudo, ela escreve poesias em um caderninho de anotações, datilografa na máquina, monta pequenos livrinhos com papel sulfite e os vende a R$ 3,50 nas ruas do centro de Curitiba.

Este é um dos exemplos dos seres humanos que encontramos todos os dias vagando pelas ruas da capital paranaense. São nas calçadas e no asfalto que dormem, se alimentam, conseguem sustento, vivem. Apesar de iniciativas como essa, que podem ser valorizadas perante o resto da sociedade, os andarilhos possuem histórias tristes, permeadas por abandono, violência e consumo de álcool e drogas.

?Minha mãe morreu no parto e meu pai me abandonou. Desde então, estou nas ruas. Não tenho nenhum tipo de contato com a minha família, nem sei como e onde estão. Fui criada com a piazada na rua e tenho que sobreviver?, afirma I.C.M. Ela cursou apenas a 1.ª série do hoje chamado Ensino Fundamental. Aprendeu a ler e a escrever da melhor maneira que pôde enquanto estava na escola. Desempenho que rende elogios de professores atuantes no campus da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, perto de onde I.C.M. normalmente fica, na Rua XV de Novembro. ?Queria continuar estudando, uma oportunidade que não tive. Até mesmo aprender outras línguas. Eu aprendo fácil. Os professores dizem que escrevo melhor do que muita gente que terminou a escola, que fez faculdade?, comenta.

I.C.M. sempre escreveu poesias, mas foi com a máquina de escrever que ela passou a se expressar mais e tentar uma forma de sustento por meio disso. O equipamento é um fiel escudeiro. Está sempre ao lado dela, misturado com suas roupas, cobertores e com a comida que consegue no dia. Os textos são batidos com a máquina apoiada nos paralelepípedos da calçada. ?O meu sonho é divulgar a minha poesia, publicar um livro. Quem sabe? As pessoas não compram a poesia que faço. Quase nunca. Mas vou continuar fazendo isso?, promete.

A maioria dos andarilhos é vítima do vício do álcool e das drogas. O envolvimento pode começar quando ainda possuem um lar e uma família, mas invariavelmente persegue quem adotou a rua como casa. Paulo Roberto Klein está nas ruas de Curitiba há seis anos. Foi abandonado pela família porque esta não suportava mais o vício dele. ?Cheguei a cometer pequenos roubos e fui perdendo o vínculo familiar. Hoje tenho muita saudade da minha casa, dos meus irmãos. Voltaria atrás e daria tudo para ter de novo a minha cama, a minha casa, alguém que cuidasse de mim?, conta.

Sempre que precisa, ele vai até a Central de Resgate da Fundação de Ação Social (FAS), no centro de Curitiba, para fugir do frio e ter atendimento médico. A reportagem de O Estado o encontrou neste local, onde já estava há uma semana, esperando as chuvas passarem. Klein está participando de dois grupos de tratamento para eliminar seus vícios. Mas a tentação nas ruas é grande. ?Se você pede um prato de comida, as pessoas negam. Se pedir um copo de pinga em um bar, elas pagam. Você pode oferecer um serviço, como cortar a grama, e as pessoas não aceitam porque você está sujo. Sempre dizem que não têm nada. Falta mais humanidade?, acredita.

A mesma reclamação é feita por I.C.M. ?Se procura emprego, ninguém te dá a vaga. Somos vistos como aberração para a sociedade. Ninguém nos respeita. Quando precisamos chamar uma ambulância, ela não vem quando a gente fala que é morador de rua. As pessoas fazem de conta que a gente não existe, dentro de seus carros de luxo?, declara. I.C.M. mora na rua com outros jovens, que a chamam de ?mãe da rua?. Ela sempre orienta os meninos e meninas, que compram drogas com os trocados que conseguem nos sinaleiros. ?Se juntassem o dinheiro que conseguem, em um ano poderiam comprar algo legal. Mas eles correm para comprar drogas. É um desperdício?, avalia I.C.M., que admite o cigarro como único vício.

Vítimas da violência nos grandes centros do País

W.I.L., de 17 anos, teve grande parte de seu corpo queimada enquanto dormia. Ele ficou vários meses internado em um hospital se recuperando das queimaduras. A equipe médica achava que ficaria com muitas seqüelas, o que parcialmente aconteceu. Ele anda com limitações e sente muitas dores. O garoto, encontrado pela reportagem de O Estado no centro de Curitiba, não quis revelar quais foram as circunstâncias do evento.

Assim como W.I.L., andarilhos e moradores de rua são vítimas de uma sociedade estruturalmente violenta e que condena as diferenças, segundo o sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR). ?Os moradores de rua são vistos como elimináveis. As pessoas os enxergam como perigosos, são transformados em algozes. Há uma mistura de ódio, medo e permissividade, que emerge contra os mais vulneráveis?, afirma.

