Sempre que tomo um banhodemorado, o samba me vem à cabeça. Um sambinha gingado, com a sincopada bem sutil das valsinhas dos anos vinte, um tanto marcha, um tanto maxixe.

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Já inventei várias letras para ele, no começo ia mais ou menos assim: ?laia-lá-lalalaia-lalaialalaiada-la/lalaialaiá?, depois foi ganhando palavras esparsas, cópias baratas de letra de samba-enredo ecos do Premê lá de São Paulo e outras mandingas e macumbas. Onipresente: São Jorge.

Pensei primeiro em contar uma história de Jorge, um menino que nem imaginava o que o futuro lhe traria, moleque travesso da Capadócia. Inventei uma viagem bacana para o rapaz, marinheiro, pisar em terras inglesas de longe, a nação que mais lhe tem devoção. Não consegui imaginá-lo nas Cruzadas, por mais que se diga que ele esteve por lá. Seria a cara dele, imagina não conhecer a Terra Santa!

Mas admito a história do dragão. Como São Miguel Arcanjo, Jorge derrotou o monstro da maldade, imensamente maior que o dragão mitológico, ao dar a vida em defesa de seus irmãos. O próprio Cristo o disse: ?Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos? (Jo 15,13). Ao descrever a suprema coragem de Jorge, que ousa enfrentar o poderio do imperador Romano Diocleciano (que por força de lei obrigava todos a fazer sacrifícios em honra de Apolo e outros deuses), as lendas refletem a essência da mensagem cristã para a vida terrena: a identificação visível e indissociável entre o cristão e suas atitudes públicas e políticas. E se Cristo morreu por nossos pecados, após inúmeros e indizíveis sofrimentos, este jovem Jorge, no longínquo século IV, foi, a se crer por relatos bem mais tardios, talvez o ser humano mais torturado da história. Colocar sua fé no mesmíssimo patamar do anjo mais venerado de todos deve ter um sentido maior que o meramente mitológico.

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Tribuno Militar e membro do Conselho Militar do Império Romano com a idade de 23 anos, vindo de uma família com história no Exército, Jorge fora educado como cristão. Após o falecimento de sua mãe, de posse da herança que lhe cabia, distribuiu-a aos pobres e manteve apenas o necessário para chegar a Roma, onde o imperador conclamava reunião de urgência no Senado para legitimar a perseguição e o assassínio dos cristãos. Entrando lá, enfrentou a todos com a palavra, debatendo de igual para igual com os filósofos e mercadores, os políticos e o imperador. Inúmeras vezes obrigado a ajurar sua fé, inúmeras vezes manteve sua palavra. Foi lancetado, amarrado com uma imensa pedra sobre o peito, andou sobre chinelas ardentes, foi colocado sob uma roda que o esmagou sobre dezenas de lanças, terminou metido em uma fornalha de cal virgem e ainda vivo depois de muitos dias. Morreu bendizendo o Senhor, cantando suas maravilhas e refirmando sua dignidade humana. Não se deixou escravizar.

Libertado pelo próprio Cristo em uma nuvem de fumaça, o corpo de Jorge desapareceu, sendo encontrado incorrupto semanas depois, em posição beatífica, com um belo sorriso nos lábios. Que homem perigoso. Que fé imensa! Tudo em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor, mas que história perigosa em mentes mais ingênuas!

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A igreja diz que faltam documentos que comprovem a existência de Jorge como cidadão romano, mas não me lembro de ter visto ou sabido da existência da certidão de nascimento da maioria dos santos mais antigos. Diz que a história tem elementos fantásticos, como o dragão. Que se teria ouvido falar de um tribuno Jorge no reinado de Deocleciano, e não há registros oficiais. Parece que não aprenderam nada com o ?1984? e a KGB.

Eu por mim tenho esperado o sambinha ?baixar?. E olha que sou católico, é raro acreditar no sobrenatural; mas cada pouquinho que vem é uma forma de oração, como diria o poeta. Um dia o acabarei, vocês ainda ouvirão por aí a minha declaração de amor a este santo menino e guerreiro; valei-me meu São Jorge, salve, Jorge.