"Cara amiga Andressa,
Chegou outro dia na escola uma dessas professoras que fazem mestrado e entrevista professores para escrever a tese, a fim de conseguir o título. Como você já observou, em nossa escola vira e mexe tem alguém entregando questionários, aplicando testes. A justificativa é sempre o trabalho que precisam escrever, o relatório para entregar, a coleta de dados, etc. Esse pessoal diz que é para eles conhecerem melhor a realidade da escola, para obterem dados concretos e por aí vai.
Acho que você também já passou por isso, não?
Claro que ajudo quando posso: afinal, a gente não quer prejudicar um colega de profissão… Mas depois fico pensando. Será que um simples questionário, por maior que seja o número de questões, dá conta da tal realidade? Como explicar – até porque não perguntam sobre isso – as longas horas de correção, os finais de semana preparando material, o cansaço que se acumula ao longo do tempo? Como dizer o quanto nos atemoriza a agressividade crescente dos alunos? Como explicar o quanto de paciência e abdicação de nossa auto-estima temos que ter para lidar com a indisciplina, a falta de respeito, as palavras impróprias com que os alunos e, às vezes, seus pais nos tratam?
Alguém já perguntou como você faz para que o salário pague suas necessidades básicas? Alguma pergunta sobre a sensação de fracasso quando a aula não sai de acordo com o que previmos e preparamos? Você já encontrou nesses questionários alguma indagação sobre nossa dupla, e por vezes tripla, jornada de trabalho?
Fico com a impressão de que as perguntas mais importantes, aquelas que tocam profundamente nossa relação com o magistério, nunca são feitas. As que coloquei há pouco não são as únicas e nem sei se são tão relevantes. Foi uma forma de exemplificar.
Outro dia, a diretora da escola autorizou mais uma dessas pesquisas. Na hora do intervalo, fui abordada por um aluno de graduação que fazia um levantamento sobre o estado de leitura dos professores. E lá veio aquela lista de questões tratando de aspectos que já conhecemos de outros questionários, insistindo sobre os mesmos assuntos: o que você lê? o que leu até hoje? qual o primeiro livro lido de que lembra? qual o papel de seu professor na formação do gosto pela leitura? como você motiva os alunos a ler? E mais uma. E outra mais. Respondi as que me pareceram menos comprometedoras. As últimas respostas, então, foram chutadas…
Depois que o rapaz foi embora, ainda dei mais três aulas, e sentia alguma coisa me incomodando. No caminho de volta para casa e durante boa parte da noite fiquei pensando sobre as respostas e sobre as perguntas e fiz um balanço pessoal.
Cheguei à conclusão, com certo mal-estar, que minha pouca leitura de hoje tem a ver com duas razões básicas: a primeira é que até tenho tempo para ler, mas o cansaço me domina. Talvez um pouco de preguiça. Acho que perdi o entusiasmo pela leitura até de revistas, acredita? Sinto uma espécie de bloqueio: só consigo avançar para além da página 30 do livro se ele for muito, mas muito interessante. Algo como "Infância e adolescência: a prova dos nove" ou "Conheça seus alunos pela análise da letra manuscrita" ou "Psicanalisando a escola".
A segunda razão é a de que odeio leituras obrigatórias! O verbo obrigar deveria ser expulso do dicionário quando se trata da leitura. E olha que li muito quando era criança. Meus pais me incentivavam bastante: compravam livros e gibis. As professoras na escola não se entendiam entre elas: umas liam em voz alta, faziam brincadeiras e atividades, enquanto outras corriam atrás do programa, mandavam ler em casa e pediam resumo e teste. Nesse caso, como a leitura do livro era obrigatória, eu lia o início, os subtítulos e o fim. E fazia os testes assim, porque você tem uma certa lógica. Lendo o início e o fim, você mais ou menos sabia o que ia acontecer, então eu não precisava ler os livros inteiros.
Acho que foi a faculdade que me bloqueou. Era muito livro, muito xerox, muita prova. Fui perdendo o gosto. Só lia por obrigação. Hoje, tem dias que não agüento nem revistas: só a televisão. Conheço os livros da série que leciono. E faço meu trabalho com empolgação. E acabo contagiando os alunos. Mas ler livros fora da minha área, isso não faço, não. Prefiro ler Seleções, porque tem histórias verídicas, rápidas. E revistas, a Cláudia, por exemplo, com reportagens sobre alimentação, moda e decoração. Esse tipo de leitura, gosto de ler.
Conto tudo isso porque percebi que você ficou atenta às respostas que dei ao rapaz da pesquisa. Claro que eu não ia contar a ele o que estou escrevendo para você.
Lembra daquele curso que fizemos o ano passado? Para você ter idéia de como anda minha cabeça, não lembro do nome do professor e nem dos textos que lemos. Fugiu tudo. Acho que é o cansaço. Sei que tenho falhas de leitura. Penso que, na época em que vivemos, se faz de tudo para proporcionar o incentivo à leitura. Acredito que no papel de incentivo os pais e professores estão muito ausentes. É lógico que vou continuar buscando o aperfeiçoamento, sempre com muito esforço. Mas sei que sozinha pouco farei.
Todas essas contradições pessoais e profissionais não quis mostrar nas respostas da pesquisa. Para melhor me entender e para que você perceba minhas falhas e minha história é que te escrevo.
Quem sabe você não me mandará uma resposta contando mais de você enquanto leitora e professora?
De sua amiga,
Luciana "