Um caso conhecido de mortes de andarilhos aconteceu em agosto do ano passado, no centro de São Paulo. Sete pessoas morreram e oito ficaram feridas por golpes na cabeça. Para Bodê, esse crime é diferente do que normalmente acontece com essa parte da população. ?Elas foram assassinadas porque testemunharam eventos que não deveriam ver. As situações mais comuns são iguais à morte do índio pataxó em Brasília, há alguns anos, quando meninos de classe média alta atearam fogo nele pensando que era um mendigo dormindo em um ponto de ônibus?, comenta. De acordo com ele, a maior parte dos crimes ficou sem solução e isso alimenta um ciclo de impunidade.

Bodê ressalta que processos de inclusão social e mecanismos de punição aos que cometem atos criminosos são as alternativas para se mudar este quadro. Procuradas pela reportagem, a Polícia Militar e a Secretaria de Estado da Segurança Pública não quiseram expor suas posições sobre o assunto. (JC)

Doações podem ser feitas para programas sociais

Andarilhos sobrevivem nas ruas e gostam de ficar neste ambiente porque conseguem dinheiro de maneira fácil, pelo menos para comer e beber. A Prefeitura de Curitiba possui uma campanha orientando a população a não dar esmola. A simples atitude de abrir o vidro do carro e dar uma moedinha contribui para a permanência dessas pessoas nas ruas, segundo Eliana Oleski, coordenadora da Central de Resgate Social da Fundação de Ação Social (FAS).

De acordo com ela, as pessoas dão dinheiro dependendo da época do ano, como Natal. ?Estão mais sensíveis e, pela comoção, dão dinheiro neste período. Fora isso, diminui a quantidade, embora muita gente ainda faça isso. Cada esmola reforça essas pessoas a continuarem na rua?, explica.

Eliana ressalta que as pessoas que quiserem ajudar essa população pode doar o dinheiro para programas sociais da Prefeitura ou ainda às instituições beneficentes e organizações não governamentais. ?O dinheiro será melhor aplicado. Vai se criar uma oportunidade de tirá-los da rua?, esclarece. A orientação está expressa em placas espalhadas pela cidade, localizadas principalmente em cruzamentos onde há grande quantidade de pedintes. (JC)

Atendimento prestado pela FAZ

Homens e mulheres que perambulam pelas ruas de Curitiba não são necessariamente da cidade. Uma parcela considerável saiu de municípios da região metropolitana, do interior do Paraná e também de outros estados. Os dados são da Fundação de Ação Social (FAS), órgão da Prefeitura de Curitiba que atende essa população. Muitos andarilhos recebem passagem de volta à cidade de origem, embarcando somente após passar por atendimento médico. ?No caso da região metropolitana, eles são levados novamente, mas muitos não são aceitos. Eles voltam para Curitiba e, mesmo com restrições, Curitiba acaba dando conta da área metropolitana?, afirma Eliana Oleski, coordenadora da Central de Resgate Social da FAS.

Ela comenta que a população de rua em Curitiba sofreu neste ano um aumento considerável, que pode chegar a 30%. Os dados da FAS são de 2004 e apontam 375 homens e 62 mulheres cadastrados na central de resgate, que sempre vão e voltam. ?A maioria dessas pessoas não são mais aceitas pela família. Tivemos um caso que uma moça foi levada para casa pelo resgate, mas a mãe se recusou a recebê-la?, conta Eliana. Um pouco mais da metade dos cadastrados da FAS possuem referências familiares, com endereço conhecido pelo próprio andarilho.

Os moradores de rua buscam a Central de Resgate quando a situação começa a apertar ou são convencidos pelas equipes de educadores a ir até lá. Tomam banho, dormem, fazem refeições e recebem atendimento médico. Dos 375 homens cadastrados na FAS, 141 não quiseram ser encaminhados a projetos e parceiros da administração municipal para tratamento contra drogas e inclusão social. ?Estamos discutindo uma implementação de atendimento que busque alternativas para tirá-los definitivamente da rua. Precisamos de uma porta de entrada para programas de tratamento e também uma porta de saída para o ingresso no mercado de trabalho?, conclui Eliana.

A Central de Resgate possui equipes com 52 educadores, mais 25 profissionais deste porte que atuam nas regionais da FAS nos bairros. A capacidade de atendimento no albergue é de 120 pessoas simultaneamente, preenchida em sua totalidade principalmente em dias frios e chuvosos. Quando o tempo melhora, cai para 50 pessoas. A população pode usar o telefone 156 para requisitar o serviço do Resgate Social. (JC)

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